Estou escrevendo isso do meu apartamento, e preciso que você entenda uma coisa antes de eu contar o que aconteceu. Preciso que você saiba que o Experimento de Inanição de Minnesota foi real.
Em 1944, na Universidade de Minnesota, o Dr. Keys conduziu um dos estudos psicológicos mais perturbadores da história americana. Trinta e seis objetores de consciência — caras que se recusaram a lutar na Segunda Guerra Mundial — se ofereceram pra passar fome. Durante seis meses, recebiam umas 1.800 calorias por dia enquanto faziam trabalho pesado. Depois, passaram por três meses de “reabilitação”, sendo realimentados aos poucos.
Os resultados foram o puro terror. Os caras ficaram obcecados por comida: juntavam receitas, lambiam os pratos, alguns até pensaram em canibalismo. Entraram em depressão profunda, se mutilavam, mudaram tanto de personalidade que vários nunca mais voltaram ao normal. Um deles, tá registrado, cortou três dedos da própria mão com um machado — e nem lembrava se tinha sido de propósito ou não.
O objetivo do experimento era entender como realimentar populações famintas na Europa pós-guerra. Tudo aconteceu no porão do laboratório da Universidade de Minnesota, num prédio sem graça que ainda está de pé até hoje.
Eu sei disso tudo porque eu era consultor de demolição. Era. Era consultor de demolição.
Há três semanas, a Universidade finalmente liberou a demolição do laboratório antigo — o prédio onde o experimento rolou. A maior parte estava abandonada desde os anos 80, considerada obsoleta e cara demais pra reformar. Meu trampo era avaliar a estrutura, identificar materiais perigosos e planejar a forma mais segura de derrubar aquilo.
Entrei lá numa manhã de terça-feira. Sozinho.
O prédio cheirava errado desde o momento em que pisei lá dentro. Não era o mofo e podridão comum de lugar abandonado. Era mais forte, mais orgânico. Parecia uma fábrica de sebo que eu tinha vistoriado anos atrás, mas com um fundo azedo, de vômito.
Os andares principais eram normais: escritórios vazios, laboratórios sem nada, poeira de décadas. Meus passos ecoavam demais. As plantas mostravam quatro andares, mas quando chequei as escadas, vi marcações de um subsolo que não constava em nenhuma das minhas documentações — só um bilhetinho escondido no final do arquivo.
Curiosidade profissional é um perigo no meu ramo. Eu devia ter deixado pra lá.
A escada era estreita, de concreto institucional pintado de cinza há mil anos. A lanterna pegou algo nas paredes enquanto eu descia: arranhões. Profundos. Cinco linhas paralelas descendo o concreto, como se alguém tivesse cravado as unhas com força suficiente pra rasgar pedra.
O subsolo era um corredor comprido com várias portinhas. Celdas, na real. Cada uma com uma cama de ferro, uma mesinha e uma lâmpada pelada no teto. A anotação no meu arquivo dizia que aquele nível tinha sido usado pra “observação prolongada” em vários estudos. As portas ainda tinham números pintados: S1 até S36.
Trinta e seis quartos.
Trinta e seis cobaias.
Fiquei gelado apesar do casaco.
Os arranhões estavam em tudo ali embaixo: batentes, chão, até no teto. Num dos quartos, alguém tinha gravado na parede: AINDA COM FOME AINDA COM FOME AINDA COM FOME, repetido em espirais loucas que cobriam a parede inteira. A letra ia piorando, ficando mais descontrolada, mais rasgada.
No fim do corredor tinha uma porta pesada de aço com várias trancas. Uma placa dizia: OBSERVAÇÃO DE LONGO PRAZO. SOMENTE PESSOAL AUTORIZADO — DR. KEYS.
As trancas já estavam abertas.
Eu devia ter dado meia-volta. Meu Deus, eu devia ter dado meia-volta.
O cômodo lá dentro era enorme, uns 12 por 18 metros, com o teto sumindo na escuridão acima do alcance da lanterna. O cheiro me acertou como um soco: aquele cheiro de fábrica de sebo multiplicado por cem. E por baixo, outra coisa. Uma coisa que fez meu cérebro reptiliano gritar.
Tinham camas arrumadas em fileiras perfeitas. Trinta e seis camas.
Vinte e três estavam ocupadas.
Preciso que você entenda: eu já vi cadáver antes. Acidente em obra, uns suicídios em prédios que eu avaliei. Eu sei como é um corpo morto. Aquilo não eram cadáveres.
Eles estavam se mexendo.
Pouco. Só a respiração lenta, subindo e descendo. E eram… errados. Esquelético nem começava a descrever: eram corpos que tinham se devorado por dentro, queimado toda a gordura e depois começado no músculo, deixando só pele esticada sobre osso e tendão. Mas eram compridos demais. As proporções estavam tortas. Os dedos passavam muito do que deviam, com unhas grossas, amarelas e curvadas. As articulações inchadas, joelhos e cotovelos do dobro do tamanho normal.
E os olhos.
Quando a luz da lanterna passou pela cama mais próxima, os olhos se abriram de repente. Enormes, ocupando quase metade do rosto, pupilas tão dilatadas que pareciam buracos negros. Refletiam a lanterna como olho de bicho.
A boca daquela coisa se escancarou e eu ouvi um som que nunca vou esquecer: um estalo molhado, desesperado, como alguém tentando falar com a boca cheia de baba. A mandíbula desceu demais, e eu vi que os dentes tinham mudado — mais afiados, mais numerosos.
Depois ele se mexeu.
Nunca vi nada acelerar daquele jeito. Num segundo estava deitado; no outro já estava agachado na cama, cabeça inclinada num ângulo que quebraria o pescoço de qualquer pessoa normal. Não se movia fluido — dava uns trancos, como vídeo pulando quadro.
Todos os vinte e três acordaram. Vinte e três pares daqueles olhos gigantes, famintos, cravados em mim.
Eu corri.
Atrás de mim veio um barulho, não de passos, mas um estalar horrível, como se estivessem correndo de quatro. Ou de mais de quatro. Eu não olhei pra trás. Cheguei na escada e subi três degraus de cada vez, pulmão queimando, coração batendo tão forte que achei que ia explodir.
Uma coisa agarrou meu tornozelo.
Caí com tudo, queixo batendo no concreto. Atordoado, olhei pra trás.
Um deles tinha me pegado. A mão — se é que dava pra chamar assim — envolveu minha perna inteira, aqueles dedos compridos se encontrando do outro lado. O rosto dele estava a centímetros do meu, e eu conseguia ver cada detalhe na luz de emergência da escada.
Tinha sido homem um dia. Ainda dava pra ver na estrutura óssea, nos restos de humanidade agarrados às feições. Mas a fome tinha refinado ele em algo que a evolução nunca quis. A pele era translúcida, veias azuis visíveis como mapa. Os olhos desesperados, famintos, insanos.
A boca se abriu mais do que era possível, e eu vi a garganta se contorcendo, baba escorrendo pelo queixo em fios. O cheiro do hálito era indescritível: podre, ácido estomacal e algo químico.
Ele falou.
“Fome”, sussurrou, voz de folha seca. “Tanta… fome…”
Chutei a cara dele com o outro pé. Algo fez crack. Ele não soltou, mas recuou o suficiente pra eu arrancar a perna. Subi a escada engatinhando, depois me levantei e corri.
Cheguei no andar principal. A saída estava ali, luz do dia visível pelas janelas sujas. Eu ia conseguir.
Aí eu vi eles de novo.
Três no corredor à frente, bloqueando a porta. Deviam conhecer outro caminho pra subir. Se moviam daquele jeito horrível de stop-motion, pulando de um ponto pro outro, cabeças fazendo movimentos bruscos de ave pra me acompanhar.
O do meio usava o que sobrou de um crachá de voluntário da U of M. Ainda dava pra ler o ano: 1945.
Setenta e oito anos. Eles estavam lá embaixo há setenta e oito anos.
Olhei em volta desesperado e vi outra escada subindo. Corri pra lá, ouvindo aquele estalar atrás de mim de novo. Subi um lance, dois. Terceiro andar, corredor de escritórios vazios. Ali — uma janela, e uma escada de incêndio do lado de fora.
Não diminuí. Levantei os braços e me joguei no vidro.
Caí na escada de incêndio com força suficiente pra ver estrelas, vidro cravado na jaqueta e no cabelo. Embaixo, ouvi eles se atirando contra o batente da janela, incapazes ou sem vontade de seguir. Desci meio escalando, meio caindo, e corri pro meu caminhão.
Só parei de tremer direito quando já estava a mais de um quilômetro dali.
Não contei pra ninguém. Quem ia acreditar? Liguei pra universidade e disse que o prédio estava estruturalmente comprometido, que precisariam lacrar antes de qualquer demolição. Eles falaram que iam resolver.
Isso foi há três semanas.
No começo achei que estava bem. Assustado pra caralho, claro, mas bem. Tinha levado um susto, escapado, acabou.
Aí eu comecei a sentir fome.
Não fome normal. Era outra coisa. Eu comia uma refeição completa, enorme, mais do que eu costumava comer, e uma hora depois estava morrendo de fome de novo. Não só com vontade. Fome de verdade, dolorida, como se eu não comesse há dias.
Fui no médico. Ela fez exames. Tudo normal, disse. Metabolismo perfeito. Sugeriu que podia ser psicológico, me deu o contato de uma terapeuta.
Mas não é psicológico.
Eu sei porque perdi sete quilos em três semanas, mesmo comendo sem parar. Sei porque quando olho pras minhas mãos, meus dedos parecem mais compridos. Pouco. Só um pouco. O suficiente pra eu perceber quando digito ou pego um garfo.
Sei porque minhas articulações doem. Meus joelhos estalam quando levanto, e parecem inchados, quentes.
Sei porque ontem olhei no espelho e meus olhos pareceram grandes demais pro meu rosto.
Sei porque não consigo parar de pensar em comida. Todo pensamento volta pra isso. Sonho comendo, acordo com a mandíbula doendo de tanto ranger os dentes. Comecei a juntar receita de forma obsessiva, imprimi e cobri as paredes do apartamento com elas. Quando como, me pego lambendo o prato. Ontem me peguei calculando quantas calorias tem o cachorro da vizinha.
Sei porque a fome não tá mais na barriga. Tá nos ossos, nas células, no meu DNA. Tá me reescrevendo por dentro.
Passei de carro pelo prédio ontem. Tinham caminhonetes da manutenção da universidade lá fora, operários instalando chapas pesadas de aço em todas as janelas e portas. Nova placa: CONDENADO, PROIBIDA A ENTRADA, ESTRUTURA PERIGOSA.
Eles estão lacrando. Lacando eles lá dentro.
Mas pra mim já era.
Escrevo isso como aviso. O Experimento de Inanição de Minnesota não acabou em 1945. Continua rolando. Aqueles caras se voluntariaram pra passar fome pela ciência, pra ajudar a humanidade, e alguma coisa naquele processo transformou eles em algo que não devia existir. Talvez tenha sido a duração, a fome por tanto tempo que os corpos se adaptaram de formas impossíveis. Talvez tenha sido outra coisa, algo naquele prédio, naquele porão.
Não importa mais.
O que importa é que eu sinto acontecendo. As mudanças estão acelerando. Meus dedos estão definitivamente mais compridos hoje. Tive que aumentar o teclado no trabalho. Minha mandíbula estala quando mastigo, como se os ossos estivessem se soltando, se preparando pra esticar. Tô com tanta fome que mal consigo pensar, e comer não adianta mais. Nada adianta.
Ontem à noite senti vontade de voltar. Voltar pro prédio, pro porão. A fome me chama, sussurra que o alívio tá esperando no escuro com os outros. Que eu pertenço lá agora. Que sempre pertenci.
Tô tentando resistir. Tô tentando muito resistir.
Mas eu tô com tanta fome.
E meu contrato de aluguel vence mês que vem. Acho que não vou renovar.
Se você estiver lendo isso, fique longe do laboratório antigo no campus da Universidade de Minnesota. Não chegue perto. Não tente investigar. Lacrararam agora, mas lacre se quebra.
E pelo amor de Deus, se um dia você estiver perto daquele lugar e ouvir som de arranhões vindo de baixo da terra, se sentir aquele cheiro de fábrica de sebo misturado com vinagre e coisa errada, corra.
Porque eles ainda estão com fome.
Nós ainda estamos com fome.
E eu não acho que aguento muito mais tempo.
Meus dedos estão compridos demais pra digitar direito. Vou parar aqui.
Tem trinta e seis camas lá embaixo. Acho que uma delas sempre foi minha.