segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Eu tenho uma vida bem fora do comum

Sabe, eu estou muito doente. Tão doente que meu marido contratou uma equipe inteira pra cuidar de mim e da casa, porque tem tanta coisa que eu simplesmente não consigo mais fazer. Toda manhã, uma das minhas atendentes me acorda e traz o café da manhã. E os remédios. São tantos comprimidos que eu tenho que tomar, mas eles parecem ajudar mesmo. Às vezes consigo me sentar na cama e me alimentar sozinha, embora minhas mãos tremam pra caralho e meus músculos estejam rígidos demais. Outras vezes, a atendente tem que sentar comigo e me dar comida na boca como se eu fosse um bebê. No começo era humilhante, quando eu passei a precisar de tanta ajuda extra, mas me acostumei. Sou grata pelas atendentes e por tudo que elas fazem por mim.

Depois do café, as crianças geralmente vêm me visitar no quarto. Meus anjinhos lindos, todos com aquelas auréolas de cachos dourados e olhos azuis brilhantes. Eles correm pelo quarto, rindo e brincando de pega-pega, pulando na minha cama e saltando pro chão. Eu nunca os repreendo nem mando parar, porque aquece meu coração ver eles se divertindo tanto. Tenho três bebês, e eles vão ser sempre meus bebês, não importa quanto tempo passe. A mais velha, Jocelyn, tem 8 anos. Ela está começando a ficar muito parecida comigo, acho, com o nariz afiado e pontudo e as sobrancelhas delicadas, sempre franzidas em pensamento. As bochechas dela estão perdendo aquela gordurinha de criança e meu coração dói de ver ela crescendo tão rápido.

Simon é o do meio e meu único menino, e que menino ele é. Selvagem, nem aí pras regras que eu e o meu marido tentamos impor tantas vezes ao longo dos anos. Ele tem meus lábios carnudos e cheios, e dá pra ver que quando crescer vai ter a sobrancelha forte e o maxilar do pai, e ele só tem 6 anos. Pra mim ele parece uma escultura grega de mármore, com aquelas linhas duras da estrutura óssea ainda tão suavizadas pelo jeitinho de bebê. Mas até ele já me parece tão crescido agora.

A caçula é Eveline, e ela tem só 3 aninhos. Tem um rostinho doce e querubim, com cílios impossivelmente longos e bochechas rosadas e gorduchas. Ela não corre tão rápido nem pula tão alto quanto os irmãos, mas vai atrás o mais rápido que as perninhas permitem. Ela ainda é a que mais faz carinho em mim, se enroscando nos meus braços quando eu tiro uma soneca antes do almoço. O cheirinho doce do cabelo dela enche meu nariz e me faz dormir tão tranquila.

Quando as crianças não estão rodopiando pelo meu quarto como dervixes, elas costumam sair pra brincar no jardim. Jocelyn e Simon são sempre tão gentis com a Eveline e sempre esperam ela alcançar. Tenho muita sorte de ter uns bebês tão doces que se amam tanto. Antes de ficar doente, eu conseguia ir com eles pro jardim, e às vezes me dá uma tristeza ficar presa aqui dentro, no meu quarto.

Tenho um rodízio de atendentes que ficam comigo todo dia. Faz sentido, né, imagino que todas tenham família pra voltar quando o turno acaba. Meu marido fez questão de eu ter cuidado o tempo todo, então são três atendentes diferentes por dia — uma pro turno da manhã, outra pro da tarde e uma pra noite. Elas me ajudam a tomar banho toda manhã e a me vestir todo dia. Faz muita diferença poder usar roupa limpa e fresca todo dia e não ficar apodrecendo na cama com a mesma camisola por dias seguidos. Tiffany, que é uma das minhas favoritas, penteia meu cabelo longo e faz uma trança francesa linda pra mim. Só vejo ela duas vezes por semana, e as outras atendentes parecem não querer se dar ao trabalho com meu cabelo. Ele fica bem embaraçado até a Tiffany voltar, e ela passa um tempão desembaraçando com paciência e delicadeza. Às vezes ela murmura enquanto penteia e trança: “Senhora Margaret, cadê aqueles bebês lindos seus?” Eu sempre respondo que devem estar em outra parte da casa, talvez brincando com a casinha de bonecas ou espalhados na sala de brinquedos lendo livros. A Tiffany sempre estala a língua e não fala mais nada.

Claro, além das atendentes, tem os médicos. Dr. Philips é um homem alto e magro, cabelo grisalho bem curto, óculos de armação grossa preta que sempre parecem a ponto de escorregar da ponta do nariz comprido. Ele vem me ver todo dia depois do almoço pra me examinar e perguntar como estou me sentindo. Geralmente dou a mesma resposta todo dia. Dra. Wilcox, que me disse que posso chamar ela de Jennifer, é médica dos meus sentimentos. Foi assim que ela explicou quando nos conhecemos. Disse que estar tão doente pode trazer um monte de sentimentos ruins, e que queria que eu me sentisse à vontade pra dividir qualquer coisa que estivesse me incomodando. Ela nunca consegue avançar muito comigo. Sempre fico cansada demais depois de falar com o Dr. Philips pra responder às perguntas dela. Às vezes respondo, e ela me lança um olhar estranho e anota coisas no caderno. Não sei o que ela faz com aquele caderno depois que sai do meu quarto, mas eu gostaria de ler um dia.

Todo mundo que cuida de mim usa uniforme; acho que é obrigatório pela agência que meu marido contratou. A única pessoa que vem me visitar e nunca usa uniforme é minha amiga, Allison. A Allison sempre traz o cachorro dela, Fig, um Golden Retriever enorme e avermelhado. Na primeira vez que conheci a Allison e o Fig, percebi que ela estava um pouco... tensa. Segurava a guia com força na mão, embora a guia estivesse frouxa. Mas eu reparo nessas coisas. Ela murmurou algo pra uma das minhas atendentes enquanto o Fig se aproximava de mim na cadeira. O cachorro veio direto, colocou a cabeça enorme e quadrada no meu colo, olhando pra mim com aqueles olhos castanhos macios. Levantei a mão, fiz carinho na cabeça dele, cocei atrás das orelhas, e ele fechou os olhos e deixou o peso todo da cabeça no meu colo. Vi o punho da Allison relaxar na guia, e ouvi ela falar baixinho pra atendente: “O Figgy é um ótimo juiz de caráter.” O atendente deu de ombros e virou o rosto, quase irritado.

Depois daquele primeiro encontro, a Allison traz o Fig pra me visitar toda semana. Se eu estiver na cama, o Fig pula e deita do meu lado, me aquecendo com o pelo sedoso avermelhado. A Allison sempre puxa uma cadeira e senta perto de mim, faz conversa fiada sobre o tempo ou conta alguma história engraçada do que o Figgy aprontou desde a última vez. Às vezes a Allison pega minha mão e me dá um olhar cúmplice. Uma vez ela perguntou por que eu estava doente, e eu disse que era melhor pra nós duas se ela não soubesse. Mas isso não a espantou. Um dia, aquele mesmo atendente que estava lá no primeiro encontro com a Allison e o Fig puxou uma cadeira mais perto de mim e da Allison do que o normal, abriu um jornal e começou a ler. A manchete grande na capa dizia: “Pai de crianças desaparecidas há 3 anos pede que sejam declaradas oficialmente mortas”. Uma história triste, sem dúvida. Uma foto do pai com as crianças, todos sorrindo pra câmera, ocupava quase toda a primeira página.

Meu marido viaja tanto a trabalho que quase nunca consegue me visitar. Quando vem, geralmente se reúne com meus médicos e eles conversam em voz baixa. Eu pego pedaços: “Nenhum progresso... nenhuma nova informação... medicação diferente...” Meu marido tem controle sobre meu tratamento porque a doença muitas vezes me deixa tão cansada e confusa que não consigo consentir com mudanças. Ele aprendeu a só me visitar antes das 17h, porque já teve visita demais depois do jantar em que ele entrou no meu quarto e algo horrível tomou conta de mim e eu o ataquei. Saí da cama ou da cadeira de rodas com as mãos esticadas, tentando arrancar a garganta e os olhos dele enquanto a atendente corria pra me conter. Sempre que isso aconteceu, meu marido se recusa a me olhar nos olhos, com medo de encarar o verdadeiro motivo pelo qual eu quero matá-lo — um motivo que só ele e eu saberemos para sempre.

É que os remédios da manhã começam a fazer menos efeito depois do jantar, e eu só posso tomar a dose da noite às 19h. Conforme a tarde vira noite, sinto os sintomas voltando. Minha visão, borrada e desfocada o dia todo, fica nítida. A luz dourada que banha tudo escurece e vira um azul frio, jogando tudo em relevo duro e deixando o ambiente hostil e clínico. Minha cabeça, tão enevoada e lenta o dia inteiro, começa a clarear, e as memórias voltam. Vejo as atendentes como elas realmente são: funcionárias que cuidam de mim com relutância, não com dedicação e carinho.

O pior, porém, são as crianças. Quando vêm me visitar depois do jantar, elas não parecem mais felizes, angelicais, cheias de vida e risada. Não parecem mais como eu quero lembrar delas. Em vez disso, parecem como sou obrigada a lembrar. A Jocelyn tem metade do couro cabeludo arrancado do crânio e falta o olho esquerdo. Sangue mancha o nariz e a boca, e tem hematomas roxos grossos no pescoço. A cabeça pende num ângulo estranho, e as pernas só arrastam o corpo pra frente porque as fraturas expostas têm pedaços de osso perfurando a pele. Todo o lado esquerdo da cabeça do Simon está completamente afundado, e ele cospe bolhas de sangue enquanto tenta puxar ar em respirações rasgadas. A caixa torácica está esmagada e estilhaçada, os pulmões batendo inutilmente contra a parede do peito. E a Eveline... minha pobre e doce menininha, nova demais pra entender o que estava acontecendo. Os olhos estão pretos, cheios de sangue morto. A língua está enorme e roxa, saindo da boca. Ela também tem hematomas grossos no pescoço, embora mal dê pra notar porque agora ela carrega a cabeça nas mãozinhas — arrancada completamente dos ombros. Todos vêm até mim e me encaram, chorando: “Por quê, mamãe?” No começo isso me enlouquecia, e na maioria das vezes quando apareciam pra me assombrar eu arranhava os braços com tanta força enquanto gritava de angústia que acabava amarrada na cama com restrições acolchoadas enquanto uma enfermeira aplicava uma injeção pra me fazer dormir. Agora só choro em silêncio. Não desvio o olhar, porque meus bebês merecem ser vistos, mas meu coração se despedaça em milhões de pedaços toda noite quando eles vêm me lembrar do que eu fiz.

Um caminhoneiro me encontrou na beira da estrada há três anos, coberta de sangue — parte meu, parte não. No pronto-socorro tentaram me fazer contar o que tinha acontecido, mas eu não conseguia. Só gritava enquanto via meus bebês do jeito que os deixei antes de fugir pro mato. Acho que queria me perder e morrer de frio lá, mas em vez disso saí cambaleando na pista e quase fui atropelada por um caminhão. Morrer assim teria sido melhor do que eu merecia. Quando a polícia chegou pra me interrogar, os funcionários do hospital ficaram confusos. Aí o detetive explicou. Meu marido tinha registrado o desaparecimento das crianças e o meu naquela manhã, depois de acordar e encontrar a casa vazia. Contou à polícia que eu não andava bem ultimamente, que não estava tomando os remédios, e que temia que eu tivesse machucado as crianças. A polícia já sabia disso quando me viu na maca, coberta do sangue deles. E eu não conseguia falar pra contar o que realmente aconteceu. Por fim me sedaram pra parar os gritos, e quando acordei estava algemada na grade da cama com um policial me encarando do canto do quarto.

Me levaram a julgamento, mas fui considerada inapta pra responder pelo crime. O psicólogo do estado que me avaliou concluiu que eu tinha entrado em estado catatônico e que, naquele torpor, eu era incapaz de compreender as acusações. E foi assim que vim parar aqui no Willow Grove, o hospital psiquiátrico forense de segurança máxima do estado. Presa junto com outros considerados inaptos pra julgamento, como eu, ou os que foram declarados não responsáveis criminalmente — o termo técnico pra não culpado por insanidade. E aqui fiquei esses últimos 3 anos, sob uma névoa constante de antipsicóticos e benzodiazepínicos, incapaz de contar a ninguém o que realmente aconteceu naquela noite em que me encontraram. Incapaz de contar o verdadeiro motivo de ter atacado meu marido tantas vezes, o motivo que só ele e eu saberemos para sempre.

Porque não fui eu que machuquei meus bebês preciosos naquela noite no mato.

Eu monitoro câmeras de segurança pra viver. Uma delas tá me mostrando agora mesmo

Trabalho pra uma empresa de monitoramento de segurança. A gente vigia os feeds de pequenos negócios. Postos de gasolina, depósitos, estacionamentos cobertos. Lugares muito pão-duros pra contratar seguranças de verdade.

Meu trampo é ficar sentado numa sala sem janela olhando pra doze monitores. Cada monitor vai rodando os feeds de clientes diferentes. Se eu vejo algo que merece ser reportado — roubo, vandalismo ou alguém desmaiado no banheiro —, corto o vídeo e mando pro cliente. Do contrário, só fico olhando.

Pego o turno da madrugada, das 23h às 7h. Quatro noites por semana. O salário é uma merda, mas dá pra fazer lição de casa entre os incidentes e ninguém me enche o saco.

No mês passado comecei a ver coisas nos feeds que não faziam sentido nenhum.

Coisas pequenas no começo. Uma câmera dava um glitch, mostrava estática por uns segundos e voltava. Ou o timestamp pulava pra frente, perdia uns minutos como se tivesse um buraco na gravação. Comentei com minha supervisora e ela disse que o sistema era velho, provavelmente HDs corrompidos. Mandou eu registrar os glitches e continuar trabalhando.

Os glitches pioraram.

As câmeras cortavam pra feeds que não estavam na rotação. Eu tava vendo o estacionamento quando a tela piscava e de repente eu tava olhando pra outro lugar. Corredores vazios. Escadas. Salas que eu não reconhecia. Depois piscava de novo e voltava pro feed normal.

Comecei a anotar todas as anomalias. Horários, locais, duração. Em duas semanas eu tinha trinta e sete incidentes. Nenhum padrão que eu conseguisse enxergar. Câmeras diferentes, horários diferentes, sempre rápidos. Nunca mais de dez segundos.

Aí eu me vi.

Era 3h47 de uma terça-feira. Eu tava vendo o feed de uma lavanderia 24 horas. A câmera aponta pra porta da frente e pra fileira de máquinas de lavar junto à vitrine.

A tela piscou. A imagem mudou.

Eu tava olhando pra uma cozinha. Pequena, antiquada. Piso de linóleo, armários brancos, luminária fluorescente. Uma mulher estava de costas pro balcão, despejando algo de uma panela num pote.

A mulher se virou.

Era eu.

Mesmo rosto. Mesmo cabelo. Mesma cicatriz na sobrancelha esquerda de quando bati a cabeça num balanço na terceira série. Ela olhou direto pra câmera por uns dois segundos, depois o feed voltou pra lavanderia.

Fiquei ali parado, olhando pro monitor. Minhas mãos tremiam.

Voltei o vídeo. Assisti de novo. Com certeza era eu. Com certeza uma cozinha que eu nunca tinha visto. O timestamp marcava 3h47, igual ao horário atual, mas a data estava errada. Mostrava uma data três dias no futuro.

Cortei o vídeo e salvei no meu drive pessoal.

Não contei pra supervisora. Fui pra casa quando o turno acabou e tentei dormir, mas ficava vendo aquela cozinha. Os armários brancos. A luz fluorescente. Eu nunca tinha estado naquela sala. Tinha certeza.

Mas a pessoa no vídeo era eu.

Na noite seguinte vigiei os monitores com mais atenção. Peguei um caderno e anotei toda vez que um feed deu glitch. A maioria era igual aos anteriores. Lugares aleatórios, flashes rápidos, nada identificável.

Às 2h18 vi a cozinha de novo.

Mesma sala. Mesmo ângulo de câmera. Dessa vez a cozinha estava vazia. Só o balcão, os armários, a luz. O vídeo rodou por seis segundos e cortou de volta pro posto de gasolina que eu devia estar vigiando.

Confiri o timestamp. Horário atual, mas data dois dias no futuro.

Comecei a puxar vídeos antigos do arquivo. A empresa guarda tudo por noventa dias antes de apagar. Voltei seis semanas de gravações da madrugada, procurando anomalias nos meus turnos.

Me encontrei em quarenta e três clipes.

Lugares diferentes. Roupas diferentes. Mas sempre eu, sempre com timestamp que não batia. Alguns no futuro. Alguns no passado. Uns poucos com datas que ainda não tinham chegado.

Num clipe eu caminhava por um corredor de concreto. Paredes institucionais, blocos pintados, portas pesadas com janelas de tela metálica. Eu usava jaleco hospitalar. Nunca tive jaleco. O timestamp dizia que tinha sido gravado oito meses atrás.

Em outro eu estava sentada num carro. Noite. Estacionado num lugar escuro. Eu estava chorando. Esse clipe era datado cinco dias a partir de agora.

Fiz cópias de tudo e tentei achar padrões. Horários do dia. Locais. O que eu estava vestindo ou fazendo. Nada se conectava. Os clipes pareciam aleatórios, espalhados por meses, me mostrando em lugares que eu nunca estive fazendo coisas que eu não conseguia explicar.

Aí encontrei o mais longo.

Dezoito minutos de vídeo de uma câmera que eu não conseguia identificar. Mostrava um quarto pequeno. Cama de solteiro, cômoda, uma janela com persiana. O timestamp dizia que tinha sido gravado três semanas atrás, às 4h33.

Eu estava dormindo na cama.

A câmera estava posicionada no alto, provavelmente fixada num canto perto do teto. Tinha visão clara de todo o quarto. Fiquei olhando eu mesma dormir por dezoito minutos. Não me mexi muito. De vez em quando mudava de posição. Em certo momento rolei e o cobertor escorregou.

Aos dezesseis minutos, eu me sentei.

Não como se estivesse acordando. Mais como se algo tivesse me puxado pra cima. Meus olhos estavam abertos, mas eu não olhava pra nada. Saí da cama, fui até a cômoda, abri a gaveta de cima. Tirei algo. Não dava pra ver o quê. Depois saí do quadro.

O vídeo continuou por mais dois minutos. Quarto vazio. Cama desarrumada. Depois cortou.

Eu não reconhecia o quarto. Não era meu apartamento. Não era lugar nenhum onde eu tinha ficado. Mas com certeza era eu na cama.

Comecei a carregar o celular pra todo lado, gravando tudo. Se eu estivesse sonâmbula ou tendo estados de fuga, talvez eu me pegasse fazendo algo que não lembrava.

Gravei oito horas por dia durante uma semana. Toda noite antes de dormir, toda manhã ao acordar. Gravei o turno inteiro no trabalho, o trajeto, o tempo em casa.

Nada fora do comum. Eu estava exatamente onde achava que estava, fazendo exatamente o que lembrava de ter feito.

Mas os clipes continuavam aparecendo nos feeds de segurança.

Vi eu mesma num estacionamento discutindo com alguém que eu não conhecia. Vi eu mesma num prédio comercial, passando por baias às 2h da manhã. Vi eu mesma parada num campo vazio ao anoitecer, só parada ali, sem me mexer.

Os timestamps estavam chegando mais perto do presente.

Tentei achar os locais. O estacionamento parecia genérico, mas rodei a cidade inteira conferindo todas as garagens que encontrei. Nada batia. O prédio comercial não tinha nada que identificasse. O campo podia ser qualquer lugar.

Pensei em ir à polícia, mas o que eu ia dizer? Que estava me vendo em câmeras de segurança que eu não tinha acesso, em lugares que nunca estive, em horários que não batiam com a realidade?

Semana passada me vi no meu próprio apartamento.

O feed deu glitch à 1h23. Quando voltou, eu estava olhando pra minha sala. Mesmo sofá, mesma estante, mesma TV. O ângulo era do canto perto do teto, igual à câmera do quarto que eu não reconhecia.

Eu estava sentada no sofá. Só sentada ali, olhando pra parede.

Levantei da minha mesa no trabalho e olhei em volta. Estava sozinha na sala de monitoramento. A porta fechada. Olhei de novo pro monitor.

Na tela, eu me levantei do sofá no meu apartamento. Fui até a janela e olhei pra fora. Depois me virei e olhei direto pra câmera.

Meu celular estava no bolso. Tirei, abri o app da câmera, troquei pra visão frontal.

Eu estava no trabalho. Luzes fluorescentes. Paredes cinzas. Monitores atrás de mim mostrando os feeds.

Na tela, vi eu mesma no apartamento sair do quadro.

O feed ficou mais dez segundos e depois cortou de volta pro depósito.

Fui pra casa quando o turno acabou. Revirei cada canto do apartamento. Cantos, teto, atrás dos móveis. Procurando câmeras. Algo tinha que estar me gravando.

Não achei nada.

Mas comecei a reparar em coisas que estavam levemente erradas.

Objetos mudados de lugar. Não muito longe. Uma xícara no balcão seis centímetros pro lado. Minhas chaves na mesinha de centro em vez do gancho na porta. Livros na estante em ordem diferente.

Coisas pequenas. Fáceis de achar que era falha de memória.

Só que comecei a testar. Antes de ir pro trabalho, arrumava objetos em padrões específicos. Três canetas na mesa formando triângulo. Quatro livros empilhados com a lombada pra fora. Quando voltava, os padrões estavam diferentes.

Alguém entrava no meu apartamento enquanto eu não estava.

Ou eu entrava no meu apartamento e não lembrava.

Configurei o notebook pra gravar enquanto eu estava no trabalho. Apontei pra sala, deixei rodando a noite toda. Quando cheguei em casa na manhã seguinte, conferi o vídeo.

Sete horas de uma sala vazia. Ninguém entrou. Ninguém mexeu em nada. Mas quando olhei pra mesinha de centro, o controle remoto estava do lado errado.

Tentei pensar racionalmente. Talvez eu estivesse mexendo nas coisas e não lembrando. Estresse, falta de sono, algum estado dissociativo. Marquei consulta com médico.

Mas os vídeos do trabalho continuavam piorando.

Vi eu mesma numa cabine de banheiro, sentada no chão. Vi eu mesma num porão com canos expostos e paredes de concreto. Vi eu mesma no porta-malas de um carro, encolhida, olhos abertos, sem me mexer.

Esse clipe era datado amanhã.

Ontem à noite vi eu mesma morrer.

O feed deu glitch às 4h52. Eu estava olhando pra uma sala que não reconhecia. Piso de azulejo, pia industrial, mesa de metal. Eu estava deitada na mesa. Sem me mexer. Olhos fechados.

Alguém entrou no quadro. Não dava pra ver o rosto. Usava luvas. Ficou parado em cima de mim por um tempo, só olhando. Depois pegou meu pulso, checou a pulsação.

Deixou meu braço cair e saiu do quadro.

O vídeo rodou mais três minutos. Só eu na mesa. Sem respirar. Depois cortou de volta pro feed normal.

O timestamp dizia que tinha sido gravado seis horas a partir daquele momento.

Liguei dizendo que estava doente. Falei pra supervisora que era intoxicação alimentar. Fui pra casa e tranquei todas as portas, conferi todas as janelas. Estou sentado na minha cozinha com todas as luzes acesas.

São 10h47 da manhã.

Em seis horas eu devo estar morta numa sala que nunca vi.

Mas é o seguinte que não sai da minha cabeça.

Puxei todos os clipes que salvei. Passei frame por frame. Procurando qualquer coisa que me dissesse de onde essas gravações estavam vindo.

No clipe de mim dormindo, aquele de dezoito minutos, tem um momento bem no final. Logo antes de cortar. A câmera se mexe. Só um pouquinho. Como se alguém tivesse ajustado.

E no canto inferior do quadro, por talvez meio segundo, dá pra ver um reflexo na janela.

Alguém parado no quarto. Me observando dormir.

A resolução é baixa demais pra ver detalhes. Mas dá pra ver o contorno. A forma.

Sou eu.

Sou eu que estou segurando a câmera.

Tenho que ir pro trabalho hoje à noite. Meu turno começa às 23h. Pensei em não ir, mas se eu já estiver morta até lá, que diferença faz?

E talvez quando eu chegar lá, finalmente veja de onde todos esses feeds estão vindo. Talvez eu encontre a fonte.

Ou talvez eu só assista acontecer.

Tenho ficado olhando os monitores pelo celular. O app da empresa deixa ver os feeds remotamente. Fico atualizando de poucos em poucos minutos.

Dez minutos atrás apareceu um clipe novo.

Estou na minha cozinha. Agora mesmo. Sentado à mesa com o notebook.

O ângulo da câmera é de trás de mim, por cima do ombro direito. Dá pra ver a tela. Dá pra ver o que estou digitando.

Olhei em volta na cozinha. Não tem nada atrás de mim além da parede.

Mas no celular, consigo me ver sentado aqui. Consigo ver a parte de trás da minha cabeça. Consigo ver minhas mãos no teclado.

O timestamp diz que está sendo gravado agora. Feed ao vivo.

Vou me levantar. Vou me virar.

Se tiver uma câmera, vou achar.

Se não tiver, então eu não sei o que estou olhando.

Acabei de me levantar e me virar.

Não tem nada aqui.

Mas no celular, ainda consigo me ver. Ainda sentado à mesa. Ainda digitando.

A pessoa na tela não se mexeu.

domingo, 14 de dezembro de 2025

Há uma Sombra no Meu Quintal, e Ela Está Aprendendo a Ser Eu

Era 1h47 da manhã quando eu acordei de sobressalto. Achei estranho — eu quase nunca acordo no meio da noite. Normalmente durmo direto até o dia clarear, mas ali estava eu, de boca seca, encarando o reloginho digital. A Lucy não estava do meu lado na cama. Por um segundo nem lembrei onde ela estava, depois caiu a ficha: ela estava no plantão noturno do hospital.

Meio zonzo, saí rastejando da cama e desci pra cozinha pegar uma água.

A casa ficava vazia e silenciosa à noite, igual o bairro todo. Eu amava essa casa: tranquila, bem localizada, a poucos minutos do centro. Os vizinhos eram gente boa também — mesmo com as casas e os quintais colados uns nos outros, nunca rolava briga. Eu estava ali na cozinha, inclusive pensando em marcar um churrasco com a galera. Bebi um gole d’água — e foi aí que eu vi.

Uma silhueta preta. Mal dava pra enxergar na escuridão da noite, mas se destacava mesmo assim. Lá no fundo do quintal, perto da cerca. Uma forma humana: alta, magra, o contorno quase imperceptível. E ela só ficava lá parada, sem se mexer, olhando pra dentro pela porta de vidro da varanda.

Um arrepio desceu pela espinha. Que porra era aquela parada no meu quintal, me encarando daquele jeito? Por um momento nem ousei me mexer. A figura também não. Parecia que nem respirava. Só ficava olhando pra dentro — olhando direto pra mim. Senti que se eu não fizesse nada agora, ela ia dar o primeiro passo.

Não demorou muito pra o pânico virar raiva. Peguei a lanterna que eu guardava numa gaveta da cozinha e saí feito um louco pra varanda. Abri a porta de vidro com tudo, apontei o facho pra figura — e achei que tinha enlouquecido.

Porque não tinha ninguém lá.

Não tinha ninguém. Varri o quintal inteiro com a lanterna. Não era um quintal grande — a Lucy e as crianças mantinham tudo arrumadinho —, então nem dava pra dizer que alguém podia estar escondido atrás de um arbusto ou no mato alto. Não sabia o que pensar. Dei de ombros, culpando os olhos cansados e o fato de ter acordado no susto no meio da madruga. Devia estar só exausto mesmo.

Voltei pra dentro, pra cozinha, pra terminar o copo d’água pela metade. Mas mal cheguei no balcão, vi de novo. Pelo canto do olho, uma figura preta alta — o contorno inconfundível. Lá no quintal, exatamente como antes, olhando pra dentro.

Engoli em seco. Não ousei gritar; o Francis e o Tommy estavam dormindo lá em cima, e o bairro inteiro em silêncio absoluto. Fiquei com os olhos cravados na figura parada. Dessa vez decidi que ia sair de novo — mas ia correr atrás, quem quer que fosse. Não ia deixar alguém me aterrorizar dentro da minha própria casa.

Voltei pisando forte pra porta da varanda, sem tirar os olhos da figura lá fora. Já estava quase na porta quando percebi uma coisa estranha. A figura não estava só parada. As pernas dela se mexiam exatamente como as minhas. No começo achei que era coincidência… mas quando parei, ela parou também. Perfeitamente sincronizado.

Como se eu estivesse olhando pro meu próprio reflexo — só que do lado de fora, no escuro.

Entrei em pânico. Andei de um lado pro outro na cozinha. Lá fora, a figura fez o mesmo. Dava o passo igual ao meu. No começo realmente pensei que fosse algum tipo de reflexo, mas tinha algo errado nos passos dela. Como se estivesse só agora aprendendo a andar — às vezes desajeitada, às vezes sem saber onde colocar o pé. Que caralho era aquela coisa no meu quintal? Por que estava me imitando — e, mais importante, o que ela queria?

Não sabia o que fazer. A única ideia que tive foi apontar a lanterna de novo. Mas no instante em que acendi o facho de dentro da cozinha, não tinha nada. Só o reflexo da janela voltando pra mim. O quintal estava vazio outra vez.

Apaguei a lanterna, e a figura sumiu. Desapareceu. Nem uma silhueta no fundo do quintal. Era como se tivesse se dissolvido na escuridão.

Fiquei ali parado uns minutos, apavorado achando que não tinha ido embora de verdade — só se escondido em algum lugar que eu não via. Devo ter ficado uns meia hora ali, olhando pela janela da cozinha. Procurei em tudo, mas a figura não aparecia mais.

Como era quinta-feira de madrugada e eu tinha que trabalhar no dia seguinte, acabei subindo de novo. Conferi os meninos: os dois dormindo pesado. Da janela do quarto fiquei de olho no quintal mais um tempo, mas a figura não voltou. No fim, peguei no sono — embora cada nervo do meu corpo tivesse pavor de acordar e dar de cara com ela de novo.

O dia inteiro, a noite anterior ficava voltando na minha cabeça. Por que eu tinha acordado tão no susto? Quem — ou o quê — tinha estado no meu quintal? Contei pra Lucy à tarde, mas ela achou que eu estava zoando. Insistiu que eu devia estar cansado, talvez fosse algum tipo de paralisia do sono. Mas no fundo eu sabia que era outra coisa.

A noite chegou de novo. A Lucy tinha que acordar cedo no dia seguinte, então já tinha deitado. Eu não conseguia descansar. As crianças dormiam, e eu fiquei na cozinha, só vigiando. Lá pela meia-noite e meia, acabei cochilando no sofá. Acordei todo duro e dolorido. A casa estava escura, iluminada só pelo brilho da televisão. Meio grogue, levantei e fui pra cozinha pegar água. Foi aí que lembrei por que tinha ficado acordado até tão tarde.

Ela estava lá de novo. No quintal. A sombra preta em forma de gente. Observando.

Desconfiado, fiquei encarando de volta. Cheguei mais perto da janela, tentando distinguir o que era. Mas ela não se mexia — só ficava lá, alta e magra, uma silhueta preta.

Aí me veio uma ideia. Corri pegar o celular no sofá e voltei voando pra cozinha.

Tirei uma foto, mas na escuridão da noite quase não apareceu nada. Talvez tivesse uma figura na tela… ou talvez fosse só algum borrão da foto granulada.

Mas enquanto eu levantava o celular e tirava fotos da sombra, ela começou a me copiar. Desajeitada, como se não tivesse dedos de verdade. Ergueu o braço, mas o pulso dobrou errado, os dedos mais parecendo varas longas e quebradiças. Fingiu tirar foto também, embora a mão se mexesse de um jeito que parecia que ia partir ao meio.

Fiquei olhando pela janela da cozinha outra vez, os nervos à flor da pele. A figura preta não se mexia — só ficava vigiando as janelas da casa. Aí, de repente, começou a se mexer. Mas dessa vez não estava me imitando. Se mexia como se estivesse procurando alguém, olhando em volta com aqueles movimentos bruscos e desajeitados. Que porra ela estava fazendo? Depois, do nada, congelou de novo.

“Gordon, o que você tá fazendo?” a voz da Lucy sussurrou atrás de mim.

Quase tive um treco. Nem tinha percebido ela chegando. Estava totalmente absorto, perdido olhando pra figura no quintal.

“O quê?” gaguejei, assustado.

“O que você tá fazendo, Gordon?” ela chiou irritada. “São três da manhã e você tá aqui parado, olhando pela janela da cozinha. Que porra é essa?”

“Vem ver!” falei rápido, quase animado.

A Lucy veio pro meu lado. Ela ia pegar café mesmo, mas pelo menos olhou pela janela pro escuro.

No começo só revirou os olhos. Mas no instante em que viu, o sangue sumiu do rosto dela. Deu um passo pra trás, como se o vidro não protegesse mais da noite. Dava pra ver que ela tinha visto também. A figura no nosso quintal assustava ela tanto quanto me assustava.

“Que porra é essa, Gordon?” ela sussurrou, o pânico já na voz.

Só balancei a cabeça. Não sabia o que a gente estava olhando. Era humano sequer? Ou era algo completamente diferente — algo que não era desse mundo?

“Gordon, liga pra polícia,” a Lucy disse, branca que nem fantasma.

“E o que eu vou falar pra eles, Lucy?” retruquei nervoso. “Que tem uma sombra no meu quintal?”

Ela me fuzilou com os olhos, já puta da vida. Eu conhecia aquele olhar — se eu insistisse mais, ela ia ficar bem mais assustadora que a coisa parada lá fora.

Foi a Lucy quem acabou ligando pra polícia. Não me deu muito tempo pra reagir, mas eu entendi — ela estava nervosa e com medo.

Enquanto isso, eu não tirei os olhos da figura enquanto a Lucy falava no telefone. A sombra preta não se mexia. Ou melhor, só copiava a Lucy enquanto ela falava. Enquanto eu observava, percebi que estava ficando melhor — imitava os gestos dela com mais fluidez, quase natural.

“Daqui a pouco eles chegam. O que essa coisa tá fazendo?” a Lucy sussurrou, chegando do meu lado de novo.

“Está te copiando,” falei seco. “Enquanto você estava no telefone. Agora só tá olhando.”

“Essa coisa me dá um arrepio do caralho, Gordon,” a Lucy disse, apertando meu braço. “Me sinto tão insegura, e tô com medo pelas crianças.”

“Os meninos estão bem,” respondi calmo. “Já conferi eles.”

Não saímos da janela da cozinha. Ficamos só ali parados, olhando pra fora, até a Lucy finalmente ver o flash das luzes da viatura na frente da casa.

Chegaram dois policiais. A Lucy subiu pros meninos, e eu só tirei os olhos da sombra o tempo suficiente pra abrir a porta pra eles. Mas quando voltamos pra cozinha, ela tinha sumido. O quintal estava escuro e vazio.

Os policiais revistaram o quintal inteiro, até deram uma olhada rápida dentro de casa, mas não acharam nada. Não contamos exatamente o que tínhamos visto — pra falar a verdade, a gente mesmo não sabia. Só falei que alguém tinha ficado parado no quintal, e a gente não fazia ideia de quem era.

O lance da polícia não deu em nada.

A Lucy acabou indo pro trabalho. Consegui dormir um pouco depois que os policiais foram embora. Eles prometeram patrulhar o bairro e dar uma passada na nossa casa de vez em quando.

A figura preta não voltou. Mas demorei muito pra pegar no sono de novo — tinha sido a segunda vez que eu via ela, e a segunda vez que simplesmente desaparecia.

Minha sexta passou rápido. Levei as crianças pra escola, e como era sexta, tive só meio período no escritório. Mas quando cheguei em casa, levei um susto: a Lucy estava na sala, com todas as nossas coisas já arrumadas pras quatro pessoas.

Ela disse que não ficava mais ali. Que a gente devia ir tudo pra casa dos pais dela. Mas eu não queria sair da nossa casa. Era nossa, o nosso lar. Não ia jogar tudo fora por causa de uma sombra — eu era feito de material mais forte que isso. Discutimos um tempo, e no fim ela e as crianças foram pros pais dela pro fim de semana, enquanto eu fiquei pra resolver essa parada da sombra de uma vez por todas.

A primeira coisa que fiz foi comprar uma câmera. Instalei uma câmera com visão noturna do lado de fora, apontada direto pro lugar onde a sombra costumava aparecer. O segundo passo foi comprar uma pistola de gás. Tinha certeza que naquela noite ia acabar com essa palhaçada de susto.

À noite, me tranquei no quarto. Fiquei olhando o feed da câmera do quintal no notebook, rodando na base da cafeína pra garantir que não ia dormir até a sombra finalmente aparecer.

Devo ter cochilado. Quando acordei, já tinha passado da meia-noite faz tempo. O notebook tinha travado a tela. Em pânico, destravei e abri a câmera do quintal.

O vídeo não mostrava nada. O quintal estava completamente vazio. Mas quando aumentei o volume pra ouvir o áudio, peguei algo.

“Foi vista aqui ontem também?” perguntou uma voz de homem.

Depois veio só um barulho confuso, como alguém tentando falar mas sem conseguir formar as palavras.

Eu sabia que era a sombra. Peguei a pistola e, feito quem não conhece medo, desci pisando forte pra cozinha.

Ela estava lá de novo, parada no quintal. O negócio todo era desconcertante: na câmera, nada aparecia — mas pessoalmente, lá estava ela. Abri a porta da varanda com força e apontei a pistola de gás pra sombra.

“Sai daqui, seu filho da puta!” gritei.

Ela não se mexeu. Em vez disso, com gestos estranhos, tortos e lentos, imitou apontar algo pra mim — embora as mãos estivessem vazias.

Na minha fúria, apertei o gatilho. A pistola deu um estalo alto, e o tiro acertou a cerca do quintal. Passou direto pela figura como se ela fosse mesmo só sombra.

Fiquei de boca aberta. Como eu podia ter achado que uma pistola de gás ia parar essa coisa? Quando abaixei a arma, ela abaixou as mãos também. Fiquei só ali na porta da varanda, encarando no escuro a silhueta preta alta que nunca dava pra ver direito.

“Que porra você é?” sussurrei, quase só pra mim mesmo.

“Gordon, o que você tá fazendo?” falou a voz da Lucy.

Mas a Lucy não estava lá. Ela não tinha voltado pra me checar. A voz veio de fora — do quintal, onde a figura estava.

Fiquei todo arrepiado, as pernas tremendo.

“Senhor, infelizmente não encontramos nada.” Veio outra voz em seguida, dessa vez de homem. Era a voz do policial da noite passada.

Um gelo correu nas minhas veias. Que caralho era essa coisa no meu quintal? A gente morava ali fazia sete anos — por que agora? Por que aqui?

E foi nesse momento que minha coragem acabou de vez.

“O que eu devo falar pra eles, Lucy?” veio a minha própria voz do quintal.

E no instante em que falou essas palavras, a sombra disparou — direto pra cima de mim. Correu como um atleta profissional.

Apavorado, entrei correndo na cozinha, peguei a chave do carro no criado-mudo e saí voando pela porta da frente. Atrás de mim ouvi passos pesados se aproximando, e sem parar, a minha própria voz repetindo:

“O que eu devo falar pra eles, Lucy?”

Saí de casa direto pro carro. Pulei dentro, tremendo todo pra encaixar a chave na ignição. E aí eu vi: uma figura preta parada na porta aberta da casa. Tão alta que quase encostava no batente de cima.

Ela não veio atrás. Só ficou lá, olhando. Enquanto eu saía de ré com o carro, peguei um último vislumbre dela no retrovisor — erguendo a mão pra dar tchau. Primeiro rígido e travado, como se não soubesse mexer os braços direito… depois de repente fluido, como o aceno de um velho amigo.

sábado, 13 de dezembro de 2025

Eu não tenho cachorro

Moro num prédio alto, daqueles que só dá pra acessar por um túnel duplo de trem ou carro. Anos atrás isso aqui era uma base militar, mas foi convertido em moradia residencial. O lugar é bem sombrio, e todo mundo que mora aqui se mudou ou ficou pelo mesmo motivo: a gente queria isolamento. Por ser tão isolado — praticamente uma ilha —, temos todas as comodidades necessárias pra sobreviver sozinho. Tem academia, escola fundamental, consultório médico, delegacia e umas poucas lojinhas. Eu trabalho numa loja de conveniência simples no quarto andar.

Acordei numa manhã fria de inverno e dei de cara com minha goldendoodle branca gigante deitada na cama comigo. Ela me manteve aquecido, e aquele cheiro familiar de pipoca dela me fez sorrir na hora que eu voltei à consciência total. Dei um carinho na cabeça dela e nós nos levantamos juntos. Enquanto eu me vestia, ela foi pra sala e se apoiou no parapeito da janela pra olhar a paisagem completamente branca lá fora — estava rolando uma nevasca dos infernos. Não tinha tigela nem ração na cozinha. Fiz uma nota mental pra comprar umas coisas no caminho de volta do trabalho, mas ela era uma cachorra grande e aguentava ficar sem uma refeição. Deixei um pote de cerâmica com água na cozinha, dei um carinho de despedida e saí.

No elevador antigo, mas confiável, trombei com Agnes Keller, uma mulher de meia-idade do nono andar. Ela estava com aquelas roupas cor-de-rosa de sempre. Agnes trabalhava no consultório com o Dr. Pyre. O que me chocou foi que o rosto enrugado dela estava rachado num sorriso. Ela era famosa por ser uma das pessoas mais carrancudas do prédio. Acho que nunca tinha visto nada além de uma cara fechada daquela mulher até hoje. Dei um oi simples e não quis estragar o bom humor dela fazendo perguntas. Mas ela mesma se explicou sem eu pedir. O filho dela tinha contado uma piada engraçada naquela manhã. O engraçado é que Agnes não tinha filho.

Marcus Lin estava andando de um lado pro outro na loja com uma prancheta na mão e me olhou com aquela mistura habitual de desprezo e insatisfação. Meu gerente me botou pra trabalhar na hora, mandando pro estoque repor mercadoria. Por sermos tão isolados, o depósito atrás da loja era enorme e lotado de suprimentos de emergência, bem além do padrão normal. Lin gostava de tocar a loja como se estivéssemos no meio de um centro turístico lotado. Eu aguentava o estilo ditatorial dele porque isso fazia os dias passarem rápido. Depois do nosso “horário de pico” da manhã — umas seis pessoas, mais ou menos —, desci o corredor onde ficava a ração pra cachorro. Um pensamento esquisito me veio à cabeça enquanto eu olhava as poucas opções. Lembrei de uma conversa com Lin em que ele reclamava que a única razão pra gente estocar aquela porra de ração era por causa da Sra. Innes, do segundo andar. Ela era a única pessoa no prédio que tinha cachorro.

Lin me liberou pro intervalo obrigatório de quinze minutos e eu voltei pro meu apartamento com uma lata de ração na mão. Meu gerente nem comentou a compra. A cachorra estava sentada no sofá assistindo TV. Ela tinha um cheiro tão familiar, e só de ver aquela criatura fofinha já dominava qualquer sensação de desconforto com uma tranquilidade gostosa. Ela correu na minha direção e se esfregou na minha perna, ganhando uma coçada na barriga. Nem pensei em como ela tinha ligado a TV. Ela devorou a ração com gula e abanou o rabo. Lin ia me dar um sermão daqueles se eu demorasse mais que o permitido, então deixei a cachorra com a promessa de levá-la pra passear no meu intervalo de almoço maior. Só quando já estava de volta no elevador é que percebi que eu não conseguia lembrar o nome da minha própria cachorra.

Quando voltei pra loja, fiquei surpreso de não encontrar Lin. Ele nunca deixava o lugar sem ninguém e fazia os intervalos ali mesmo, comendo macarrão instantâneo e me criticando. Aí encontrei o bilhete escrito à mão dele. Ia passar o intervalo de almoço em casa com a esposa. O Sr. Lin não era casado. Minha cabeça começou a ficar enevoada enquanto eu tentava juntar as peças da manhã. Uma sensação esmagadora de pavor subiu dos meus pés, fazendo minha pele arrepiar e os cabelos ficarem em pé. Repetidas vezes eu revivia a memória vívida de acordar ao lado da minha cachorra e depois vê-la sentada no sofá. Por que eu tinha lembrado dela como branca e fofa? Ali parado na loja, lutando pra não gritar, eu soube com uma certeza absoluta que a coisa que estava me esperando no apartamento na verdade era magra, cinza e tinha dentes afiados.

sexta-feira, 12 de dezembro de 2025

De onde caralhos tá vindo esse sangue?

Sou lurker antigo aqui e resolvi contar uma parada que rolou com meus pais há uns 30 anos. Eu sou viciado em história paranormal, adoro quebrar a cabeça tentando achar explicação lógica, mas essa aqui sempre me deixou de cara, deixou meus pais (os dois céticos pra cacete) e qualquer pessoa que eles contaram também. Então queria saber se alguém já passou por algo parecido ou tem uma explicação minimamente razoável.

Em 1995 meus pais moraram em Bangalore, na Índia, por quase um ano porque meu pai pegou um trampo temporário lá. Como era só um contrato curto, quando a empresa ofereceu um duplex pra alugar eles toparam na hora. Veio com as regalias típicas da classe média alta indiana: duas empregadas que corriam atrás de limpeza, mercado e quase toda a comida. Vida mansa pra um casal recém-casado e sem filho, praticamente tudo resolvido pra eles.

Na época minha mãe não trabalhava, ficava em casa enquanto meu pai ia pro batente. No mesmo andar tinha outro apartamento com uma véia morando sozinha. Minha mãe cumprimentava educada, mas a mulher sempre olhava torto e deixava ela desconfortável. Na terceira ou quarta vez que se falaram, a véia perguntou:  

“Tá tudo bem morar nesse apartamento?”  
Minha mãe deve ter feito que sim com a cabeça, aí a mulher insistiu:  

“Você não sente nada não?”  

Minha mãe ficou bolada com a pergunta, mas a véia não explicou porra nenhuma. Depois disso, toda vez que se cruzava no corredor a velha mandava: “Não fica sozinha aí não, filha.” Minha mãe achou que era só paranoia de idoso mesmo.

Numa manhã normal, solzão e fresquinho, umas 8h. Uma das empregadas tinha acabado de passar pano no chão, minha mãe e minha avó paterna (que tava de visita rápida) tavam na cozinha, meu pai tava na sala numa das poltronas lendo jornal. O esquema era duas poltronas com uma mesinha no meio onde ficava o telefone fixo, e uma sacada grande com porta de correr do lado esquerdo de quem tá sentado.

O telefone toca. Minha mãe atende, era um parente ligando pra avisar que minha bisavó materna tinha batido as botas – tinha mais de 90 anos, morte natural. Minha mãe era muito apegada pra caralho com a avó, ficou super abalada. Passou o telefone pro meu pai falar também. Quando ele estica o braço pra pegar, cai uma baita gota de um troço que parecia sangue no chão. Depois uma menor, depois outra, outra, até parar perto da porta de correr, sem acertar o pé dele. Eles descrevem como aquele sangue vermelho vivo de quem corta o pulso.

Depois que desligaram, os dois se olharam totalmente perdidos. A empregada tinha acabado de limpar, ninguém tava cortado, teto sem infiltração… então que porra foi aquela? Mesmo sendo céticos, não acharam explicação nenhuma. A empregada, que ainda tava ali, se recusou a chegar perto, então o negócio ficou lá. Com o tempo o “sangue” secou, virou um pozinho marrom. A vida seguiu, minha mãe ficou meio bolada e começou a seguir o conselho da véia: passava as tardes numa biblioteca ali perto. Meu pai encontrava com ela na volta do trabalho e eles voltavam juntos.

Meses depois, o incidente já tava quase esquecido. Era a última noite deles naquela casa – no dia seguinte pegavam voo cedinho e davam adeus pra Bangalore pra sempre. Tavam no quarto arrumando mala, minha mãe deixou alguma coisa cair no chão, abaixou pra pegar e… replay do caralho. Mesma coisa: uma gotona + várias menores, passando do lado da mão dela sem acertando o chão. Dessa vez os dois piraram de vez, chegaram a pensar em ir pra hotel passar as poucas horas que faltavam. Saíram de Bangalore sem explicação nenhuma.

O próximo casal jovem que ia morar lá era amigo deles, mesmo trampo na empresa. Eram ainda mais céticos, deram risada das histórias dos meus pais e se mudaram de boa. Numa madrugada, a mulher acordou com sede, desceu pra pegar água. Quando tava subindo a escada, começou a mesma merda: a cada degrau que ela subia, caía uma gota de sangue do lado do pé dela. Ela levou um susto do caralho, teve uma crise epilética e caiu escada abaixo. O barulho acordou o marido, que veio correndo e levou ela pra cama. Ela ficou bem depois.

De manhã o marido tava convencido que era pegadinha. Raspou o sangue seco com um pedaço de papelão duro, botou num vidrinho e ia levar pro laboratório no caminho pro trabalho. Saiu do prédio, chamou um auto-rickshaw (aquele triciclo motorizado, tuktuk), entrou. No segundo que ele sentou, o motorista perdeu o controle do nada, o auto rodopiou 360°, jogou ele e a pasta do trabalho pra fora. Motorista saiu ileso, o cara quebrou o braço e o vidrinho sumiu do bolso fundo da pasta fechada.

Tem mais umas coisinhas menores que rolaram nesse apê, mas já tá gigantesco, então paro por aqui. Por fim: o apartamento ainda existe, a gente já passou na frente várias vezes quando vai pra Bangalore.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

Tem uma coisa no meu quarto enquanto eu durmo…

Duas coisas eu sei com certeza. A primeira é que ela tá lá. A segunda é que ela tá se matando pra eu não perceber que ela tá lá.

É silenciosa, isso que eu quero dizer. Silenciosa pra caralho. Tão silenciosa que eu fico me questionando o tempo todo à noite. De dia também, até agora que eu tô escrevendo isso. Mas eu tenho certeza absoluta que tem alguma coisa. São coisinhas pequenas, só que frequentes. Constantes. Algo arranhando o assoalho de madeira. O lençol lá na ponta da cama, aquele pedaço que fica pendurado pra fora, deslizando quando alguma coisa passa por baixo. Eu deixo roupa na cadeira da escrivaninha o tempo todo, também escuto elas se mexendo.

Parece exatamente o barulhinho que minha gata fazia antigamente, quando eu tinha bicho. Aquela movimentação de um bicho pequeno e noturno andando pela casa no meio da madrugada. Sabendo que você tá ali. Só que eu não tenho gato há anos, e nunca tive nesse apê.

Moro com três colegas numa casa estranha pra cacete. Não estranha de assustadora, mas é uma casa antiga que virou apartamento colocando parede em lugar doido, então eu tenho um closet que fica embaixo da escada do apê do lado. O teto do closet é inclinado e vai longe pra dentro quando você entra. Quando a gente se mudou, encheu aquilo de caixa e traste que ainda não tinha lugar, e nunca desempacotamos direito, então virou um labirinto bem ali no meu quarto.

Tenho quase certeza que é pra lá que ela vai de dia. Não fui muito fundo porque, pra ser sincero, tô com medo de encontrar.

Você deve tá pensando: “porra, então dorme no sofá ou se muda logo”. A noite passada foi a primeira vez que eu tive certeza absoluta que era real. Como eu disse, ficava sempre na linha do “pode ser nada”, então eu ignorava. É a casa assentando. Aquecimento de inverno fazendo madeira dilatar. Sabe quando você joga um moletom no encosto da cadeira e demora uma hora pra cair no chão fazendo barulho, mesmo ninguém encostando? Eu ficava botando na conta disso. Sempre tinha uma explicação plausível. Talvez seja assim que ela se safe.

A desconfiança já vinha crescendo faz tempo. Ontem à noite me deixou 100%. Ultimamente eu tava demorando mais pra pegar no sono. Costumo dormir com vídeo rolando, white noise, essas coisas. Ontem meu celular morreu, o carregador tava do outro lado do quarto, era 1h da manhã e eu tava com preguiça de levantar. Então fiquei lá deitado no escuro, olho fechado, tentando forçar o sono. Não conseguia dormir, mas acho que passou tempo suficiente pra ela achar que eu tava apagado.

Comecei a ouvir de novo. Bem fraquinho. Sabe quando você tem que se concentrar pra ouvir, senão perde? Batidinhas vindo da porta aberta do closet. Passos mais abafados quando chegava no tapete. Roçou no cobertor que tava pendurado na beira da cama, eu senti ali do lado.

Aí eu ouvi a respiração e fodeu. É baixo, rente ao chão, por isso que eu pensei em bicho antes. Vai ver é rato, roedor, explicação normal. Só que essa respiração parecia humana. Meio aguda, chiada. Dava pra ouvir que a boca tava aberta.

Abri o olho sem querer. Talvez meu corpo tenha ficado tenso. A respiração parou na hora. Como se ela tivesse percebido. Por algum motivo meu instinto foi fechar o olho de novo e fingir que tava dormindo. Sabe quando você era criança, ficava acordado até tarde e ouvia seus pais vindo pelo corredor? Você sabia que tinha que fingir um segundo antes deles abrirem a porta? Foi exatamente essa sensação, só que gelada dos pés à cabeça.

Ouvi ela andando de novo, tão leve, tão cuidadosa. Sentia ela chegando cada vez mais perto do meu rosto. Mesmo de olho fechado eu sentia a presença, o calor do corpo ou alguma merda assim. Eu sabia que se abrisse o olho ia dar de cara com ela. Uma parte de mim até queria, só pra saber o que era, mas eu não consegui.

O pior foi que ela simplesmente ficou ali. Perto pra caralho. Parada, respirando baixinho. Não fez nada, não me tocou, não foi pra outro lugar, ficou ali horas. Horas mesmo. Não preguei o olho a noite inteira. Em algum momento senti ela indo embora e minutos depois senti a luz do sol batendo na minha pálpebra. Já tava amanhecendo. 7h da manhã.

Isso foi hoje de manhã. Já tá quase escurecendo de novo. Não sei o que eu vou fazer. Não consigo dormir aqui essa noite. Mas também não quero deixar essa coisa sozinha com as pessoas que moram comigo, e eu sei que vou parecer completamente louco se tentar explicar o que rolou. Mas eu sei o que eu sei.

Eu sei que ela tá aí.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2025

A Emma não é a Emma

Eu e minha namorada fomos passar um final de semana fora, mas não era ela que tava naquela cabana comigo.

Tudo começou quando a gente decidiu marcar essa escapadinha. A gente falava nisso fazia tempo e, com o trampo dos dois ficando uma merda e a vida em geral pesando, pegamos uma grana que tínhamos guardado e alugamos uma cabana no Lake District por um feriadão: sexta até segunda.

No dia antes de viajar, reparei que a Emma não tava bem. Ela disse que não era nada físico, só uma sensação estranha. Pelo jeito que ela descreveu, pra mim parecia nervosismo misturado com pavor. Ofereci pra adiar ou até cancelar tudo, mas ela bateu o pé que a gente ia mesmo. Beleza, partiu.

Chegamos na cabaninha por volta das cinco da tarde. Logo de cara já senti uma mudança na Emma: quanto mais a gente se aproximava, menos ela falava. Quando entramos, ela nem comentou nada sobre o lugar. A casa mais próxima ficava a pelo menos um quilômetro e meio do outro lado do lago, bem do jeito que eu planejei pra ela, porque no trabalho dela ela lida com um monte de idiota e eu achei que ficar totalmente isolada ia fazer bem. Mas nem um “nossa, que lindo” saiu da boca dela.

Conforme a noite foi caindo, fizemos janta. Tentei puxar papo, mas ela tava monossilábica. Achei que era cansaço da viagem e aquele mal-estar que ela tava sentindo. Coloquei os pratos na sala pra gente comer na frente da lareira. Quando botei os pratos na mesinha, percebi que ela não tava mais atrás de mim. Um segundo antes ela tava ali, carregando as bebidas. Olhei pro corredor que levava pra cozinha: escuridão total. Cadê ela?

“Amor?” chamei, esperando um “esqueci o celular na cozinha” ou qualquer coisa normal. Nada. Só o silêncio sinistro e o estalo da lenha queimando.

Não era o fim do mundo, sentei e comecei a procurar um filme pra gente ver enquanto comia. Passaram uns cinco minutos, zero barulho na casa inteira. Chamei de novo: nada. Fiquei prestando atenção em porta fechando, descarga, qualquer coisa. Até que ouvi um rangido lento e calculado bem atrás do sofá onde eu tava sentado. Impossível ela ter chegado ali sem passar do meu lado direito, que era o corredor da cozinha, ou sem eu ver ela indo pro quarto, que ficava exatamente atrás de mim.

Desliguei a TV na hora pra ouvir melhor. E gelei. No reflexo da tela preta eu vi minha namorada: cabelo pingando, roupa rasgada e encharcada, sorrindo feito psicopata a menos de 30 cm das minhas costas. Pulei do sofá e me virei: ninguém. Nem poça no chão, nada. Mas os rangidos continuavam, como se ela ainda estivesse ali, só que eu não conseguia ver.

Fiquei encarando o corredor do quarto sem piscar, esperando outro rangido pra localizar o que quer que fosse aquilo.

“Ei amor, tá tudo bem?” uma voz veio do meu lado esquerdo. Eu dei um grito e quase derrubei a comida toda.

“Porra, que susto! Parece que você viu um fantasma”, ela falou rindo de leve.

“Que porra, de onde você saiu?”

“Tive que fazer xixi, posso?” respondeu sarcástica.

Tentei controlar a respiração e sentei do lado dela, que agora tava preocupada de verdade.

“O que aconteceu?”

“Achei que vi… alguém no reflexo da TV.”

“Tem certeza? Não era o cabideiro do lado da porta? Quantas taças de vinho você já tomou mesmo?”

Fiquei na dúvida, mas concordei. Vai ver minha cabeça tava zuando comigo porque eu já tava meio tenso. Só queria esquecer essa parada estranha. Assistimos TV, mas eu não conseguia parar de sentir que tava sendo observado. De vez em quando ouvia um pingo bem fraquinho, tipo água caindo no chão de madeira logo atrás de mim.

Na hora de dormir eu ainda tava meio cagado. Quis falar sobre aquilo, mas como que eu ia dizer “ei amor, por que você apareceu feita uma doida no reflexo da TV e depois teleportou?”. Sempre acreditei pra caralho em fantasma e coisa do tipo, a Emma não. Não queria virar piada, porque realmente parecia loucura.

A noite foi tranquila, uns barulhinhos na casa escura que dava pra explicar, nada demais. Talvez eu não tivesse visto mesmo o que achei que vi e a cabana não fosse mal-assombrada pra cacete. Com esse pensamento fechei os olhos e dormi.

Sonhei pesado com o lago: eu e a Emma fazendo piquenique na beira, sol brilhando, passarinho cantando, cena perfeita. A gente levantou e correu pra margem. Olhei pra baixo, ri das ondulações que deixavam a gente parecendo estranho na água.

A água acalmou. Foquei no reflexo da Emma. Ela tava com um sorriso assustadoramente largo, e a cabeça girou pra me encarar enquanto o corpo continuava de frente. Levantei o olhar rápido pra cara dela de verdade: tava tranquila, olhando o horizonte. O oposto total do que eu tinha acabado de ver no reflexo. Acordei na hora, olhei pro lado: ela dormindo, roncando do mesmo jeitinho de sempre. Soltei o ar e tentei voltar a dormir, torcendo pra sonhar menos fudido dessa vez.

No dia seguinte parecia que nada tinha acontecido. Caminhamos, rimos, curtimos pra caralho. Teve umas duas vezes que peguei ela olhando pro nada, sussurrando coisas, mas quando eu falava com ela ou quando percebia que eu tava olhando, voltava ao normal. À noite, porém, não sei pra onde minha namorada foi nem o que tava no lugar dela.

Cozinhamos, jantamos, vimos TV, tomamos banho, fomos pra cama. Tudo normal… até a hora de dormir. Ela já tava de lado, começando aqueles roncos leves. Mas eu não conseguia me sentir seguro. Uma intuição fudida gritando que eu não devia dormir, que não era seguro. Sei lá o que me deu, resolvi descer pra sala e ler uma hora mais ou menos, no escuro, sozinho. Nem eu me acho tão esperto assim, mas foi o que eu fiz.

Nem vi o tempo passar: já tava na poltrona marrom grandona, de costas pra parede da TV, encarando o corredor do quarto, com o corredor da cozinha do lado esquerdo. O livro tampava quase toda a minha visão periférica. Devia ter uns 15 minutos que eu tava lendo quando ouvi um “Ei” seco e rápido no meu ouvido esquerdo.

Bati o livro na mesa e virei pra todos os lados. Tinha uma luminária fraquinha do lado, a luz não chegava no fundo dos corredores, mas não importava: a voz veio a centímetros do meu ouvido. Fiquei meio tenso, mas ignorei. Vai ver era tipo quando você tá de fone e acha que alguém te chamou. Voltei a ler.

Quinze minutos depois: outro “Ei” seco, agora no ouvido direito. Reagi rápido, olhei tudo. Juro que vi um vulto sumindo no corredor. Sussurrei o nome da Emma caso fosse ela, sem resposta. Esperei mais um pouco e decidi subir pra dormir. Quando tava dobrando o cobertor, veio um “EI!” mais alto e puto. Dessa vez não tinha como ser imaginação: era voz real, senti até o hálito gelado e podre na minha pele.

Virei esperando ver alguém, um ladrão, ou a Emma fazendo pegadinha (o que seria muito fora do normal dela). Nada. Espaço vazio e mal iluminado. Apertei o passo pro quarto, pelo menos lá eu não ficava sozinho. Quase chegando, olhei pra trás, devia ter deixado quieto.

Vi um vulto se escondendo rápido atrás da cortina. Não deu pra não ver o cabelo castanho avermelhado comprido que ficou pra fora. Quase ri de nervoso: era a Emma, óbvio, tentando me assustar pra se vingar daquela vez que eu pulei nela. Fui abrir a porta do quarto pra fingir que entrei e pegar ela desprevenida atrás da cortina, mas antes que eu conseguisse, vi pelo canto do olho.

Minha namorada dormindo exatamente na mesma posição e ritmo de antes.

O mundo parou. O que caralhos tava atrás daquela cortina?

Entrei no quarto, tranquei a porta e tentei bolar um plano. Acordei a Emma, expliquei o que vi. Ela apontou pro taco de beisebol do lado da porta e fomos conferir. Claro, não tinha porra nenhuma. De novo me convenceram que eu vejo filme de terror demais.

Ela tava morta de sono e não acreditou em nada, voltamos pra cama. Consegui dormir eventualmente, com um braço pra fora da cama segurando firme o taco.

O sono daquela noite foi uma bosta: pesadelo atrás de pesadelo, tudo muito louco e sem sentido, menos um. No sonho eu acordava, Emma não tava do meu lado. Calçava o chinelo e saía procurando. Ouvi arranhões na parede, segui o barulho e achei a Emma, ou o que tentava ser ela, agachada no canto, estalando o corpo inteiro enquanto se contorcia. Pus a mão no ombro dela, ela virou rápido e cravou uma faca na minha costela. O sorriso não vacilou, só cresceu. Enquanto eu caía no chão apertando o ferimento, ela sussurrou “não sai da cama”. Acordei, já era manhã.

Acordei moído, sem dormir direito e, pra ser honesto, puto. Eu nunca menosprezaria um medo da Emma, e ela fez exatamente isso comigo. No café da manhã fiquei quieto, sem falar nada. Ela percebeu que me chateou, eu me senti culpado, mas precisava ser assim por enquanto.

Umas horas depois ela falou que tinha uma surpresa. Fui atrás dela até a beira do lago: um piquenique montado. Me fez sorrir.

Lá tava minha Emma de volta, sorrindo doce com o sol batendo no rosto. Sentamos, comemos, conversamos, parecia que um peso tinha saído das costas. Não sei o que tava causando esses sonhos e possíveis alucinações, mas ia marcar médico quando voltasse. Ficamos ali um tempo até que um enxame de moscas começou a rodear a cabeça dela. Ela tentou espantar rindo, mas acabou correndo com uma risadinha.

Era estranho pra caralho a quantidade de mosca, mas eu ri e corri atrás até a gente parar bem na beirada da água. Ela tirou umas folhas do corpo, elas caíram na água e fizeram ondulações. Olhei pra baixo, achei graça de como a gente ficava distorcido. E aí me caiu a ficha: era exatamente o meu sonho. A memória tava meio embaçada do que vinha depois, mas senti um déjà vu misturado com pavor.

Quando a água acalmou, levantei o olhar pra minha namorada, admirando o quanto ela era linda olhando a paisagem. Sorri pensando na sorte que eu tinha e olhei de novo pra baixo.

O sorriso sumiu da minha cara na hora. No reflexo, a Emma tava com aquele sorriso escancarado e a cabeça virada pra me encarar. Soltei um grito de terror e andei pra trás até aquela coisa sumir da minha vista. Virei e corri pra casa desesperado, querendo distância da Emma e seja lá o que tava fingindo ser ela. Sem saber qual das duas era real.

Claro que ela veio atrás tentando me acalmar. Mal conseguia falar direito antes de ver ela revirando os olhos. Já tava enchendo o saco. Falei firme que a gente ia embora agora, mas ela veio com um monte de motivo do porquê aquilo era importante pra ela, que a gente precisava desse descanso. Tentei argumentar, ela disse que não era real, que era só coincidência.

Eu tava quase acreditando quando olhei pra baixo e vi as unhas dela pretas, mortas, cabelo seco e quebrando, totalmente o oposto de como ela sempre cuida. Era ela, mas não era. Parecia uma gêmea que tinha vivido no escuro a vida inteira. Sabia que a gente precisava dar o fora dali rápido, mas não conseguia convencer ela. Tinha medo que o que quer que tivesse se alojado na minha namorada fizesse alguma merda e machucasse ela de verdade. Cedo pro dia seguinte de manhã, só precisava aguentar mais uma noite.

Fui dormir apavorado, com medo pela minha namorada e muito medo dela. Sabia que a Emma de verdade ainda tava ali dentro, então tentei ter paciência e tirar a gente dali o mais rápido possível sem acionar nada. De tanto cansaço, apaguei.

Acordei de repente, como se alguém tivesse jogado um balde d’água em mim. Emma não tava do meu lado. Talvez tivesse sede ou foi pegar algo pra comer, ela mal comeu desde que chegamos. Levantei pra ir atrás e ver se tava tudo bem. Quando fui calçar o chinelo, lembrei do dia: tinha sido idêntico ao sonho. Não tinha como ser coincidência.

O sonho que eu tive se realizou. Um pensamento me acertou: o sonho da noite anterior. Gele. Voltou tudo: eu acordando, Emma sumida, procurando, os arranhões, ela agachada, a facada. A memória me acertou como um tijolo, quase fiquei tonto. Levantei devagar, fui até a porta e girei a maçaneta.

Não tem como isso tá acontecendo. Meus sonhos não viram realidade, né? Impossível. Aconteceu uma vez, talvez não aconteça de novo. Mas eu precisava ter certeza que minha Emma tava bem.

Dei uns passos no corredor, respiração curta e acelerada, repetindo pra mim mesmo que não podia ser real. Virei a esquina e ouvi um barulhinho fraco. Forcei o ouvido: foi ficando mais alto, mais alto, até não ter mais dúvida.

Era arranhado.

Na parede.

terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Matador de Vampiros

Ele era só um cara. Um cara comum. Você provavelmente nem notaria se cruzasse com ele na rua.

Mas quando eu olhava pra ele, via um anjo. Uma fruta doce que Deus fez só pra mim. Ele tinha aquele tipo de calor que fazia todo mundo se sentir confortável e seguro só de entrar no ambiente. Ser hipnotizado por aqueles olhos azuis macios era tipo flutuar numa piscina quentinha cheia de lontras fofinhas enquanto te servem bolo e sorvete no seu aniversário. Cada pessoa se sentia o centro do universo dele quando ele tava por perto, e parecia tão fácil pra ele ser adorado.

Por isso eu mereço o que aconteceu comigo depois que eu matei ele.

Eu simplesmente não consegui me segurar. Essa raça sempre foi a minha favorita. Toda aquela energia altruísta que o mundo não valoriza deixa a pessoa desesperada pra alguém notar, morrendo de vontade de ser abraçada, implorando por um momento de paz. O sangue praticamente desce sozinho pela sua garganta quando você morde, e aí irradia uma sensação profunda de conforto e calor por cada artéria e sinapse do seu corpo durante dias enquanto você digere todo aquele bem e amor que todo mundo menosprezava.

Ele não viu chegar. Nunca veem. Na real, ele devia ter me agradecido: dei muito mais tempo pra ele do que pra qualquer outro. Ele me entretinha, era engraçado, fofo, e eu simplesmente perdi a noção do tempo. Que porra é um ano ou três quando você já não conta mais os séculos? Era gostoso demais ficar perto dele, tão cheio daquele calor delícia que eu sentia pulsar só de estar do lado, e o toque aveludado dele fazia minha pele arrepiar com uma eletricidade do caralho.

Olhando pra trás, não sei por que eu não deixei isso ser suficiente. Se eu conseguia viver assim com ele, por que caralhos eu precisei querer mais? Eu nem tava com fome. Eu tava feliz. Acho que ele também tava. Não precisava ter terminado assim.

Era nosso aniversário de namoro e a gente tinha ido no restaurante que ele me levou no primeiro encontro. Ver o pôr do sol refletido nos olhos dele enchia tanto a minha alma que parecia que eu tava transbordando, e eu simplesmente não aguentei a ideia de outra pessoa ver aqueles olhos lindos ou desperdiçar o calor da presença dele. Só a risada dele já levantava qualquer festa, e de repente eu senti náusea só de pensar que outra pessoa pudesse sentir o que eu sentia. Nenhum deles ia valorizar a essência dele do jeito que eu valorizo.

Foi tipo instinto. Uma outra fera saiu pra caçar. Eu vi a forma que a garçonete ajeitou o cabelo atrás da orelha e sorriu pra ele quando pediu nossas bebidas. A vadia chorou, gritou e tentou desesperadamente me enganar quando eu peguei ela no beco na hora do intervalo. “Eu tô só fazendo meu trabalho! Homem dá gorjeta melhor se você flerta!”. Puta não me enganava. Eu ainda sentia o calor dele grudado na mente dela.

Eu tinha passado tanto tempo focada só nele que devia ter esquecido como era sangue bom de verdade, porque não consegui me parar enquanto eu me empanturrava daquele pescoço com gosto de mentol. Ou talvez eu só estivesse desesperada pra sentir uma migalinha patética do calor dele nela…

Mas ela só me deixou vazia…

Toda aquela energia dourada que eu tava transbordando sumiu e eu tava lá, coberta de sangue, sozinha no beco atrás de um restaurante caro, segurando o corpo mole do que um dia foi uma garçonete. Nem senti o estalo quando o pescoço dela quebrou. Não era tão bruta com comida desde criança. Que vergonha. Levantei uma tampa de bueiro e joguei ela no esgoto com um barulho molhado. Problema de outro agora.

Não podia deixar ele me ver assim, então mandei mensagem dizendo que passei mal e peguei um táxi pra casa. O motorista perguntou se a festa à fantasia tinha sido boa e eu só balancei a cabeça quietinha. Ainda bem que nem todo mundo sente cheiro de sangue, porque o último abate ainda tava me dando náusea e eu não tava afim de papo. Só queria chegar em casa e ficar de boa.

Tirei o vestido grudento e joguei na lareira, depois entrei no chuveiro. Fiquei hipnotizada vendo os riscos vermelho-vivo do que sobrou da garçonete rodopiarem pelo ralo. Parecia estranho, como se faltasse um pedaço de mim. Aumentei a temperatura da água, mas continuava com frio. Parecia que eu ainda tava com saudade de casa mesmo estando no meu próprio chuveiro quente do caralho.

Desde quando alimentar dá nojo? Me forcei a vomitar a garçonete inteira de medo que ela tivesse câncer no sangue. Sinceramente nem acho que isso me machucaria, mas eu precisava tentar alguma coisa. Por que ela me deixou tão vazia? Ela nem valia toda essa angústia. Mesmo depois de lavar tudo ralo abaixo, eu ainda me sentia vazia.

Me arrastei pra cama, puxei o cobertor por cima da cabeça e… chorei. Não sabia se era de verdade ou se eu só tava imitando algo que vi humano fazer até não conseguir mais parar. Me contorcendo e vomitando, me encolhi e chorei rios por o que pareceram séculos até que ouvi a fechadura da porta da frente abrir e o calor voltou a inundar a casa.

As mãos dele ainda estavam geladas do ar de inverno, mas o toque gentil dele parecia um bote salva-vidas no meio da tempestade. Puxei ele pra cima de mim, ainda molhada das lágrimas e do chuveiro, e apertei ele nos meus braços mais forte do que ele provavelmente imaginava que eu era capaz. Ele olhou pra mim com aqueles olhos cheios de empatia e soltou um “aconteceu alguma coisa?” enquanto eu espremia o ar dos pulmõezinhos dele.

Afrouxei um pouco e empurrei a cabeça dele pro meu peito. “Não”, falei docinho enquanto acariciava, “só passei mal, mas quando saí senti sua falta. Fiquei mal por te deixar lá.”

“Que pena que você passou tão mal. A gente tava animado pra hoje.” Ele deu um beijinho suave na minha clavícula e eu beijei a testa dele e cheirei o cabelo. “Que tal a gente remarcar pra semana que vem quando você estiver melhor?” Eu assenti com os lábios ainda grudados na cabeça dele e dei um suspiro fundo enquanto sentia a tensão do meu corpo se dissolver.

“Você tá sentindo algum cheiro?” ele perguntou. Meus olhos se arregalaram. Terror. Aquele frio, aquele nojo. “Tipo moeda molhada e… mentol?”

Eu não lembro o que aconteceu depois, só lembro de me sentir sozinha e com saudade de casa na minha cama, segurando desesperadamente as pálpebras abertas de um corpo mole pra ver mais uma vez aqueles olhos que me enchiam de felicidade. Ele deve ter visto o choque no meu rosto quando eu percebi o que tinha feito, porque o rosto ensanguentado dele se contorceu numa olhar de compaixão olhando pra mim enquanto soltava um último suspiro molhado e sussurrava “Te vejo… logo…”

Ele não fazia ideia do que tava falando. Não podia fazer. Não tinha como ele saber o quão especial ele era. Gerações sendo presa tinham virado o jogo de um jeito que nenhum de nós dois esperava.

Não era pra ter sido assim. Tudo errado. Eu bebi a essência dourada desse homem. Eu era pra estar radiante agora. Transbordando, porra! Não lembro o momento que engoli ele, mas ainda sentia o gosto puro dele nos meus lábios e eu só… me sentia… VAZIA…

Ele ainda tava aqui. Cada pedacinho dele ainda tava nesse quarto, mas ele tinha ido embora e toda cor tinha sido sugada do mundo junto com ele.

Em algum momento eu levantei e carreguei ele pro banheiro. Nunca tinha me incomodado com aquela sensação esquisita de cadáver, mas não podia deixar ele daquele jeito. Lavei o sangue dele, embrulhei no cobertor e coloquei na cama. Queria que ele parecesse em paz, mas não conseguia fazer aquela cara dele fazer o que fazia quando encostava a cabeça no meu peito e dormia. Agora ele só parecia um boneco, um casco que eu vesti com as roupas dele e coloquei na cama dele.

Chorei pela segunda vez na minha vida infinita enquanto via nossa casa queimar. Inúmeros caras que engoli desse jeito e nunca tinha ficado pra essa parte; nunca senti necessidade de me despedir. Fiquei lá no frio vendo os humanos lidarem com aquilo até nossa casa virar só um monte de lembranças e sangue fumegante.

Não tentei me alimentar de novo por um tempão. Só de pensar dava nojo até a fome ficar insuportável e eu não conseguir pensar em outra coisa além da necessidade desesperada de consumir o calor de outra pessoa. É Dia dos Namorados e eu tô vendo um casal ficar noivo na praia de cima do penhasco. Minha barriga ronca e eu consigo imaginar a felicidade nos olhos dela e como ele colocou aquilo lá, mas quando desço até lá, a cena não é nem um pouco o que eu imaginei… Ela tá grávida e ele fede a suor de outra mulher. Esse tipo de felicidade é passageira. É mentira que ele conta pra ela pra se alimentar do calor dela.

Talvez eu consiga um gostinho desse calor se eu tirar ela desse sofrimento. Posso confortar ela enquanto ela desliza suavemente pra dentro de mim. Ela nunca vai precisar saber quanta misericórdia eu tô dando. Dei um passo na direção deles e de repente, como se um véu fosse levantado, senti o abraço dele por trás e congelei. O casal, perdido na própria bolha, nem me notou enquanto eu ficava lá parada feito estátua assistindo o momento deles.

Faziam anos que eu não sentia esse abraço, mas eu sabia que era dele, quente e confortador, em lugar nenhum e em todos ao mesmo tempo. Braços de ar. Braços de nada. Braços de calor e alegria. Eu sentia eles me envolvendo, firmes e fortes como eu lembrava, mas ao mesmo tempo eu sabia que eu tava completamente livre. Eu podia dar um passo à frente. Podia me alimentar desse casal. Podia sentir o calor passageiro deles…

Mas aí eu ia ter que sair desses braços…

Fiquei lá no ar gelado de fevereiro, perdida no tempo como uma memória que nunca aconteceu. Ele me segurou por horas e ninguém prestou atenção. O casal foi embora. Outras pessoas passaram. O sol se pôs, o sol nasceu. Não sei quanto tempo, mas quando acabou, eu não sentia mais fome. Fria de novo, mas não com fome.

Depois disso a cor voltou pro mundo. Não em todo lugar, não como antes, mas eu conseguia ver lampejos de vez em quando. Segui a cor até um parque uns dias depois e só fiquei sentada vendo as crianças meio que brilharem enquanto brincavam. É difícil explicar o que meus olhos viam, mas parecia quente e pela primeira vez na vida eu só queria que aquele calor ficasse onde tava pra eu poder admirar um pouco. Enquanto durasse.

Um aniversário. Um piquenique. Uma pega-pega. Memórias essenciais sendo formadas bem na minha frente. Pequenos vaga-lumes de cor num mar de sépia.

Aí um brilhozinho desceu de algum lugar e pousou na minha palma. Formigava de calor e eu fechei as mãos em volta dele e deixei irradiar pra dentro de mim. Sem palavras ele me disse e eu entendi que eu precisava levantar e ele me puxou pelo canto do abrigo de beisebol e foi aí que eu cruzei o olhar com alguém. Um cara baixinho e peludo em todos os lugares errados, tipo um dedo do pé com unha encravada. Ele segurava um pedacinho de calor tão apertado no punho que os nós dos dedos tavam brancos. O que eu vi nos olhos dele era menos que nada, um vazio que nunca ia ser preenchido exigindo calor mas nunca dando.

Ele ainda tinha aquele sorriso louco de quem achou que o plano deu certo até eu quebrar o pulso dele. A menininha perguntou se ele tava bem e eu sorri com carinho e falei que só precisava dar uma injeção no meu tio porque ele não podia sair do hospital e mandei ela voltar pra mãe.

Arrastei o cara-dedo-do-pé até a van branca feia dele, joguei no fundo e rasguei o motor com as mãos. Talvez eu devesse ter matado ele, mas eu sabia que isso não ia me aquecer. Só deixei ele lá largado, ferido e coberto de merda dele mesmo.

Naquela noite senti ele me abraçando de conchinha. Foi fraco, mas eu sabia que era ele. Um sonho de um abraço de conchinha, mas pela primeira vez dormi como eu dormia nos braços dele antigamente. Quando acordei não sentia mais ele, mas não tinha como confundir.

Levou tempo, mas a gente descobriu juntos. O corpo dele morreu, mas ele ainda tá aqui, grudado dentro de mim, me mostrando a luz. A gente se fala por sensações e cutucadas, calor e cor. Não escuto a voz dele, mas sei que é ele de verdade, consciente, vivo e me guiando. Agora eu honro a memória dele sendo a pessoa que ele via em mim, a pessoa que ele tava olhando quando eu tava focada no pôr do sol refletido nos olhos dele.

Milhares de anos de evolução finalmente ensinaram um humano a matar vampiro; só queria que ele não tivesse precisado morrer pra fazer isso.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

Eu tinha dificuldade pra dormir quando era mais novo. Ontem à noite eu descobri o porquê

Tudo começou quando eu tinha 8 anos. Nessa época, eu comecei a ter esses “estremecimentos” no sono. Lá pelas tantas, perto da meia-noite, eu era arrancado do sono de repente. Era igual àqueles momentos em que você tá quase pegando no sono e o corpo dá um tranco, como se você estivesse caindo, só que esses trancos me faziam sentir que eu tava sendo jogado pro alto. Meus pais, no começo, acharam que era só insônia – a escola tava bem estressante pra mim, com um monte de matéria nova e aula diferente, então até entendo eles pensarem isso. Só que os trancos eram raros no início, mas com o tempo começaram a acontecer toda noite, e aos poucos eu acordava com mais pânico, gritando e socando o ar contra uma ameaça que não existia.

Cinco dias depois que esses trancos pioraram de vez, meus pais começaram a achar que insônia não explicava mais. Começaram a perguntar se eu tava sofrendo bullying na escola, se tinha professor filho da puta, essas coisas. Eu não tinha bully nenhum na época e todos os professores eram legais, então a resposta era sempre “não”. Me levaram pra umas consultas na clínica infantil da cidade, não acharam nada errado fisicamente, mas anotaram que eu tinha um monte de “trauma auto-infligido” – vai entender que porra era essa. Deram uma receita de remédio pra dormir pros meus pais e falaram pra eu tomar um uma hora antes de deitar, pra ver se me mantinha apagado. O remédio nunca funcionou porra nenhuma. Eu até ficava mais sonolento antes de dormir, mas os trancos continuavam acontecendo, toda santa noite, pontualmente à meia-noite.

Isso durou um tempão e eu só queria que aquele inferno acabasse. Acabei perguntando pros meus pais se existia um “médico do sono”. Eles falaram que não tinha isso, mas que podiam me levar num psiquiatra. Logo eu tava sentado num consultório cheio de brinquedo, fidget toy e livro espalhado, enquanto o Dr. Cole, meu psiquiatra na época, me fazia um monte de pergunta. Perguntas ridiculamente básicas: “Quantos anos você tem? Sempre quis procurar ajuda psiquiátrica? Dorme bem? Come direitinho?” e tal. Depois disso ele tirou umas folhas, aquelas com borrões pra ver como a cabeça do paciente funciona identificando imagem. Juro por Deus, cada uma por uma, todas as folhas tinham dois círculos pretos gigantescos dos lados, tão escuros que parecia que eu podia enfiar a mão ali e perder pra sempre. Sei que algumas realmente tinham traços assim, mas pra mim todas eram iguais: vazios absolutos que pareciam me encarar direto. Lá pela nona folha eu desabei chorando e tentei me esconder embaixo da mesa. O Dr. Cole juntou as folhas, guardou na pasta e começou a preencher um relatório. No mesmo dia meus pais foram informados que eu podia ter um caso leve de esquizofrenia, que fazia meu cérebro projetar imagens que eu não queria ver nas folhas. Deram outra receita. Meu pai fez o maior escândalo, falando que não ia deixar o filho caçula tomar remédio pra um transtorno de verdade em vez de tratar de verdade. Resumindo: nunca mais voltei lá.

Por meses eu tive que aguentar aqueles trancos o tempo todo, e ficou tão insuportável que parei de dormir no meu quarto e passei a dormir com meu irmão David. David tinha 10 anos na época e, pra ser sincero, já tava de saco cheio da minha palhaçada, mas ainda me deixava dormir com ele se isso fizesse eu calar a boca. Depois de um tempo chegou meu aniversário. A festa era pra ser uma desculpa pra eu pegar ar livre, mas por causa dos trancos da meia-noite meus pais decidiram que todo mundo ia ficar dentro de casa pra “se conectar mais”. Na festa tinham três dos meus amigos mais próximos – dois eram vizinhos, o outro era da sala. Além deles, dois primos meus que eram pelo menos cinco anos mais velhos que o David, mas ainda curtiam vir em casa zoar com a gente de vez em quando.

Durante a festa eu consegui esquecer completamente dos trancos. Todo mundo jogando, falando de coisa que ia rolar, e principalmente rindo de piada escrota e besta pra caralho. No fim da tarde eu e o David pegamos os sacos de dormir. Ele foi abrir o sofá-cama enquanto eu juntava cobertor e travesseiro. O David parou na frente de todo mundo e avisou que os sacos de dormir eram só pra mim e pra ele, e que o sofá-cama ia ser “quem chegar primeiro leva”. Eu dei um sorrisinho e falei pra eles “se “se matarem pela cama”. Achei que ia rolar guerra de polegar ou pedra-papel-tesoura, mas os primos se ofereceram pra dormir no chão e meus amigos resolveram na queda de braço. Depois de decidir quem dormia onde, ficamos acordados umas boas duas horas depois do horário de dormir, desafiando um ao outro pra ver quem aguentava mais tempo sem apagar. Claro que eu fui o último a dormir.

Enquanto eu ia apagando, sorria com o dia inteiro de diversão, mesmo tendo ficado só dentro de casa rindo até doer a barriga. Aí, lá pela meia-noite, senti aquele tranco me jogando pra fora do sono de novo, e a vontade de gritar e socar o que tivesse mais perto veio com tudo – só que minha voz não saía. Minha boca tava aberta, mas as cordas vocais não funcionavam. Meus braços, já dentro do saco de dormir, não mexiam. Lembrei que meu primo tinha falado que sentia isso direto: paralisia do sono, quando você acorda rápido demais e o corpo não destrava os movimentos. Varri o ambiente com os olhos pra ver se tinha alguém acordado. Só via a bagunça de jogo de tabuleiro e salgadinho, meu irmão, meus primos e meus amigos dormindo, e a janela grande do lado da porta da frente.

Meu primo sempre dizia que, quando ficava paralisado, tentava ficar olhando pras coisas diferentes porque sabia que a mente acabava ficando entediada e inventava monstro. Meu irmão retrucava que ficar olhando em volta só incentivava a mente a criar os demônios. Meu primo dava de ombros e falava que nunca tinha visto nada que não estivesse ali de verdade. Eu fiquei olhando cada canto da sala que conseguia pra garantir que nada mudava. Quando me senti seguro, fechei os olhos e tentei dormir de novo. Logo depois de fechar os olhos, ouvi um farfalhar no mato bem do lado de fora da janela grande. Abri os olhos num pulo e virei pra ver o que porra era aquela. Fiquei apavorado.

O cara – a coisa, melhor dizendo – que tava do lado de fora da janela era alto e todo escuro. Parecia usar um moletom preto, mas o rosto… nunca vou esquecer aquele rosto. Escuro e ao mesmo tempo pálido, sem boca nem nariz que desse pra ver, e os olhos eram exatamente aqueles círculos pretos gigantescos que eu vi nas folhas do Dr. Cole, só que ainda mais fundos. De algum jeito consegui franzir a cara numa careta de raiva, torcendo pra ele ver que eu tava puto e ir embora. Ele viu mesmo a careta, virou pro lado da porta e… caminhou até ela. Pisquei só pra ter certeza que não tava louco, mas a coisa agora tava dentro da minha casa, parada bem na frente da janela. Com medo de piscar de novo, forcei os olhos a ficarem abertos. A coisa começou a andar na minha direção, bem devagar. Meus olhos lacrimejaram, lutei com tudo pra não piscar, até que, de repente, piscar foi inevitável. Quando abri os olhos de novo, a coisa tinha sumido. Varri a sala inteira: nada fora do normal. Percebi que meu corpo já tinha destravado da paralisia e corri pro David pra acordar ele.

“David! David!” gritei. “Tem um cara, eu vi ele! Tá escondido aqui dentro de casa!”

Meu irmão se mexeu e virou de costas pra mim. “Vai dormir, cara, tá tarde pra caralho.”

“Não! Eu não consigo dormir, David! Ele tá na nossa casa! Pode tá esperando pra matar a gente!” retruquei gritando.

David se levantou devagar, espreguiçou e falou bocejando: “Que tal a gente procurar esse cara e, se achar, a gente vai chamar o papai e a mamãe. Combinado?” Eu balancei a cabeça que sim. Levantamos e fomos procurar pela sala: debaixo do sofá-cama, debaixo da mesinha de centro, até no armário do corredor. Nada. Voltamos pra cama e o David apagou quase na hora. Eu sabia o que tinha visto. Sabia mesmo.

Depois daquela noite os trancos pararam. Nunca soube o porquê, então por um tempo achei que era só uma fase de medo de medo de tudo. Hoje eu tenho 19 anos e ontem à noite eu fui provado errado: senti um tranco de novo, olhei pra janela do meu quarto e lá tava ele – o homem sem olhos.

Eu fiz parte de uma equipe de resposta enviada pra uma instalação secreta por causa de um surto. O que a gente descobriu nunca deveria ter existido… e agora eles estão soltos

Não sei quanto tempo eu ainda tenho. Minhas mãos não param de tremer e meu pulmão tá queimando como se eu tivesse respirado fogo, mas eu preciso botar isso pra fora porque não sei se vou conseguir sair vivo dessa mata antes que o que quer que esteja se mexendo ali na beirada das árvores me ache. Se você tá lendo isso, entenda uma coisa: tudo sobre os Laboratórios Helixion não era boato. Não era teoria da conspiração. Era real. E a gente libertou uma coisa que devia ter ficado enterrada pra sempre.

Eu era de uma equipe de cinco caras: Comandante Coleman, Matthews, Fields, Torres e eu. Fomos mandados pra conter uma brecha de segurança numa instalação ultra-secreta. Comunicação cortada, número de mortos desconhecido. Aquela missão que a gente treina a vida inteira mas reza pra nunca cair.

O lugar chamado Helixion Labs não era nenhuma instalação civil. Era financiada pelo governo, enterrada sob uns bons quinze metros de concreto armado no cu do mundo. Pesquisa genética, evolução experimental… aquele tipo de coisa que só existe em filme de terror e fantasia. Eu tinha ouvido os boatos: animais com genes misturados, híbridos humano-animal, supersoldados feitos pra sobrevriar qualquer coisa. Achava que era papo de maluco, mas eu não fazia ideia do quanto tava errado.

Pousamos logo depois do amanhecer. A neblina tava baixa e pesada, engolindo qualquer som antes dele chegar nas árvores. O portão de aço tava escancarado, dobrado pra fora, como se alguma coisa tivesse forçado passagem pra sair.

Antes de entrar, Coleman passou o plano:

“Vamos resgatar sobreviventes, descobrir o que rolou, achar a sala dos geradores, colocar as cargas e vazar pelo túnel que sai dali pros lados da mata”, explicou ele. “A porta é trancada com código que me passaram. Assim que a gente sair, as cargas detonam e levam o prédio inteiro pro saco junto com tudo que tiver dentro.”

Terminou de falar e a gente entrou. Energia cortada. Só as luzes de emergência deixando os corredores num vermelho sufocante. Silêncio total, só o barulhinho do nosso equipamento e o chiado de vapor vazando de cano quebrado. Quanto mais fundo, pior o cheiro: carne queimada, sangue, podre e um troço químico que arranhava a garganta.

Achamos o primeiro corpo na recepção… ou o que sobrou dele. Um cientista, metade do tronco sumida. As costelas abertas pra fora tipo flor desabrochando, as tripas espalhadas pelo chão. Alguém tinha escrito uma palavra na parede do lado com os dedos tremendo.

CORRE.

“Ataque de animal?”, Torres sussurrou.

Coleman nem olhou pra ele. “Animal nenhum faz isso.”

Seguimos mais fundo, varrendo o corredor leste. Cápsula de bala, marca de queimado e jaleco rasgado pra todo lado. Num canto, um corpo meio fundido na parede. Carne e concreto misturados como se fossem a mesma coisa.

Os elevadores eram sucata retorcida, então descemos pela escada de serviço pro Subnível 3 – Divisão Genética. Cada degrau ecoava e meu coração parecia que ia rasgar o peito pra sair.

Aí a gente ouviu: um arranhado, metal no concreto.

Fields virou o fuzil com lanterna pro corredor e, por um segundo, eu vi movimento. Uma coisa pálida, rápida demais pra focar.

“Olhos abertos”, Coleman mandou. “Não tá vazio aqui. Cuidado com a retaguarda.”

Achamos outro corpo. Os ossos moles, dobrados em ângulo impossível. A pele escorrendo como cera de vela.

Torres quase vomitou: “Porra, Jesus Cristo, o que caralhos faz uma coisa dessas?”

Aí veio a respiração. Lenta, pesada e errada.

A coisa apareceu debaixo de uma porta que ela devia ter que se abaixar pra passar. Pele pálida quase brilhando, como se não tivesse sido feita pra luz. A mandíbula desencaixada, dentes pretos e finos que nem agulha, mas os olhos… puta merda, aqueles olhos… me encarando com uma inteligência humana que me congelou no lugar.

Coleman atirou primeiro, mas a coisa era mais rápida que qualquer coisa que eu já vi. Chegou no Fields antes da gente piscar.

Começou a rasgar ele com garras que pareciam lasca de osso. O som não era rugido… era tipo risada, distorcida, mecânica.

A gente abriu fogo tudo. Bala atravessava, mas a coisa não caía. Soltou um grito agudo que fez minha visão embaçar.

Quando ela sumiu de volta no duto de ventilação, Fields não tava mais de pé com a gente. Só sobrou uma poça de carne triturada, roupa, equipamento e sangue.

Seguimos porque tinha que seguir. Parar era começar a pensar no que a gente tinha acabado de ver.

Chegamos na sala de controle. Coleman achou um único vídeo que ainda rodava. A maioria tava corrompida, mas um funcionava: filmagem de uma cela de contenção. Um cara amarrado numa maca, gritando. As costas arqueando enquanto alguma coisa mexia debaixo da pele, aí a pele se abriu como casulo e uma coisa rastejou pra fora. Igualzinha à que matou o Fields.

Nome do arquivo queimou na minha cabeça: SUJEITO 47B – TESTE DE REGENERAÇÃO

Torres quis abortar a missão, mas Coleman bateu o pé que não.

Subnível 4 foi pior. O ar tava úmido e vivo. As paredes pulsavam de leve, como se respirassem junto com a gente. Uma coisa caiu do teto – fina, pálida, mais rápida que o olho consegue acompanhar. Matthews atirou por reflexo.

O clarão do cano iluminou outras penduradas nas paredes, agarradas que nem aranha, mas com forma de gente pela metade da transformação. Andavam de quatro, osso estalando a cada movimento.

A gente correu, mas elas vieram atrás gritando. Uma pulou em cima do Torres e grudou na perna dele. Virei e meti bala à queima-roupa, explodi metade dela fora dele… mas os tentáculos já tavam entrando na pele. Ele gritou até a voz virar gorgolejo.

Elas começaram a enxamear ele, os tentáculos se retorcendo debaixo da carne, esvaziando o cara por dentro. Quando terminaram, arrastaram o que sobrou dele pra parede – usando o corpo dele como saco de ovo.

Selamos o Subnível 4 e tentamos respirar, mas Coleman manteve a gente andando. Não pela missão… pela sanidade, pela ilusão de que ainda tinha algum controle.

O rastreador do Matthews pegou sinais fracos – vários, se movendo devagar e de forma irregular.

“Pode ser sobrevivente”, eu disse, voz falhando.

“Duvido muito”, Matthews respondeu. “Ninguém sobreviveu a isso aqui.”

Coleman suspirou: “Ele tá certo, mas a gente vai conferir mesmo assim.”

Aí veio o som. Primeiro baixo, depois crescendo.

Cantoria.

Uma melodia suave, meio desafinada mas dolorosamente familiar.

Cantiga de ninar. Aquela que toda criança conhece, mas meio segundo fora do tom, como se alguém tivesse esquecido a letra.

O som nos levou pra uma câmara onde o ar era quente e úmido, fedendo a podridão. Cabos pendurados no teto… só que não eram cabos. Balançavam e se retorciam no ritmo da música. Alguma coisa molhada pingou no ombro do Matthews. Quando ele olhou pra cima, congelou no meio da respiração.

O teto não era metal. Era carne viva. Os cabos eram intestino e língua pendurados, com nervo enrolado em volta.

E tinha dezenas… talvez centenas… de bocas humanas cravadas na superfície. Lábios rachados e tremendo, dentes batendo em perfeita harmonia. Algumas articulavam palavras mudas, outras cantavam em tons quebrados. As línguas se esticavam pra baixo, tateando o ar.

“Jesus Cristo…”, eu sussurrei.

Aí elas começaram a gritar. Todas ao mesmo tempo. O som parecia sucção virada do avesso.

Matthews abriu fogo e sangue – ou sei lá o quê – choveu em cima da gente, chiando no chão. Mas as bocas não paravam. Formavam palavras que não existiam em língua nenhuma.

De repente uma língua desceu chicoteando, enrolou no pescoço do Matthews. Ele arranhou, olhos esbugalhados. Segurei as pernas dele e puxei. A língua se soltou… junto com metade da garganta dele. Morreu na hora nos meus braços.

As bocas começaram a rir.

Coleman jogou uma granada incendiária. Fogo tomou o teto inteiro, carne estourando que nem óleo quente. A cantoria parou e virou grito que foi morrendo no silêncio.

Quando a chama apagou, só sobraram dois de nós.

Chegamos no setor de segurança. A energia reserva piscou por alguns segundos. Naquele clarão, vimos dentro das celas reforçadas: formas que talvez um dia tinham sido gente, ou bicho, ou os dois. Corpos pegos no meio da transformação, congelados em posições que doíam só de olhar.

Foi aí que caiu a ficha: todos aqueles boatos sobre Helixion eram verdade. As aberrações nas celas eram soldados, protótipos que deram errado. Eles tavam tentando construir a própria evolução… e conseguiram.

Achamos a sala dos geradores e armamos as cargas. Coleman mandou eu cobrir a porta.

Quando ele colocou a última carga, ouvi respiração vindo de cima. A coisa começou a falar com várias vozes ao mesmo tempo, tipo rádio trocando de estação sem parar.

Caiu em cima do Coleman com um baque pesado. Essa era diferente – maior, mais completa. As outras pareciam protótipos ou no meio da evolução… essa era o produto final.

O corpo era um remendo perfeito de várias pessoas costuradas. Eu reconheci pedaços… rostos que eu conhecia, olhos que eu conhecia. Não mortos, não vivos… só presentes.

A boca se abriu na vertical, partindo a cabeça no meio, revelando fileira atrás de fileira de dente fino e afiado.

Coleman gritou pra eu correr, mas eu travei, Deus me perdoe, eu travei.

“É ORDEM, MARTINEZ! CORRE! Usa o túnel – código 8593! AGORA VAI!”

Aí a coisa começou a rasgar ele, carne e osso que nem manteiga. Coleman não gritou… foi lutando, enfiando a faca até o corpo amolecer.

Atirei na aberração até o pente acabar. Quando terminou com o Coleman – que agora era só um monte de carne rasgada e sangue – ela olhou pra mim e ficou parada. Aí falou.

Não com palavras, mas a última coisa que eu ouvi antes da explosão foi a criatura imitando perfeitamente a voz do Coleman, implorando pra eu não abandonar ele.

Nem lembro de digitar o código, entrar no túnel ou como cheguei na mata. Só sei que não tava sozinho quando cheguei lá.

Quando as cargas explodiram, a instalação desabou… mas a floresta se mexia de um jeito que não era vento. Da encosta onde eu tava, vi formas rastejando pra fora dos escombros. Dezenas, talvez centenas, se espalhando pela mata.

Tô escondido há três horas. Rádio morto, a mata ficou em silêncio total, como se tudo aqui estivesse prendendo a respiração.

Tô usando o celular pra botar isso no mundo. Já tentei ligar e mandar mensagem, mas o sinal caiu. As criaturas devem ter derrubado as torres, isolando todo mundo aqui do resto do planeta.

Pelo menos a internet ainda pega, então postar isso é minha única chance de avisar vocês. Eu sei que vazar isso vai custar meu emprego, minha carreira, tudo… mas eu não ligo mais. Vou fazer o possível pra continuar atualizando.

Se alguém tá lendo isso: NÃO MANDA RESGATE. NÃO VEM INVESTIGAR. Só espalha esse post pra caralho pra avisar o que tá vindo e prepara tua casa.

Porque eles tão na superfície agora… e evoluíram pra máquinas de matar perfeitas.
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Escritor do gênero do Terror e Poeta, Autista de Suporte 2 e apaixonado por Pokémon