segunda-feira, 15 de abril de 2024

Eu dei ao demônio do sino a voz da minha melhor amiga

No verão de 1998 eu dei ao demônio do sino a voz da minha melhor amiga. Ontem eu ouvi de novo pela primeira vez em quase trinta anos.

Passei muito tempo na casa das minhas amigas. Eu sei que deve ter feito meu avô sofrer por eu passar tanto tempo longe dele, mas eu era uma criança egoísta e só queria… mais. Melhor. Isso me consumia. Aos dezessete, acho que cada momento que eu estava acordada era consumido por inveja.

Tudo que eu queria era o que outras pessoas tinham. Robin- minha melhor amiga- costumávamos passar horas no telefone ou mandando mensagens umas para as outras nos nossos velhos e resistentes celulares nokia. Eu a amava com todo o meu coração, mas também a odiava um pouco. Ela era a alma mais doce e generosa que eu já conheci, mas ela tinha tudo. Dois pais que a amavam, uma casa legal nos subúrbios, as roupas certas, a maquiagem certa e um conversível novinho em folha que seus pais compraram para ela no seu aniversário de dezesseis anos.

Ela também era a única razão pela qual eu tinha um celular. Qualquer contato com o mundo exterior quando eu estava em casa. Os pais dela pagavam nossa conta- algo em torno de cento e cinquenta dólares por mês para uma de nós.

Mas qualquer coisa pelo bem da filhinha deles.

Eu ficava na minha varanda à noite lutando contra as traças enquanto ela ficava no limite da borda da sua cama rosa bonita em seu quarto com ar condicionado, ambas falando sobre nossos futuros e o que queríamos.

Me matava saber que tudo o que ela queria era uma família. Os pais dela iam pagar para ela ir para a faculdade em qualquer curso que ela desejasse, mas para ela era apenas um caminho para conhecer o Sr. Certo. Ela queria um bom marido e dois filhos o mais rápido possível.

Que desperdício de vida, eu pensava. Ser uma dona de casa quando poderia ser qualquer coisa. Eu mataria para ter as opções que ela tinha. Qualquer opção.

E acho que esse desejo invocou algo.

Eu estava sentada na minha varanda como de costume, exceto naquela noite em particular eu não estava a fim de falar com ninguém. Lembro de ver meu celular acender com mensagem após mensagem, correio de voz após correio de voz. Robin queria falar. Ela estava tão animada! As cartas de aceitação tinham chegado e ela queria decidir em qual faculdade iríamos. Juntas.

Você já ficou tão bravo que parecia estar fisicamente em chamas? Como se a parte de trás do seu pescoço e as orelhas estivessem queimando, a base da sua garganta e do couro cabeludo apertada, como se suas costelas estivessem apertando seus pulmões?

Eu estava incandescente de raiva quando a luz se espalhou pelos degraus da varanda. Demorou muito para eu perceber. Na verdade, acho que foram as traças que me fizeram notar. Percebi que não tinha sido abatida por uma em um minuto.

Levantei a cabeça bem na hora em que a ouvi.

Há tantos sons que são perfeitamente normais com contexto- mas sem podem arrepiar os cabelos.

O grito de um mergulhão. O assobio de caniços. O bramido de um alce. O vento sussurrando na grama seca. No escuro- no silêncio da noite- sem explicação para eles, sem um corpo a relacioná-los, eles poderiam ser sinistros. Assustadores, até. Adicione um pouco de música de acordeão a esses? 

De repente não parece assustador mais.

Morávamos nos últimos vestígios de uma fazenda. Prédios desmoronados estavam espalhados pelo que restava da terra que meu bisavô havia limpo. A floresta havia tomado a maior parte dela, incluindo a casa antiga.

Havia tantas portas falsas. Entre os galpões e árvores caídas- encostados contra paredes arruinadas como bêbados sonolentos- elas estavam em toda parte. Ao redor. A maioria delas eram becos sem saída. A música vinha de uma das mais escuras. Tão preta que nem a melhor visão noturna conseguiria ver dentro.

Não que fosse totalmente necessário. Os dois joelhos finos e nodosos que se destacavam da escuridão pintavam um quadro vívido o bastante. As pernas longas e cinzentas de fuligem às quais eles estavam presos contavam uma história própria. Assim como os dedos afiados e nodosos que espreitavam entre as ervas daninhas. Os dedos tinham o tamanho das mãos da maioria dos homens. Os joelhos eram do tamanho de uma cabeça, e as pernas- eu tinha um metro e setenta e ficaria bem na altura dos gêmeos.

Flores estranhas cresciam ao redor deles. Bastões marrons finos com sinos, agrupados como pequenos corpos encolhidos de medo. Sinos genuínos. Os de verdade. Seu metal brilhava na luz fraca da lua. Suas bocas voltadas para o céu como se estivessem gritando de medo, mas incapazes de fazer um som. Todos os seus badalos estavam faltando. Todos eles. Estavam empilhados ao lado dos pés do músico como ossos de galinha. Restos de ossos de galinha roídos, limpados.

Fiquei ali sem palavras, o que foi uma sorte.

O acordeão parou. O som morreu em um gemido de um cata-vento que arrepiou meus cabelos. Se eu já não estava arrepiada-

“Tem algo para trocar, irmã?” Ele enfiou dois dedos afiados e pegou um dos sinos da grama, erguendo-o na minha direção. Eu fiquei paralisada de choque e medo. Eu teria corrido caso contrário- mas estava tão congelada para ir, então assisti. Assisti enquanto ele pegava um dos sinos do chão perto de seus pés e o enfiava dentro. Assisti enquanto ele dava um balanço. Ouvi enquanto as profundas vozes soul tocavam ao redor de mim. Minha respiração assobiou pelos meus dentes. De repente eu entendi o que estava sendo oferecido.

O plástico rachou no meu punho. Eu estava segurando o celular tão forte que a capa estava estufada. A tela se acendeu de novo. Eu vi o brilho passar pelos meus dedos e olhei para ele.

Ele segurava o sino na minha direção. Eu segurava o celular na direção dele. Eu apertei o botão de atender bem antes de ele pegá-lo.

“Alô?" Foi a última coisa que alguém ouviu Robin dizer. Até hoje. Ela não estava fazendo nada com ele de qualquer maneira. E ela ia querer que eu fosse feliz. Ela era tão generosa desse jeito.

Esperei até estar na metade do caminho para experimentar minha nova voz. Sentia-se boa e poderosa na minha garganta. Eu ri pela primeira vez em anos. Aquilo também foi bom. Assim como ter um plano. Eu sabia exatamente o que faria e fiz. Encontrei uma rádio local a dois estados de distância e comecei a fazer comerciais de rádio.

Eu era boa nisso também. Eu conseguia fazer qualquer pessoa querer qualquer coisa. Acreditar em qualquer coisa. Eu poderia ter começado uma seita, mas eu queria uma carreira com longevidade.

Só olhei para trás duas vezes.

Uma para mandar um cheque para o meu avô e devolver o caminhão dele. A outra para ver o obituário da Robin.

Depois de um quarto de século, achei que tinha escapado, mas essa manhã tive uma queda feia no trabalho. Acordei há cerca de seis horas com uma bonita moça loira checando meu soro. Quando olhei para ela e tentei perguntar o que havia acontecido, ela me acalmou suavemente e sussurrou-

“Não se preocupe. Vamos consertar tudo.” Na voz da minha melhor amiga. Ela diz que é minha defensora de pacientes. Que fui designada a ela porque machuquei a garganta na queda.

Tentei pedir ajuda, mas minha voz está tão fraca. Quase não consigo mais me ouvir falar. Acho que a enfermeira está me dando algo de qualquer forma. Fico tonta toda vez que tento sair da cama. Tentei usar o botão de chamado, mas tudo o que faz é tocar o toque de nokia repetidamente.

Acho que estou perdendo a minha mente.

Pedi ajuda a ela. Para outra pessoa. Qualquer coisa. Tudo o que ela fez foi me entregar este celular, mas de repente não consigo me lembrar do número de ninguém, exceto o meu. E o dela. Não há ninguém para ligar de qualquer forma. Ninguém sobrou para mandar mensagens. Entrei neste site como um último recurso, porque posso sentir minha noção de eu começar a desaparecer. Não sei o que vai acontecer comigo, mas acho que perder minha voz é apenas o começo.

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