sexta-feira, 5 de dezembro de 2025

A Obra-Prima

Pouca gente sabe que tem um pintor morto no meu quintal. É verdade. Eu conto isso pros meus convidados no jantar quando eles têm coragem de aparecer aqui. Só que, assim que eu solto a bomba, eles já agarram os filhos, tiram as crianças do quintal – debaixo do qual tá enterrado um homem morto – e somem na noite. Nunca mais botam o pé na minha propriedade, parece que por muitos anos.

Uma vez, um desses meninos voltou já crescido e me perguntou por que os pais dele tinham me arrancado dali tão depressa e nunca mais deixaram ele voltar pra me ver. Eu contei o que já contei pra você e o que vou contar agora:

Tem um pintor morto no meu quintal. Você pisou na sepultura dele sem querer, e o pintor nunca quis que ninguém fizesse isso. Ele mesmo fez a própria cova e o próprio túmulo: moldou uma torre alta com as próprias tintas e pincéis, uma espécie de obelisco que sai do chão. Depois cavou um buracão na frente, deitou lá dentro e se matou. Aquela torre é frágil pra caralho – aguenta tempestade, mas quebra fácil no toque de gente, não importa o quanto você chegue de mansinho.

Naquele fim de semana, o fim de semana que ele se enterrou, caiu o maior temporal. A chuva e a terra que ele tinha jogado pros lados da cova cobriram o corpo dele. Tinham duas montanhas de terra – uma do lado direito, outra na lateral – pra dar conta dos quase dois metros de profundidade que ele tirou pra fazer a própria porta pro inferno. Dois metros em dois montes. Cada um parecia ter mais de um metro de altura; pareciam uns quatro pés gorduchos.

O pintor já tava morto há quatro dias. O corpo já tinha virado uma massa podre, pele solta, que derreteu e virou um caldo viscoso quando a chuva bateu. Quando a terra finalmente cobriu tudo, só as pernas dele – ainda dentro daquelas calças marrom chiques – não tinham perdido a pele e virado esqueleto. Ninguém sabia do cadáver no quintal – que hoje é meu, exceto a mãe dele. Ela viu o filho morto dentro do buraco e perdeu o juízo de vez. Nunca mais conseguiu voltar lá fora pra enterrar o menino direito. Fui eu mesmo que mandei a coitada pro sanatório lá perto do porto. Presa atrás de paredes brancas, ela deixou Deus e a Mãe Natureza fazerem o que ela, louca, não conseguia: enterrar o filho.

Quando chegou a hora de passar a casa adiante (casa vazia vira fantasma perfeito, né?), eu comprei da mãe dele por uma mixaria, uns trocados que pra ela não valiam nada, mas que pra mim abriram um rombo considerável na conta. Depois disso, fiz a coisa mais humana possível: gerei cinco filhos dentro dessa casa, cada um com uma esposa diferente. Nenhum deles – nem filhos, nem esposas – ficou muito tempo depois de eu soltar o clássico: “Querida, a gente tem um pintor morto no quintal.” Não vejo as crianças que elas levaram embora há até vinte e dois anos. A vida deles já tá longe demais pra ser minha de novo.

Nunca fui lá fora desenterrar aquele morrinho que hoje incha de leve no meu quintal, meter pá naquele montinho que brotou perto do meu canteiro de petúnias, como se a Terra tivesse criado uma espinha baixa no meio da barba rala. Não é alto o suficiente pra me dar trabalho de aplainar, mas incomoda o bastante pra eu tropeçar e cair toda vez que os anos vão matando meus ossos. O pintor era meu amigo; eu gostava mais dele que o próprio pai, aquele filho da puta que fez dele um bastardo. Enfim, eu já morri o suficiente pra não conseguir fazer mais nada sozinho, preciso de ajuda contratada, porque aquele buraco financeiro ainda não fechou, ainda sangra.

Olha lá pra torre. Tá desbotada, as cores agora cinza e mortas, lá na beira das árvores. Ainda é visível pra quem tem um pé no passado e força um pouco a vista: destaca contra a casca escura. Debaixo dela, um metro à frente, estão os restos do pintor morto. Do meu amigo morto. Acho que se você cavar vai achar os ossos dele lá, e a terra toda em volta vai estar impregnada da tinta que ele engoliu pra se matar. Quando eu morrer, você pode desenterrar ele se quiser; eu me arrependo tanto de não ter enterrado direito que jamais desenterraria de propósito, não enquanto ainda tiver um fiapo de moral me guiando.

Quando eu largar essa casa, só você vai poder decidir pelo meu amigo pintor: deixa ele em paz ou faz a coisa certa – acorda ele, invade a casa dele, dá o enterro decente que Deus manda, mesmo depois de cinquenta anos de sono? Pra mim, pensa se quiser, mas nunca faça. Se bater aquela vontade louca, vai lá e finca uma placa no chão, enfia uma faca na porta dele. Ou passa tinta por cima do nome desbotado que ele mesmo pintou na torre, na frente e atrás, se quiser desrespeitar a obra-prima do cara. Repinta essa casa, pinta meu caixão de vermelho antes de pintar de azul, mas nunca passe por cima da assinatura de um artista. Deixa ela gritar o próprio valor, e deixa o valor gritar por ela. Se tiver valor, fica e continua de olho na gente. Se não tiver… bom, acho que você é esperto o suficiente pra descobrir o que acontece.

E quando me enterrarem, me enterra bem longe do meu amigo, do lado da minha mãe, nunca do meu pai ou dos meus filhos. Os dois viveram vidas que eu não quero mais saber e não sou mais obrigado a conhecer. No céu, eu ainda quero deitar a cabeça no colo da minha mãe e soltar setenta anos de suspiro. Não sei o que levou meu amigo a se matar. Não quero encontrar ele lá em cima. Quero só a torre dele e a lembrança – nunca, jamais, a verdade que gerou as duas coisas.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Narcose

O profundímetro no meu computador de pulso marcava 84 metros. Uns 275 pés de água preta esmagadora, canalizada por uma garganta de calcário tão estreita que meus cilindros de estágio raspavam na rocha com um grito de metal contra osso.

A gente tava no “Intestino” — uma restrição num sistema de cenote ainda não mapeado, em algum lugar debaixo do chão da selva, a quilômetros do ponto de saída mais próximo. Meu parceiro de mergulho, o Beckett, ia na minha frente. Eu via as pontas amarelas das nadadeiras dele e o halo violento e sacolejante da luz principal dele cortando o breu absoluto.

A gente tava forçando demais a barra. Eu sabia. Ele sabia. O perfil do mergulho era agressivo pra caralho, quase suicida pra uma dupla em circuito aberto, mas o prazo da bolsa de pesquisa tava acabando e o Beckett tava com uma obsessão febril de conectar o Intestino com o aquífero principal.

— Pressão — murmurei no regulador, as palavras gorgolejando na boquilha. Bati a lanterna no cilindro duas vezes: clanc, clanc. O sinal pra checar. O Beckett nem respondeu. Só deu um coice mais forte, as nadadeiras levantando a camada de sedimento do fundo.

Esse é o pecado capital do mergulho em caverna: você não toca no chão. O fundo de uma caverna virgem é feito de eras de argila depositada e podridão orgânica. Se você mexe nisso, detona um silt-out. A água vira do cristalino pro leite com chocolate em segundos. Você perde o alto, o baixo e a saída.

Uma nuvem marrom rolou de trás das nadadeiras do Beckett e me engoliu.

Puta que pariu. Eu esvaziei o colete pra parar o avanço, tentei nadar de ré pra fora da nuvem. Mas o túnel era apertado demais. O sedimento me envolveu. O facho da minha lanterna morreu, espalhando uma parede branca cegante contra as partículas suspensas.

— Beckett! — gritei, esquecendo que ele não ia me ouvir. Apalpei procurando a linha-guia, aquele fiozinho de náilon que era nossa única ligação física com a superfície. Minha mão pegou só água.

Pânico, gelado e afiado, cravou no meu peito. Varri o braço pra esquerda, pra direita. Pedra. Pedra. Água. Nada de linha. O Beckett devia ter cortado numa quina afiada ou soltado o enrolamento quando deu aquele arranco pra frente. Eu tava cego. Tava fundo. E tava respirando ar num profundidade em que o nitrogênio age como narcótico. Aos 84 metros, a pressão parcial de nitrogênio fode o cérebro igual quatro ou cinco martínis de estômago vazio. Chamam de Efeito Martini. Lentifica o tempo de reação, mata o instinto de medo e troca o raciocínio lógico por uma aceitação fofa e eufórica da morte.

Forcei o corpo a ficar parado. Respirar. Entra. Sai. O som da minha própria respiração era ensurdecedor. Sss-clic. Rugido. Bolhas trovejando.

Olhei o manômetro: 110 bar. Uns vinte minutos de ar se eu ficasse calmo. Cinco se pirasse.

Decidi esperar. Às vezes, se a corrente ajudar, o silt-out limpa. Fiquei flutuando no vazio marrom, sentindo o peso imenso da rocha em cima de mim. Foi aí que a narcose começou a sussurrar. Não era voz. Era sensação. A água não parecia mais água, parecia melado. Eu sentia calor. O frio cortante do rio subterrâneo virou um calorzinho gostoso, anestesiante. Deu vontade de cuspir o regulador só pra provar o gosto da água. Provavelmente tinha gosto de ferro. De sangue.

Não, caralho, falei pra mim mesmo, cravando os dentes na borracha da boquilha. Isso é a narcose. Fica esperto.

Aí eu vi a luz.

Era fraca no começo, um brilho difuso atravessando a nuvem de sedimento na minha frente. Balançava ritmado. Esquerda, direita. Esquerda, direita. Era o Beckett. Ele tinha voltado. Vinha me buscar. Bati no cilindro de novo. Clanc. Clanc. A luz parou. Ficou ali, suspensa na lama, uns três metros de mim.

Esperei o sinal dele. O “OK” padrão. Polegar pra cima pra abortar o mergulho. Qualquer coisa. A luz só ficou parada.

Avancei devagar, mão esticada. O sedimento tava assentando um pouco, caindo pro fundo pesado e estagnado. Quando cheguei perto, a silhueta de um mergulhador surgiu do escuro. Era o Beckett. Flutuava na vertical, trim perfeito, braços pendendo ao lado do corpo.

“Beckett”, pensei, alívio me invadindo. “A linha. Cadê a porra da linha?”

Joguei a luz na cara dele pra chamar atenção. O Beckett não reagiu. Só flutuava, derivando levemente na corrente fraca. Cheguei perto, a um braço de distância. Foi aí que notei o equipamento dele.

O colete dele tava desabotoado no ombro. Um dos cilindros laterais pendia só por uma mangueira, balançando que nem membro decepado. E tinha alguma coisa errada com as bolhas. Não tinha bolha nenhuma. Ele não tava respirando.

Eu travei. A névoa da narcose no meu cérebro de repente virou um horror afiado e cristalino. Se ele não tava respirando, tava morto. Ou infartou, ou levou uma embolia, ou pirou e prendeu o ar.

Estiquei a mão pra agarrar o colete dele, pra chacoalhar. A cabeça do Beckett levantou num estalo. Não foi um movimento lento. Foi mecânico, violento: queixo no peito e depois esticando pra me encarar direto nos olhos.

O facho da minha lanterna bateu na máscara dele. Os olhos tavam escancarados. Não era o olhar vazio de cadáver, era o olhar dilatado e hiper-focado de um predador. Mas foi a boca que congelou meu sangue.

O Beckett não tava com o regulador na boca. O regulador flutuava atrás da cabeça dele. Ele tava sorrindo. Aos 84 metros a pressão da água é umas 135 libras por polegada quadrada. Se você abre a boca sem gás pressurizado empurrando de volta, o mar entra nos seus pulmões com força de mangueira de bombeiro. Você afoga na hora. Os pulmões colapsam. O Beckett tava me sorrindo, dentes brancos e perfeitos na luz crua do LED. Os lábios puxados até a gengiva. Não entrava água. Não saía bolha.

Ele só flutuava ali, boca aberta naquele sorriso impossível, me encarando.

Narcose, meu cérebro gritou. Isso é alucinação. Você tá completamente narcosado. Ele tá morto e seu cérebro tá desenhando uma cara na tragédia.

Fechei os olhos com força, contei até três, abri.

Ele tava mais perto. Não tinha nadado. Não tinha mexido as pernas. Simplesmente… se deslocou pela água. Tava a centímetros da minha máscara agora. Eu via os poros do nariz dele. Via as veinhas vermelhas no branco dos olhos. E via que a garganta dele se mexia. Um volume ritmado, pulsando, subindo pelo pescoço, por baixo da pele, como se engolisse ao contrário.

Ele esticou a mão.

A mão dele, com luva preta de neoprene, não pegou meu colete. Foi direto na minha cara. Especificamente no meu regulador.

Eu bati na mão dele. Parecia sólida. Real.

— Sai pra lá, porra! — gritei dentro da boquilha, o som abafado e inútil.

O sorriso do Beckett se alargou. Esticou. As comissuras da boca não pararam nos molares. A pele das bochechas rasgou — não com estalo, mas com uma separação úmida e silenciosa, tipo abrir massa crua. O sorriso continuou, partindo o rosto até as orelhas.

Dentro da boca não tinha língua. Não tinha garganta.

Tinha um tubo pálido, translúcido. Um sifão carnoso, pulsando, forrado de cílios minúsculos e transparentes que batiam na água.

Não era o Beckett. Era uma coisa vestindo o Beckett.

Eu chutei. Arranquei as nadadeiras no chão de pedra, explodindo o sedimento de novo, dane-se a visibilidade. Precisava de distância. Nadei de ré, raspando o cilindro no teto da caverna, hiperventilando.

Sss-ssss-ssss. O regulador entregava ar em rajadas desesperadas.

Iluminei a nuvem marrom. Nada. Aí veio um som. Som viaja quatro vezes mais rápido na água. Vem de tudo quanto é lado. Você não consegue localizar. Clic. Clic. Clic. Parecia pedra molhada batendo. Ou dentes rangendo.

Olhei o manômetro: 50 bar. Eu tava gastando ar pra caralho. Tinha que sair. Tinha que achar a saída. Girei 180 graus, deixando a nuvem pra trás, e nadei às cegas pro escuro. Rezei pra estar voltando pro entrada, pro salão maior onde a luz do sol pudesse infiltrar. O túnel afunilou. Meu peito raspou no chão. Meus cilindros rasparam no teto. Uma restrição. Eu não lembrava dessa restrição. Caminho errado. Você veio pelo caminho errado.

Tentei dar ré, mas a válvula do meu cilindro enganchou numa ponta de calcário. Fiquei preso. Girei o quadril tentando soltar. A pedra me segurava firme. Tava encurralado, 84 metros abaixo, num caixão de pedra.

Clic. Clic. O som tava mais alto. Mais perto.

Virei a cabeça, olhando por cima do ombro, de volta pro túnel que eu tinha acabado de passar. A lanterna cortou um cone na água limpa atrás de mim.

O Beckett tava lá. Não nadava. Rastejava. Se arrastava pelo chão usando cotovelos e joelhos, com uma coordenação insectoide e quebrada que destruía qualquer anatomia humana. As pernas dobravam nos ângulos errados. As costas tavam arqueadas pra trás, côncavas, que nem boneco quebrado.

Ele parou a uns três metros. O sedimento tinha assentado o suficiente pra eu ver os detalhes. A “roupa Beckett” tava folgada agora. O neoprene enrugado, murcho. O que tava dentro tinha encolhido, se condensando.

A cabeça pendia frouxa, queixo no peito. Aí o pescoço estalou pra cima de novo. O sorriso tinha sumido. A mandíbula inferior tinha sumido. Pendia solta, desencaixada, batendo no pescoço.

Do buraco escancarado onde era a boca, o sifão saiu. Tava maior agora, grosso que nem jiboia, pálido e translúcido. Ondulava na água, sentindo a corrente. Sentindo a vibração do meu pânico. Eu vi movimento dentro do sifão. Alguma coisa escura e sólida sendo empurrada do peito pra cima, viajando pelo tubo.

Era o computador de mergulho do Beckett. A coisa cuspiu. O disco de plástico bateu no chão de pedra.

Aí cuspiu uma aliança de casamento. Aí um dente. Tava purgado as partes não-comestíveis.

Eu me debati contra a rocha, esperneando, gritando no regulador até sentir gosto de cobre na garganta. Manômetro marcava 10 bar. Dois minutos. Talvez menos.

A coisa voltou a rastejar. Raspa. Arrasta. Clic. Não tinha mais olhos — os olhos tinham rolado pra dentro do crânio, substituídos pela carne branca e brilhante do parasita — mas sabia exatamente onde eu tava. Sabia que eu tava preso.

Parou bem na sola das minhas nadadeiras. Senti uma mão — ou o que sobrou de uma mão, ossos esmagados juntos num gancho — agarrar meu tornozelo.

A narcose me pegou de vez então, uma onda final de indiferença morna. O terror não sumiu, mas se desprendeu. Eu assisti tudo de longe. Vi a coisa-Beckett subir pelas minhas pernas. Senti o peso dela se acomodando nas minhas costas, me empurrando pro sedimento.

Ouvi o chiado do meu regulador entregando os últimos restos de ar. A agulha bateu zero. A próxima respirada foi dura. Vácuo. Olhei pra pedra na frente do meu rosto. Tinha um fóssil ali. Uma conchinha espiral, milhões de anos de idade. Era linda.

Uma cara apareceu do meu lado. Era a máscara. A face do Beckett, esvaziada, pendurada na coisa que nem pano molhado. O sifão empurrou pelas bochechas rasgadas, procurando vedação. Encostou no meu regulador. Queria entrar.

Aí entendi por que tinha usado o Beckett. Não era só camuflagem. Era roupa de pressão. Precisava de um casco pra manter a forma contra o peso do fundo. E o casco do Beckett tava quebrado. Precisava de um novo.

Eu cuspi o regulador.

Não pra lutar. Mas pra receber a água. Pra deixar o mar esmagar meus pulmões antes que ela tomasse eles.

Mas a água não veio.

O sifão grudou na minha boca aberta na mesma hora. Tinha gosto de podre e salmoura antiga estagnada. Formou uma vedação perfeita, hermética, nos meus lábios. E aí empurrou ar pra dentro de mim. Respirava por mim. Um gás reciclado, fétido, bombeado da própria bexiga dela pros meus pulmões. Tava me mantendo vivo. Me queria quentinho. Me queria fresco.

Quando o sifão começou a descer pela minha garganta, se expandindo pra encher meu esôfago, a narcose finalmente me deu uma pequena misericórdia.

Eu comecei a rir. Não saía som, entupido que eu tava, mas meu diafragma convulsionava num loop silencioso e tremendo.

Eu ia ser o novo uniforme. E a gente tinha uma nadada longa de volta pro escuro.

Nunca beba o que ele te oferecer

Como qualquer outra sexta-feira à noite, eu saí pra uma festa com a minha melhor amiga, a Bree. Às vezes a gente ia pra festas de gente que a gente conhecia. Às vezes ia pra festas aleatórias que ela achava não sei onde. Sempre foi uma diversão nossa. A gente até tinha um joguinho que chamava de “Hooked”: quem pegava ou ficava mais com caras ganhava.

É bem idiota e parece que a gente tava implorando pra pegar DST. Acho que a gente inventou esse nome de “jogo” só pra ela se sentir menos… sei lá, menos vadia. Enfim, depois do que rolou, eu jurei pra mim mesma que nunca mais ia jogar essa merda.

Há uns anos, em 2017, eu fui numa festa em algum dia de outubro. Lembro direitinho que era uma festa de Halloween.

Naquele ano a gente foi em várias festas de Halloween, mas essa que eu vou contar foi a última que eu pisei na vida, por causa do terror que tomou conta daquela noite.

Era igual qualquer outra festa que a gente frequentava naquele mês. As duas de gatinha preta combinando, prontas pra dar em cima de um monte de cara e ficar bêbada.

Pensando bem agora, queria ter dado bola pros bandeirão vermelhão que eu ignorei. O primeiro, gigantesco: a Bree não conhecia NEM UMA ALMA naquela festa. Nenhuma cara conhecida. Normalmente isso não seria problema, mas o bairro era perigoso pra caralho. Tava todo mundo sumindo. Os corpos apareciam depois, só que nunca inteiros. Fazer o quê? A gente era nova e burra.

Eu era nova, burra e, infelizmente, aquela pessoa que faz qualquer coisa pra agradar os outros, por isso nem abri a boca pra falar “não” pra Bree.

Quando chegamos, até parecia normal. Todo mundo super extrovertido, simpático. Ficamos conversando com geral, conhecendo todo mundo, até que a Bree viu um cara que achou gostoso. O gosto dela é horrível, ela pega qualquer um que respire.

Ela me largou sozinha pra ir dar em cima dele e eu fiquei lá, moscando, me sentindo um peixe fora d’água. Também sabia que precisava tentar ganhar o jogo, então comecei a rodar, olhando os caras. Conversei com uns dois, mas meu olho travou num cara específico. Não era que ele fosse bonito, era algo na energia dele que me deixou intrigada. Hoje eu sei: eu nunca devia ter chegado perto. Talvez não fosse “intrigante”, talvez fosse o alarme de perigo dentro de mim que tava com defeito.

Seja lá o que fosse, eu fui falar com ele. Conversamos um tempão, ele até me fez dar umas risadinhas. Estávamos no meio de um papo chato que eu nem lembro mais qual era, mas lembro perfeitamente dele me entregando uma bebida.

Era um copo que eu achei que tava sendo servido pra todo mundo na festa, então nem desconfiei. Ele ainda perguntou se eu queria sair pra dar uma volta com ele. Eu, impulsiva do caralho, disse que sim.

A volta foi até sonhadora no começo. Ele era engraçado, parecia romântico, me deixou interessada. Comecei a pensar nele como algo além do jogo. Talvez um amigo, talvez algo a mais. Meu sonho desmoronou mais rápido que luz quando eu comecei a tomar os goles.

Cada gole era um segundo mais perto da minha quase morte. Minha cabeça começou a embolar, eu fui ficando mole. Falei que não tava me sentindo bem e ele começou a rir. Rir sem parar, com o sorriso mais assustador e largo que eu já vi na vida.

Ele me jogou no chão e tirou uma faca. Sussurrou no meu ouvido que isso acontecia o tempo todo, que ele adorava vítima burra. Disse que ia curtir me cortar em pedacinhos.

Eu chorei rios, literalmente. Implorava pela minha vida. A faca quase abriu meu pescoço, mas a Bree e o cara que tava com ela pularam em cima dele.

Você acha que terminou com ele preso, né? Infelizmente o filho da puta era forte pra caralho e conseguiu lutar e fugir. Eu liguei pra polícia, falei tudo, dei descrição, fiz tudo que podia. Não acharam ele. Nem um rastro. Até hoje eu procuro no Google e nas redes sociais, não tem nada que me ajude a encontrar o cara.

É como se ele tivesse evaporado. Nunca mais na minha vida eu aceito bebida de estranho. Tomara que um dia peguem ele. Pelo lado bom, os crimes pararam naquele bairro depois daquela noite do inferno. Pelo lado ruim… crimes parecidos voltaram a acontecer faz pouco tempo.

É só isso que eu tenho pra dizer: nunca beba o que ele te oferecer.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

Minha última caçada

Eu moro numa cidadezinha do interior tão pequena que dói. População? Uns 345 habitantes. A cidade mais próxima fica a uns trinta minutos de carro pela interestadual, bem no meio do cu do nada no Texas. Só tem argila vermelha e pé de mesquite pra todo lado. Aqui, quem não cria gado ou participa do programa agrícola da escola, planta algodão ou milho miúdo.

Os campos de milho miúdo ficam no que a gente chama de “arredores” da cidade – se você for generoso o bastante pra dizer que o lugar tem arredores. Nessas lavouras é comum ver porco morto jogado. Esses javalis selvagens adoram milho miúdo e, sendo Texas, a gente tá infestada dessa praga do caralho. Não é raro ver fazendeiro esperando na beira do campo e estourando uns dez, treze porcos só pra espantar. Só que eles sempre deixam os corpos lá. Os porcos, por mais feios que o pecado e cheios de consanguinidade, viram um ótimo adubo depois que a natureza faz o serviço. Não dá pra comer, então muita gente tenta envenenar mesmo. Nesse ponto já virou só controle de praga.

Era fim de outubro e a temporada de cervo já tinha aberto no começo do mês. Meu pai e eu atirávamos em porco o ano inteiro pra ajudar os fazendeiros da cidade, mas cervo era raridade, era presente. Quando a gente caça não é por maldade nem por esporte. Claro que um cervo grande, com chifre bonito, sempre é legal, mas na maioria das vezes a gente só abatia um mesmo. Dessa vez a gente tinha um em mente. Achamos ele pelas câmeras de trilha que colocamos na nossa propriedade. Não era um cervo enorme de galhada, mas dava pra ver pelas cicatrizes de briga e pelo olho direito cego que ele era o chefe daqueles matos de mesquite. A gente batizou de Uno, por causa do olho que ainda funcionava. Era um cervo bonito, corpo grande, oito pontas. Eu chutaria uns cinco ou seis anos de idade.

Meu pai e eu compramos milho, passamos horas estudando onde ele dormia, os caminhos que fazia, os trechos que mais gostava de comer. Decidimos que tava na hora. Nos equipamos praquela tarde. Pegamos os arcos compostos, umas facas e uma pistola. Só por garantia – os porcos da região às vezes são bem filhos da puta. Já aconteceu de um javali idiota achar que ia me ensinar quem mandava e partir pra cima da gente.

Chegamos na propriedade umas 3:30 da tarde, estacionamos a caminhonete e entramos a pé pro resto do dia. Meu pai foi pro posto dele perto do tanque d’água – um tripé de metal com cadeira a uns dois metros e meio do chão, encaixado direitinho entre uns galhos pra ter cobertura. Eu nem imaginava que aquela seria a última vez que eu ia ver meu pai vivo.

“Quem vir o Uno primeiro, garoto.” Ele brincou. “Eu peguei o cervo no ano passado, mas não fica muito animado não.” Eu sorri pra ele. “É mesmo? Ele vai te sentir de um quilômetro de distância, seu velho fedido!” A gente se abraçou e eu comecei a andar mais pra dentro da propriedade até o meu posto. “Quer a pistola hoje, durona? Os porcos podem te farejar.” Eu fiz cara de quem pensa e balancei a cabeça. “Não, valeu! Eu não sou doce o suficiente!” A gente riu e cada um foi pro seu lado.

Eu precisava escrever isso. Precisava contar pra alguém o que aconteceu. E também porque eu nunca mais fui caçar desde então. Me desculpa, pai.

A propriedade tem uns quarenta hectares. Não é grande coisa, mas pra atravessar todo o mato e as trilhas de bicho leva uma hora e meia a pé. Até a cidade são mais quarenta e cinco minutos, e sinal de celular? Nem em sonho. Pedir ajuda era praticamente impossível.

Desci a trilha de terra, curtindo o ar fresco da tardezinha. Pulei galhos e cactos pequenos até conseguir subir no meu posto – um tripé de quatro pernas feito pra caçar de rifle. Lá eu sentei… e percebi uma coisa. Não tinha ouvido um pássaro sequer. Nem coelho, nem esquilo. Silêncio total. Só dava pra ouvir o vento balançando leve as árvores. Dia quieto acontece, claro, mas aquele era diferente. Sinistro. Parecia que tinha alguma coisa esperando do outro lado da cerca. Com o tempo, começou a chegar um cheiro. Devagar no começo, quase imperceptível. Forte, almiscarado, parecia lama de porco depois de chuva pesada. Já eram umas seis da noite e ficou escuro demais pra caçar de arco.

Desci do posto tentando não fazer barulho. Alguma coisa tava errada. O cheiro agora tava inconfundível. Só que era um cheiro velho, como se o que quer que tivesse causado aquilo já tivesse ido embora fazia tempo. Senti um aperto no peito enquanto voltava pro lugar onde meu pai tava.

Quando cheguei perto, o crepúsculo já tinha virado noite. Tirei a lanterna de cabeça e liguei. Dava pra ver o posto do meu pai, mas ele não tava lá. Fiquei confuso. Ele não ia sair sem avisar. Procurei em volta e vi alguma coisa no mato ali perto.

Fui chegando de fininho e olhei. Era o Uno. Meu pai tinha pegado o Uno! Por um segundo um sorriso enorme abriu na minha cara, mas quando eu segurei na galhada pra puxar ele do mato e ver a cara… larguei na hora. A cara dele não existia mais. Parecia que tinham arrancado a cara do Uno inteira! Pedaços de osso e músculo rasgados, sangue por todo lado, cobrindo os galhos quebrados e as folhas. Arranhões gigantes no corpo todo, e a pata traseira torcida num ângulo que só podia estar quebrada.

Outra coisa entrou no meu campo de visão: a mochila de caça do meu velho. O conteúdo espalhado no chão: flechas, embalagens de lanche, o arco do meu pai. Revirei tudo e achei a pistola no fundo, ainda no coldre. Meu coração batia forte contra o silêncio absoluto do mato de mesquite. Aí eu ouvi.

A voz do meu pai. Só que cada célula do meu corpo gritava pra eu correr. Alguma coisa tava terrivelmente errada. Mesmo assim eu chamei: “P-pai? Cadê você?” Ouvi um movimento no escuro. O cheiro ficou mais forte, parecia grande e pesado. Um almíscar podre, grosso, que só dava pra comparar com javali. Nesse momento tirei a pistola do coldre e engatilhei.

Ouvi de novo, vindo de perto do corpo mutilado do Uno. Um barulho forte de arrastar, junto com uma versão distorcida da voz do meu pai. Grave, gutural, arranhada. Parecia um esqueleto falando com brita na boca. “Duuuuroooonaaa?” Antes que eu pudesse entender o que tava acontecendo, a coisa jogou algo em mim. Eu desviei, a coisa rolou no chão e bateu na escada do posto antes de parar.

Mantendo o olho na direção do Uno, recuei até a escada. Olhei rápido pra baixo e pulei pra trás no mesmo instante. Eu vi só por um segundo, mas vi: a cabeça do meu pai, agora uma massa sangrenta mastigada. Um rugido que parecia um porco em pânico. Então eu corri. O cheiro me acompanhou até a caminhonete. Peguei a chave no bolso, entrei de qualquer jeito, joguei minhas coisas no banco de trás e girei a chave na ignição. O motor roncou e os faróis iluminaram o horror.

A uns vinte e cinco metros da caminhonete estava “aquilo”. Tinha uns dois metros de altura. Corpo curvado, pelagem dura e arrepiada, músculos se retorcendo de um jeito que não era possível. A cabeça lembrava porco, mas torta, como se tivessem quebrado várias vezes e colado errado. O focinho torto farejava o ar e fez contato visual comigo.

Os olhos refletiram nos faróis, deixando a criatura ainda mais assustadora. “Seu filho da puta!” eu gritei. Os ombros dele começaram a subir e descer. Roncos encheram o ar. A coisa tava rindo. Tava rindo pra caralho. Coloquei a caminhonete em drive e pisei fundo.

A besta urrou de surpresa quando eu atropelei ela com tudo. Dei ré e passei por cima de novo antes de sair pelo portão e cair na estrada. Cheguei em casa voando aquela noite. Chamei a polícia. Fiz tudo que podia, mas não mudou nada. Eles acharam o que sobrou do corpo dele e até trouxeram o arco e a mochila de volta pra mim. Eu não consigo explicar o que aconteceu naquela noite, mas eu sei que não matei aquilo. Sei porque de vez em quando eu ainda escuto a risada.

Por favor, nunca se separe do seu parceiro de caça. Você nunca sabe o que pode aparecer pra fazer uma visitinha pra ele.
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