Sabe, eu estou muito doente. Tão doente que meu marido contratou uma equipe inteira pra cuidar de mim e da casa, porque tem tanta coisa que eu simplesmente não consigo mais fazer. Toda manhã, uma das minhas atendentes me acorda e traz o café da manhã. E os remédios. São tantos comprimidos que eu tenho que tomar, mas eles parecem ajudar mesmo. Às vezes consigo me sentar na cama e me alimentar sozinha, embora minhas mãos tremam pra caralho e meus músculos estejam rígidos demais. Outras vezes, a atendente tem que sentar comigo e me dar comida na boca como se eu fosse um bebê. No começo era humilhante, quando eu passei a precisar de tanta ajuda extra, mas me acostumei. Sou grata pelas atendentes e por tudo que elas fazem por mim.
Depois do café, as crianças geralmente vêm me visitar no quarto. Meus anjinhos lindos, todos com aquelas auréolas de cachos dourados e olhos azuis brilhantes. Eles correm pelo quarto, rindo e brincando de pega-pega, pulando na minha cama e saltando pro chão. Eu nunca os repreendo nem mando parar, porque aquece meu coração ver eles se divertindo tanto. Tenho três bebês, e eles vão ser sempre meus bebês, não importa quanto tempo passe. A mais velha, Jocelyn, tem 8 anos. Ela está começando a ficar muito parecida comigo, acho, com o nariz afiado e pontudo e as sobrancelhas delicadas, sempre franzidas em pensamento. As bochechas dela estão perdendo aquela gordurinha de criança e meu coração dói de ver ela crescendo tão rápido.
Simon é o do meio e meu único menino, e que menino ele é. Selvagem, nem aí pras regras que eu e o meu marido tentamos impor tantas vezes ao longo dos anos. Ele tem meus lábios carnudos e cheios, e dá pra ver que quando crescer vai ter a sobrancelha forte e o maxilar do pai, e ele só tem 6 anos. Pra mim ele parece uma escultura grega de mármore, com aquelas linhas duras da estrutura óssea ainda tão suavizadas pelo jeitinho de bebê. Mas até ele já me parece tão crescido agora.
A caçula é Eveline, e ela tem só 3 aninhos. Tem um rostinho doce e querubim, com cílios impossivelmente longos e bochechas rosadas e gorduchas. Ela não corre tão rápido nem pula tão alto quanto os irmãos, mas vai atrás o mais rápido que as perninhas permitem. Ela ainda é a que mais faz carinho em mim, se enroscando nos meus braços quando eu tiro uma soneca antes do almoço. O cheirinho doce do cabelo dela enche meu nariz e me faz dormir tão tranquila.
Quando as crianças não estão rodopiando pelo meu quarto como dervixes, elas costumam sair pra brincar no jardim. Jocelyn e Simon são sempre tão gentis com a Eveline e sempre esperam ela alcançar. Tenho muita sorte de ter uns bebês tão doces que se amam tanto. Antes de ficar doente, eu conseguia ir com eles pro jardim, e às vezes me dá uma tristeza ficar presa aqui dentro, no meu quarto.
Tenho um rodízio de atendentes que ficam comigo todo dia. Faz sentido, né, imagino que todas tenham família pra voltar quando o turno acaba. Meu marido fez questão de eu ter cuidado o tempo todo, então são três atendentes diferentes por dia — uma pro turno da manhã, outra pro da tarde e uma pra noite. Elas me ajudam a tomar banho toda manhã e a me vestir todo dia. Faz muita diferença poder usar roupa limpa e fresca todo dia e não ficar apodrecendo na cama com a mesma camisola por dias seguidos. Tiffany, que é uma das minhas favoritas, penteia meu cabelo longo e faz uma trança francesa linda pra mim. Só vejo ela duas vezes por semana, e as outras atendentes parecem não querer se dar ao trabalho com meu cabelo. Ele fica bem embaraçado até a Tiffany voltar, e ela passa um tempão desembaraçando com paciência e delicadeza. Às vezes ela murmura enquanto penteia e trança: “Senhora Margaret, cadê aqueles bebês lindos seus?” Eu sempre respondo que devem estar em outra parte da casa, talvez brincando com a casinha de bonecas ou espalhados na sala de brinquedos lendo livros. A Tiffany sempre estala a língua e não fala mais nada.
Claro, além das atendentes, tem os médicos. Dr. Philips é um homem alto e magro, cabelo grisalho bem curto, óculos de armação grossa preta que sempre parecem a ponto de escorregar da ponta do nariz comprido. Ele vem me ver todo dia depois do almoço pra me examinar e perguntar como estou me sentindo. Geralmente dou a mesma resposta todo dia. Dra. Wilcox, que me disse que posso chamar ela de Jennifer, é médica dos meus sentimentos. Foi assim que ela explicou quando nos conhecemos. Disse que estar tão doente pode trazer um monte de sentimentos ruins, e que queria que eu me sentisse à vontade pra dividir qualquer coisa que estivesse me incomodando. Ela nunca consegue avançar muito comigo. Sempre fico cansada demais depois de falar com o Dr. Philips pra responder às perguntas dela. Às vezes respondo, e ela me lança um olhar estranho e anota coisas no caderno. Não sei o que ela faz com aquele caderno depois que sai do meu quarto, mas eu gostaria de ler um dia.
Todo mundo que cuida de mim usa uniforme; acho que é obrigatório pela agência que meu marido contratou. A única pessoa que vem me visitar e nunca usa uniforme é minha amiga, Allison. A Allison sempre traz o cachorro dela, Fig, um Golden Retriever enorme e avermelhado. Na primeira vez que conheci a Allison e o Fig, percebi que ela estava um pouco... tensa. Segurava a guia com força na mão, embora a guia estivesse frouxa. Mas eu reparo nessas coisas. Ela murmurou algo pra uma das minhas atendentes enquanto o Fig se aproximava de mim na cadeira. O cachorro veio direto, colocou a cabeça enorme e quadrada no meu colo, olhando pra mim com aqueles olhos castanhos macios. Levantei a mão, fiz carinho na cabeça dele, cocei atrás das orelhas, e ele fechou os olhos e deixou o peso todo da cabeça no meu colo. Vi o punho da Allison relaxar na guia, e ouvi ela falar baixinho pra atendente: “O Figgy é um ótimo juiz de caráter.” O atendente deu de ombros e virou o rosto, quase irritado.
Depois daquele primeiro encontro, a Allison traz o Fig pra me visitar toda semana. Se eu estiver na cama, o Fig pula e deita do meu lado, me aquecendo com o pelo sedoso avermelhado. A Allison sempre puxa uma cadeira e senta perto de mim, faz conversa fiada sobre o tempo ou conta alguma história engraçada do que o Figgy aprontou desde a última vez. Às vezes a Allison pega minha mão e me dá um olhar cúmplice. Uma vez ela perguntou por que eu estava doente, e eu disse que era melhor pra nós duas se ela não soubesse. Mas isso não a espantou. Um dia, aquele mesmo atendente que estava lá no primeiro encontro com a Allison e o Fig puxou uma cadeira mais perto de mim e da Allison do que o normal, abriu um jornal e começou a ler. A manchete grande na capa dizia: “Pai de crianças desaparecidas há 3 anos pede que sejam declaradas oficialmente mortas”. Uma história triste, sem dúvida. Uma foto do pai com as crianças, todos sorrindo pra câmera, ocupava quase toda a primeira página.
Meu marido viaja tanto a trabalho que quase nunca consegue me visitar. Quando vem, geralmente se reúne com meus médicos e eles conversam em voz baixa. Eu pego pedaços: “Nenhum progresso... nenhuma nova informação... medicação diferente...” Meu marido tem controle sobre meu tratamento porque a doença muitas vezes me deixa tão cansada e confusa que não consigo consentir com mudanças. Ele aprendeu a só me visitar antes das 17h, porque já teve visita demais depois do jantar em que ele entrou no meu quarto e algo horrível tomou conta de mim e eu o ataquei. Saí da cama ou da cadeira de rodas com as mãos esticadas, tentando arrancar a garganta e os olhos dele enquanto a atendente corria pra me conter. Sempre que isso aconteceu, meu marido se recusa a me olhar nos olhos, com medo de encarar o verdadeiro motivo pelo qual eu quero matá-lo — um motivo que só ele e eu saberemos para sempre.
É que os remédios da manhã começam a fazer menos efeito depois do jantar, e eu só posso tomar a dose da noite às 19h. Conforme a tarde vira noite, sinto os sintomas voltando. Minha visão, borrada e desfocada o dia todo, fica nítida. A luz dourada que banha tudo escurece e vira um azul frio, jogando tudo em relevo duro e deixando o ambiente hostil e clínico. Minha cabeça, tão enevoada e lenta o dia inteiro, começa a clarear, e as memórias voltam. Vejo as atendentes como elas realmente são: funcionárias que cuidam de mim com relutância, não com dedicação e carinho.
O pior, porém, são as crianças. Quando vêm me visitar depois do jantar, elas não parecem mais felizes, angelicais, cheias de vida e risada. Não parecem mais como eu quero lembrar delas. Em vez disso, parecem como sou obrigada a lembrar. A Jocelyn tem metade do couro cabeludo arrancado do crânio e falta o olho esquerdo. Sangue mancha o nariz e a boca, e tem hematomas roxos grossos no pescoço. A cabeça pende num ângulo estranho, e as pernas só arrastam o corpo pra frente porque as fraturas expostas têm pedaços de osso perfurando a pele. Todo o lado esquerdo da cabeça do Simon está completamente afundado, e ele cospe bolhas de sangue enquanto tenta puxar ar em respirações rasgadas. A caixa torácica está esmagada e estilhaçada, os pulmões batendo inutilmente contra a parede do peito. E a Eveline... minha pobre e doce menininha, nova demais pra entender o que estava acontecendo. Os olhos estão pretos, cheios de sangue morto. A língua está enorme e roxa, saindo da boca. Ela também tem hematomas grossos no pescoço, embora mal dê pra notar porque agora ela carrega a cabeça nas mãozinhas — arrancada completamente dos ombros. Todos vêm até mim e me encaram, chorando: “Por quê, mamãe?” No começo isso me enlouquecia, e na maioria das vezes quando apareciam pra me assombrar eu arranhava os braços com tanta força enquanto gritava de angústia que acabava amarrada na cama com restrições acolchoadas enquanto uma enfermeira aplicava uma injeção pra me fazer dormir. Agora só choro em silêncio. Não desvio o olhar, porque meus bebês merecem ser vistos, mas meu coração se despedaça em milhões de pedaços toda noite quando eles vêm me lembrar do que eu fiz.
Um caminhoneiro me encontrou na beira da estrada há três anos, coberta de sangue — parte meu, parte não. No pronto-socorro tentaram me fazer contar o que tinha acontecido, mas eu não conseguia. Só gritava enquanto via meus bebês do jeito que os deixei antes de fugir pro mato. Acho que queria me perder e morrer de frio lá, mas em vez disso saí cambaleando na pista e quase fui atropelada por um caminhão. Morrer assim teria sido melhor do que eu merecia. Quando a polícia chegou pra me interrogar, os funcionários do hospital ficaram confusos. Aí o detetive explicou. Meu marido tinha registrado o desaparecimento das crianças e o meu naquela manhã, depois de acordar e encontrar a casa vazia. Contou à polícia que eu não andava bem ultimamente, que não estava tomando os remédios, e que temia que eu tivesse machucado as crianças. A polícia já sabia disso quando me viu na maca, coberta do sangue deles. E eu não conseguia falar pra contar o que realmente aconteceu. Por fim me sedaram pra parar os gritos, e quando acordei estava algemada na grade da cama com um policial me encarando do canto do quarto.
Me levaram a julgamento, mas fui considerada inapta pra responder pelo crime. O psicólogo do estado que me avaliou concluiu que eu tinha entrado em estado catatônico e que, naquele torpor, eu era incapaz de compreender as acusações. E foi assim que vim parar aqui no Willow Grove, o hospital psiquiátrico forense de segurança máxima do estado. Presa junto com outros considerados inaptos pra julgamento, como eu, ou os que foram declarados não responsáveis criminalmente — o termo técnico pra não culpado por insanidade. E aqui fiquei esses últimos 3 anos, sob uma névoa constante de antipsicóticos e benzodiazepínicos, incapaz de contar a ninguém o que realmente aconteceu naquela noite em que me encontraram. Incapaz de contar o verdadeiro motivo de ter atacado meu marido tantas vezes, o motivo que só ele e eu saberemos para sempre.
Porque não fui eu que machuquei meus bebês preciosos naquela noite no mato.

