Era véspera do Dia das Bruxas, e o campus tava fervendo com um monte de aluno bêbado desfilando pelo saguão. Fazendo parte daquela galera alta era eu, a fofa da Abi Mae vestida com um macacão de gatinha brilhante, e minha melhor amiga Barbara, que tava sóbria como um santo. Ela usava um nariz vermelho de borracha e uma roupa de palhaço old-school, com um sorriso pintado que dava arrepio em todo mundo que passava por nós.
Juntou-se a nós a Tammy, que tava super bêbada e passando por um término. Deve ter sido um pé na bunda daqueles, porque eu não via nem sombra do Jason desde então. Ela tava com o uniforme de corrida e um círculo cartoon colado nas costas de qualquer jeito. Passamos boa parte da noite vagando pelo campus, tomando cerveja e admirando as fantasias sinistras. A cena de festas em casa na cidade é praticamente zero, infelizmente, mas os alunos compensavam ficando doidos e depois destruindo o gramado central.
A estátua de bronze do fundador da escola, com aquela cara de bobo, já tava coberta de papel higiênico quando saímos. Dois frat boys vagabundos com máscaras de borracha baratas posavam na frente. A gente só deu risada e seguiu em frente, curtindo a brisa e dando um gole escondido na cerveja quando dava. A Tammy tava mandando ver no álcool, engolindo uma Pabst atrás da outra.
Eu não tava preocupada em acabar, a Barb carregava uma mochila cheia daquelas baratas nas costas, tipo mula de carga. Eu tinha conseguido um bom desconto graças ao velhinho simpático da entrada do supermercado. No fim da noite, a gente praticamente carregou a Tammy de volta pro dormitório, o cabelo dourado dela todo melado de suor de bebida.
Ainda bem que a gente tava começando a encerrar a farra de Halloween. O céu, que tava limpinho, começou a encher de nuvens brabas. De longe, dava pra ouvir o trovão. Me dá arrepio só de ouvir esse som.
O Romero Hall, nosso lar longe de casa, tava todo enfeitado pro Halloween. As janelas cobertas de fantasmas sorridentes e morcegos de papel machê. As luzes fracas lá dentro lutavam pra escapar do vidro fosco, criando um brilho sinistro que fazia os olhos de papel parecerem vivos.
Paramos na escada da frente e desabamos num monte, a Barb soltou um suspiro enquanto colocava a mochila barulhenta no chão. Ela começou a remexer nela enquanto a Tammy ria de uma piada particular do lado. Eu cutuquei ela, com meio sorriso no rosto. Mexi a bochecha de um jeito que fez meus bigodes pintados dançarem.
“O que foi tão engraçado?” perguntei alto demais. Eu só tinha tomado umas onze cervejas até ali, então não tava TÃO mal, acho. O olhar que a Barb me deu sugeria o contrário.
“Nada, nada.” A Tammy balançou a cabeça, o cabelo bagunçado voando na cara. “É que eu achava que ele me amava, sabe, e ele jogou tudo fora assim.” Ela fez um gesto exagerado, arrastando as palavras, o corpo balançando pra lá e pra cá, inclinando um pouco pro lado. Os olhos dela tavam fechados, e ela murmurava coisas sem sentido. Dei um aceno solidário.
“Eu sei, amor, ele era um otário mesmo, você merece muito mais.” Tentei consolar. Lancei um olhar preocupado pra Barb e sussurrei: “Ela tá cortada.”
“Sem merda.” A Barb resmungou, olhando a mochila quase vazia. “Ela tomou trinta e cinco latas.” Contou.
“Cara, não conta cerveja, isso não é legal.” Falei, mas guardei aquela informação preocupante pra depois. Ao longe, uns malucos fantasiados gritavam e uivavam, pareciam piratas bêbados. A Tammy gemeu do nosso lado, meio desmaiada. Ajudamos ela a levantar enquanto eu fuçava os bolsos da calça procurando o cartão de acesso do prédio.
“Que quarto é o dela de novo? A gente pode largar ela lá.” Falei.
“Abi, a gente não pode abandonar ela nesse estado.” A Barb protestou. Suspirei e olhei pra nossa amiga apagada. Ela ria de novo, a cabeça balançando como se concordasse com a Barb. Mas acho que ela tava na dela, correndo atrás de coelhos, se é que me entende.
“Tá bom, ela pode dormir lá em cima, mas se ela vomitar nos meus lençóis, não vou limpar.” Avisei.
“Que altruísmo o seu.” A Barb retrucou enquanto a porta imponente do Romero Hall se abria. Levamos nossa amiga bêbada pra dentro e corremos rindo pro elevador. O cara da recepção, com cara de cansado e camiseta de M&M, nos lançou um olhar irritado enquanto passávamos pela recepção cheia de teias de aranha falsas.
Nos esprememos no elevador minúsculo e subimos uns andares, cada ping dando espaço pra um monte de comentários bêbados da Tammy.
“Já chegamos—”
“Sinto falta daquele filho da puta podre—”
“Eu gosto de elevador, já comi um cara num uma vez. Ele era gostoso.”
Dei um tapinha nas costas dela enquanto a segurávamos nos ombros.
“Sim, amor, tenho certeza que sim.” Ela jogou a cabeça pra trás e soltou um uivo desgrenhado quando as portas do elevador finalmente abriram no nosso andar.
“Tá bom, Lobo Adolescente, vamos te botar na cama.” Falei, aliviada que não tinha ninguém pra ver o show dela. Nós três andamos pelo corredor, as portas fechadas em silêncio, exceto por uma TV alta ou um gemido “fantasmagórico”.
Viramos a esquina e passamos pelo banheiro. Agarrando a lateral da porta por dentro tinha uma mão pálida e mofada. Pela fresta da porta aberta, eu vi um pupilas vermelhas pulsantes.
Com um gemido frustrado, levantei a perna e chutei a porta, o fantasma fugindo enquanto eu fazia.
“Sai fora, Melvin, não tô no clima.” Resmunguei. A Barb ficou chocada com o espectro do banheiro. O rosto dela ficou branco como o próprio ceifador; os olhos amarelos dela mostravam medo de verdade.
“O quê—é só o Melvin.” Zombei.
“É real, eu achava—” A Barb gaguejou, a descrença no paranormal destruída pra sempre.
“Ei, eu te falei, o Jason te falou, por mais que isso valha.” Falei. As orelhas da Tammy se ergueram, e ela começou a chorar o nome dele, uma explosão de lágrimas saindo dos olhos tristes. Nós duas gememos e arrastamos ela pro quarto, que por sorte ficava só umas portas depois do banheiro.
Nosso quarto compartilhado era legal, tinha uma vista ótima do campus; dava até pra ver um pedaço do centro se você olhasse além da torre do relógio antiga no meio do gramado. Do meu lado, à esquerda, tava lotado de roupa suja e uma TV Roku pequena jogada numa mesa meio bamba de frente pra minha cama mal feita.
Do lado direito, o da Barb, era quase uma foto de revista. A cama dela arrumada, lençóis macios encaixamateados em cada canto. A mesa limpa, só com caderno e laptop. Acho que quando você nunca cansa, dá pra focar mais em arrumar a bagunça.
Jogamos a Tammy na minha cama, do lado dela, claro, com todo o cuidado que a gente conseguiu. Ela desabou na cama de solteiro imunda, as molas rangendo em protesto. Ela se encolheu na minha cama e eu ajeitei um travesseiro pra ela como boa anfitriã. Ela murmurou um obrigado, os olhos grudados enquanto o vazio de vertigem tomava a mente dela.
“Mmm bebi demais. Deshc culpa, gente. Vocês são legais. Não vou comer vocês.” Ela arrastou as palavras enquanto finalmente apagava na serenidade de um blackout total. Com um suspiro, a gente viu ela roncar e recuamos pra cama da Barb. Lá fora, a lua minguava mas ainda tava alta; os noturnos ainda tavam firmes. De manhã, imaginei que a polícia do campus ia bater de porta em porta pra descobrir quem fez o quê e como. Eu já tinha tido minha cota de bagunça pela noite, mas ainda queria fazer algo no espírito da temporada.
Esse foi meu primeiro erro.
Eu e a Barb ficamos ali, pensando nas opções enquanto o silêncio pensativo era quebrado pelos roncos esporádicos da Tammy e murmúrios sobre o Jason e um tal de Travis.
“Então, o que você acha que rolou entre eles, afinal?” perguntei pra Barb. Ela deu de ombros.
“Tô noventa e cinco por cento certa que ela matou ele.” Disse sem rodeios.
“Pfft, sei não.” Ri. “Mesmo se matou, bom riddance, eu digo. O cara passava vibe de serial killer futuro.” Sorri.
“Você fala isso de todo mundo.” A Barb ponderou. “A gente devia dormir ou ficar acordada ou ver um filme ou algo assim.” Um filme parecia legal, mas eu queria algo divertido pra manter meu barato minguando. Olhei pro meu lado do quarto, desesperada por qualquer coisa pra fazer no dia mais assustador do ano.
Meu olhar caiu no espelho grande de pé que ficava de frente pra minha cama. Era um espelho cheval padrão, daqueles que giram se você deixar. Minha mãe tinha me dado de presente surpresa de aniversário na semana passada. Lembro dela arrastando a coisa, raspando no chão de madeira que eu com certeza vou ter que pagar.
Olhando pra ele agora me deu uma ideia diabólica. Pulei da cama e me abaixei no meu canto, fuçando por meu último desperdício de grana. A Barb me olhou de canto, meio divertida com minha empolgação, certeza.
“A-ha!” exclamei, achando o pacote ainda lacrado embaixo. Puxei e brandi como se fosse um troféu, em vez de uma tábua Ouija velha que comprei online de um cara chamado “Buyer_Tuck”. A Barb me olhou cética.
“Ah, vai, por favor.” Supliquei. “É Halloween, a gente tem que fazer algo meio assustador.”
“Você não acha meio idiota mexer com uma coisa dessas?” Ela perguntou.
“Pfft, desde quando você acredita em fantasmas.” Provoquei.
“Eu literalmente acabei de ver um nos encarando no corredor.”
“Pode ter sido o vento.” Falei com sinceridade. Comecei a rasgar a embalagem frágil. A caixa tava gasta e cheirava a mofo. As letras tavam apagadas, a pintura ruim lascada. Na capa, um planchette desgastado tinha um símbolo antigo de um alce. Parecia que algo ia pular quando eu abrisse.
Pra minha leve decepção, nem um enxame de mariposas nem um desfile de morcegos voou de lá quando abri. Fiquei impressionada de ver que a tábua em si tava em condição impecável. Soltei um assovio enquanto tirava com cuidado do caixão antigo. Coloquei a tábua na frente do espelho e sentei de pernas cruzadas na frente.
“Vai, vamos fazer isso, apaga a luz no caminho.” Cuspi animada pra Barb.
“Abi, isso parece uma péssima ideia.” Ignorei o aviso dela.
“Vai, você tem que fazer comigo; é azar usar uma sozinha.” Instiguei. A Barb suspirou e se rendeu ao ritual bobo comigo. Ela foi até lá e desligou o interruptor, os olhos brilhando pra mim no escuro.
“Show, deixa eu pegar umas velas. Você não vai se arrepender, vai ser foda.” Falei, pegando umas velas na gaveta da mesa.
“Você que diz, cara.” Ela disse enquanto sentava.
“Ah, vai, qual o pior que pode acontecer?”
Dizer esse clichê ignorante foi, hum, meu segundo erro.
Sentamos um de frente pro outro no escuro virgem; nossa única luz era um punhado de velas pequenas espalhadas ao redor. O cheiro doce de creme de baunilha flutuava no ar. Cada uma com as mãos no planchette; balançávamos a peça pela tábua, circulando o centro três vezes.
Então—nada. O único som era a apneia do sono da Tammy. Me inclinei e sussurrei minha primeira pergunta.
“Espíritos, nos aproximamos de vocês agora, nesta noite mais profana.”
“Sério?” Ouvi a Barb rindo baixinho.
“Shhh. Nós os chamamos; nós os convidamos. Há algum entre vocês corajoso o suficiente pra nos entreter?” Perguntei à tábua.
Fomos recebidos com silêncio. Um silêncio sinistro, até o barulho de conversa bêbada lá fora tinha parado. O planchette encolhido sob nossos dedos ficou parado. Eu tava começando a me sentir idiota; quer dizer, isso só funciona em filmes B ruins. Então o ar ao redor ficou pesado. As chamas fracas ao nosso redor piscaram, como se sentissem a presença elétrica no ar. Ao longe ouvimos um trovão, um relâmpago distante brilhou lá fora.
“A tempestade finalmente tá chegando.” A Barb murmurou, senti o interesse dela minguando a cada segundo. Eu tava prestes a falar quando senti algo puxar o planchette. Foi um movimento sutil, quase me fez recuar da tábua num ato covarde. O sorriso da Barb sumiu enquanto ela franzia a testa.
“Você fez isso?” Ela sussurrou.
“Você?” Acusei. Antes que a gente pudesse discutir, o ponteiro começou a se arrastar pela tábua, parecia giz riscando asfalto. Olhamos boquiabertos enquanto o planchette ia direto pro “Sim”. Ficou ali, como se nos desafiasse a continuar. Meus olhos verdes opacos encontraram os estrobos da Barb, até ela parecia assustada. Limpei a garganta e perguntei:
“Você é um fantasma?”
A Barb revirou os olhos pro que eu achava uma pergunta óbvia, mas simples. Então o ponteiro se moveu de novo, pra um “Não” rápido e preocupante. O quarto ficou frio então; as sombras ficaram mais brilhantes e animadas na luz simples. O espelho do nosso lado era um monólito ameaçador, parecendo um terceiro não dito no nosso joguinho.
“O que—você é, então.” Encarei a tábua. Ela pensou na pergunta por um momento, então o ponteiro se moveu calmamente.
“D. . . E. . . M. . . O—” Comecei, mas a Barb rapidamente tirou as mãos das minhas e se afastou da tábua.
“Nope, não, não, foda-se isso. Abi, leva essa coisa lá fora e queima.” Ela gaguejou. As velas piscaram violentamente com o surto dela, o ar tenso e gelado com a rejeição. Meus olhos se arregalaram como os de uma boneca e olhei pra ela como se ela tivesse cometido um crime grave, minhas mãos tremendo no ponteiro delicado.
“Barb, tem tipo um monte de regras sobre tábuas Ouija que você acabou de quebrar.” Expliquei calmamente. Mesmo assim, ela balançou a cabeça.
“Nope, não quero saber. Agora eu acredito, acho que a gente precisa pedir outro dormitório, na verdade.” Ela tremeu só de pensar em encontrar o Melvin fantasma do banheiro de novo.
“Cara, você realmente não devia fazer isso sozinha.” Minha voz tremeu, não ousava tirar as mãos do ponteiro. Eu sentia algo, um toque leve nos meus dedos ansioso pra continuar jogando, sozinho ou não, logo aconteceria.
“Eu fico olhando, mas não vou tocar nessa coisa.” Ela cedeu um pouco. Suspirei e olhei pro espelho. Era só eu que via, perto da base uma sombra parecia pairar. Terceiro erro, nunca use tábuas espirituais na frente de superfícies refletoras. Você pode não gostar do que olha de volta.
“Tá bom. Só, por favor, não me deixa sozinha agora.” Guinchei. A Barb fez careta com meu medo e se aproximou um pouco. Ao longe o trovão rolava, invadindo nosso campus. Dava pra ouvir o splatter rápido das gotas de chuva, um bater frenético contra as janelas. Comecei de novo, incerta se devíamos continuar mas mais preocupada com o que aconteceria se parássemos.
“Ok, demônio. Beleza. Qual seu nome?” O ponteiro não perdeu tempo; me puxou pro “F” e repetiu o movimento frenético mais cinco vezes. Eu sentia o que quer que fosse, tava irritado mas ansioso pra agradar. Ele cravou a palma astral na minha e guiou o ponteiro pro nome infernal.
“-U. . .R, espera, sério? Seu nome é Furfur?” Dei risada. A tábua ficou parada por um momento, então relutantemente foi pro sim.
O par insolente caiu na gargalhada idiota com a confirmação do nome do conde—MEU nome. O erro mais grave que aquela pirralha já cometeu na sua vida ridícula e esquisita. A tábua tremia de raiva, batendo no chão. Dei um aviso educado; pare, cesse imediatamente. Eu era o guardião do conhecimento restrito, o portador da tempestade, o ala mais refinado do submundo; como ousavam zombar do meu nome honrado. Mas a risada grosseira continuou, fazendo pouco da minha linhagem.
Isso não podia ficar assim, claro.
Eu não conseguia me conter; era só um nome bobo. Até a séria Barb tava segurando uma risada nervosa. A tábua fez birra, batendo as pontas no chão, o ponteiro fazendo ameaças sem sentido. Eu tava segurando o melhor que podia, mas era uma onda de movimento; mal conseguia entender o que o demônio dizia. O trovão lá fora tinha virado uma montanha de fúria, a tempestade batendo no prédio, desesperada pra entrar.
“Haha, ok, olha—desculpa. Mas vai, a gente não conseguiu um dos demônios bons.” Provoquei. O ponteiro parou de vez. Comecei a mover ele em círculo de novo, continuando meu discurso irritante. “—Ou tipo um fantasma serial killer, não, a gente pegou um cara engraçadinho chamado Furfur.” Da cama ouvi um som murmurado da Tammy, algo como “Nome idiota.”
“Exato. Desculpa, cara, não dá pra levar a sério, então—adeus.” Terminei o círculo e soltei o ponteiro. O trovão parou e o único som era a chuva frenética lá fora. O quarto tava mais frio, mas fora isso tudo parecia normal.
“Viu, nada aconteceu e a gente zoou um demônio.” Sorri orgulhosa, ignorando como minha respiração se materializava no quarto gelado. Os olhos da Barb se arregalaram, o olhar fixo no espelho. Olhei pra ele, meu sangue gelando.
O espelho era obsidiana sólida; nenhum reflexo atravessava a superfície. Nem a luz fraca das velas conseguia furar o véu de sombras que tinha virado. Me afastei da tábua, percebendo tarde demais que tinha ido longe demais.
A escuridão dentro do espelho se moveu, um som solitário ecoou então, o grito agudo de um cervo. O berro do alce se enterrou nos meus tímpanos, marcando pra sempre com suas notas de desprezo. No vidro escuro, dois carvões pequenos apareceram. Eram como bolas de gude, com um toque de leite rodopiando no vermelho rubi. A Barb gritou de terror, correndo pro meu lado e agarrando meu braço. Ela esqueceu a força e quase destruiu meu braço enquanto me segurava com força.
O preto que se dobrava sem parar começou a tomar forma. Era perfeito na execução, a força de um ser de eras antigas, suponho. Duas asas grandes envolveram o corpo enquanto aparecia. Aqueles olhos de mármore espiando do manto tavam fixos só em mim. Dois chifres majestosos brotaram da escuridão. Como vinhas torcidas, se enrolavam e se abriam. A criatura profana botou a cabeça pra fora das asas. A cabeça era de um alce adorável, e enquanto as asas se abriam não consegui deixar de notar o físico excepcionalmente definido. A pele era clara, com um tom acinzentado pelo que eu via na escuridão cruel.
As velas minguando ao nosso redor foram apagadas rápido, o cheiro doce de creme logo substituído por um fedor grosso de almíscar misturado com enxofre. Me fez engasgar, mas segurei a onda de sujeira subindo. Não era fácil, considerando a quantidade de veneno que eu tinha enfiado na minha goela gulosa. Tinha um pingo de medo vendo o sem forma tomar forma, mas um tesão doentio de empolgação, como se eu não pudesse esperar pra ver onde isso ia dar. Me perguntei se eu daria conta do cara cervo numa luta justa.
Especimen resiliente, vou dar isso pra ela.
As mãos dele eram gastas, dedos longos e tipo galhos. Onde o umbigo encontrava a pélvis era uma mistura de homem e cervo. A parte de baixo tinha um pelo marrom maravilhoso salpicado de pontos brancos, e uma faixa prateada descendo pelas costas. Tinha até um rabinho fofo, uma bolinha pera com um tufo de neve na ponta. Furfur ficou no espelho, se deliciando com nosso medo mortal fraco. O rosto dele era inexpressivo, mas eu sentia a fúria dele me queimando como fogo do inferno.
“Olhem para seu superior e tremam aos meus cascos negros.” Ele cantou nas nossas mentes enquanto o trovão batia no prédio. A Barb tava petrificada de medo, o rosto contorcido em horror puro. Coube a mim lidar com o demônio ofendido.
“Uh—” Meu cérebro deu tilt, não conseguia pensar num comeback ou pedido de desculpas que nos salvasse da ira demoníaca dele.
Então, dobrei a aposta. Abri um sorriso e cutuquei a Barb.
“Olha só isso, o cara acha que aparecer como Bambi vai me fazer adorar ele. Talvez se você fosse uma cobra ou um dragão, eu me ajoelhava pra você; mas um cervinho? Desculpa, parceiro, não curto esse tipo.” Exclamei.
O demônio alce avançou, botando a cabeça pelo espelho. Passou pela barreira com facilidade, os chifres enormes raspando o teto enquanto passava. Ele levantou um dedo afiado pra mim e mexeu o focinho.
“Palavras tão ousadas pra uma cuja vida é só uma mancha no tapeçar do cosmos.” Ele ponderou.
“Se sou uma mancha, por que tá tão puto.” Retrquei, um pouco mais confiante na minha burrice. O demônio saiu metade do espelho, colocando um casco no chão, jogando a tábua pro lado com facilidade.
“Vocês mortais e seus teatros cansativos. Nunca aceitam que são só um degrau na escada. Sempre retrucando as mãos que graciosamente permitem que sejam tão ousados.” Cutuquei a Barb de novo, que ainda tava em curto-circuito de medo. Ouvi o Furfur rir na minha mente, um som irritante pra caralho.
“Sua bonequinha carregada de alma não pode te salvar. Se implorar, talvez eu poupe ela quando terminar de esfolar você.” Ele cuspiu frio. Levantei rápido e tentei fugir, pegar a tábua. Tinha que ter algo que eu perdi, foi quando me toquei.
A Barb nunca disse adeus.
“Barb, pega a tábua e diz ade—” Fui cortada por uma mão grossa me agarrando pelo pescoço. Ele apertou e espremeu, minha traqueia desmoronando enquanto eu subia no ar.
O demônio inclinou a cabeça enquanto eu me debatia na mão dele, minhas pernas molengas chutando os abs de aço. Arranhei e arranquei a pele dele; era como uma camada de ferro. Logo minhas unhas tavam quebradas e ensanguentadas, mas eu ainda resistia, agarrando cada golfada de ar com respirações loucas.
A Barb viu meu perigo e tentou ajudar mas foi jogada pra trás com um tapa nas costas. Ela voou pelo quarto, um estrondo enorme ecoando. Ela caiu bem perto da tábua, e enquanto se recuperava devagar, o mundo girando, a tábua chamou sua atenção.
Ela tentou desesperadamente completar o ritual, gritando “Adeus” frenéticos enquanto girava o planchette patético pela tábua silenciosa. Tentativa nobre de salvar a amiga, fútil, claro. Uma vez quebrada, as regras raramente perdoam a retribuição. A ruiva bagunçada se contorcia nas minhas mãos, cuspindo xingamentos pra mim, gotas de cuspe sujando minha aparência profana. Apertei mais, e o rosto pálido dela começou a ficar de um roxo vibrante maravilhoso.
Mas ela ainda resistia, golpe após golpe patético em mim, cada um não menos fraco que o anterior. Ela tava determinada a lutar comigo a cada passo. Fazia tempo que eu não encontrava uma alma com um espírito tão—vigoroso, digamos. Olhei nos olhos dela e vi tanto ódio. Soltei ela e ela desabou no chão.
Enquanto eu tava lá, saboreando o ar fresco descendo pela garganta, o Furfur ficou triunfante sobre mim. Os chifres dele furaram o teto, pedaços de gesso e poeira caindo como granizo. Ele me encarava, os chifres rangendo enquanto cortavam mais fundo no teto. Os olhos dele, seus rubis perfurantes que pareciam saber cada segredo sujo que eu já escondi, era tudo que eu via enquanto as asas grandes nos envolviam. A última coisa que ouvi do mundo lá fora foi a Barbara gritando meu nome.
Dentro do manto de couro que nos cobria era uma escuridão sem fim. Era frio lá dentro; a única fonte de calor a cabeça flamejante de alce que me via tremer no escuro profundo. Ele me observava com interesse, pensamentos invisíveis rodando na mente. Olhei ao redor por qualquer coisa, qualquer arma ou rota de fuga que eu pudesse tropeçar.
Não tinha nada. Nada além de mim e o ser de poder incomensurável que eu tinha irritado pra caralho. Deus, como eu fui burra. Não devia ter zoado ele, nem devia ter feito contato. Devia ter só dito “Ei, Barb, vamos ver Scary Movie 2 e relaxar a noite toda.” Mas não, eu tinha que ser uma idiota egoísta que provavelmente matou nós duas. Por que eu era assim? Eu só saio procurando confusão, é como se eu tivesse um desejo de morte ou algo assim. Essa necessidade irritante de cutucar o urso até ele arrancar minha mão. Agora arrastei minhas amigas pra isso, deus, o que tem de errado comigo.
Eu só queria ir pra casa e fingir que essa noite toda tinha sido só um pesadelo longo e miserável. Queria que meu cachorro estivesse aqui, o Perry com seu focinho gorducho, ele ia morder esse filho da puta cervo. Esse auto-ódio não tava me levando a lugar nenhum, eu já enfrentei coisas mais assustadoras que esse cara. Puta merda, nem o primeiro híbrido de bicho da floresta que eu vi. Eu era a Abi Mae, caralho, eu podia lidar com isso, eu sabia que podia—
Cesse seus pensamentos, criança, eles zumbem na sua mente como mosquitos.
Uma voz sedosa encheu minha mente, um dialeto mais refinado e divino.
Se você tivesse mais respeito, eu poderia ter compartilhado conhecimento arcano com você. Pequenos truques de salão pra divertir seus comrades. Afinal, você é só humana. Diferente das suas amigas, a boneca e a cadela. Você acha que elas riem pelas suas costas, a mortal fraca e sem poder que elas têm que babysitar?
“Cala a boca.” Falei pro alce parado na minha frente.
Não me surpreenderia se rissem. Você enfrentou tanta adversidade, Abi; só vai piorar. Um dia em breve, você vai estar sangrando no chão, suas entranhas sujando o solo enquanto o pouco de vida que resta é lentamente apagada pra sempre. O além é um lugar frio e solitário pra uma como você.
Simpatia inundou meu cérebro, uma farsa, eu sentia ele fuçando minha mente como quem folheia um arquivo. Procurando qualquer pedaço suculento pra me torturar. Agarrei meu crânio em frustração, tentando me concentrar em manter o cervo intrometido fora.
Não funcionou.
Eu sentia ele vasculhando cada pensamento privado e memória vergonhosa que eu já tive, rindo de traumas que eu achava enterrados. Enquanto isso eu xingava ele, tentando em vão parar a intromissão.
Acalme-se, Abi. Você teve uma série de desventuras; lutou tanto com sua depressão incapacitante. Duro de dizer, talvez. Mas é verdade. Sempre se sentindo tão pequena na multidão, não importa o quão escandalosa você se comporte. Cada surto um grito desesperado por validação, cada briga com a morte um tesão que você não ousa replicar com facilidade, pra não voltar pros velhos habi—
“Foda-se você.” Declarei, cortando a terapia de poltrona dele. “Você podia ter me matado mil vezes já, isso não é só tortura. Você tá procurando algo.” Acusei. O alce ficou em silêncio.
Por um momento.
Eu acho sua arrogância divertida. Com o tempo eu poderia te quebrar na roda, mas por que desperdiçar um rancor tão delicioso? Deixe-me entrar, Abi, deixe-me vagar pelo plano terreno no seu corpo. Poderíamos nos divertir tanto, você e eu. Eu poderia te ensinar truques e irritações além dos seus sonhos mais loucos.
Eu mentiria se dissesse que não tava tentada. Flashes de Abi Mae, rainha feiticeira demoníaca dançaram na minha mente. Eu vestia um vestido de seda esmeralda, cabelo vermelho como o sangue do inferno, explodindo todos que pensavam mal de mim, me entregando a todos os maus hábitos que jurei abandonar anos atrás sem consequências. Teria sido fácil ceder.
Mas isso não era eu, não era o que eu queria. Deus me ajude, eu tava feliz sendo uma aluna C com duas amigas ótimas.
“Não. Eu—desculpa te ofender. Foi burro e imprudente. Mas por favor, só nos deixa ir.” Supliquei pro demônio. O alce ficou em silêncio.
Por um momento.
Senti duas mãos carnudas agarrarem meus ombros, e meu corpo enrijeceu. Elas me seguraram no lugar enquanto o alce se aproximava, contorcendo tamanho e aparência. O pelo marrom virou carvão preto, lábios se abriram revelando fileiras de presas vorazes. Os sons de um cervo bramindo encheram o vazio ao nosso redor, um barulho irritado de uma criatura não acostumada a ouvir não.
O alce revelou sua forma completa, uma coisa divina e bestial, com três conjuntos de cascos doentios balançando acima de mim. A carne foi arrancada ao redor dos olhos flamejantes do alce, cartilagem antiga saindo do focinho perto do nariz esfolado. Duas presas podres saíam da boca, como adagas curvas. A criatura tava coberta de uma aura radiante de pura maldade; eu literalmente sentia o mal saindo dela em ondas. Sensação incrível, tudo considerado. A criatura ergueu sua cara feia, a língua de serpente saindo da boca e se contorcendo. O apêndice tinha mente própria, a ponta úmida esticando e acariciando minha bochecha. Recuei de nojo, meu rosto quente e pegajoso da coisa horrenda.
Meus ombros doíam do aperto de ferro do demônio. Ele me forçou de joelhos, a coisa enorme na minha frente gritando em triunfo. Ele pairava sobre mim como um monólito mutante. Olhei pras bolas de gude girando no crânio branqueado dele, e juro que vi o Inferno. Vi almas atormentadas marcadas e evisceradas, trocadas como moeda entre os monarcas do inferno. Vi bestas gigantes com chifres curvos, asas do tamanho de 747, mandíbulas rangendo todas querendo liberdade. Vi o Furfur, o que eu zoei, sentado num trono de pinheiros malhados. Ele esticou a mão pra mim e começou a puxar a própria fibra do meu ser, se infiltrando enquanto a possessão tomava conta.
Isso não é um pedido, criança.
Eu sentia a criatura tomando conta de cada célula, cada veia, cada átomo de mim. Eu tava virando o alce; Abi acorrentada no fundo da mente. Lutei o melhor que pude, mas tava hipnotizada por aquelas bolas girando; elas pulsavam com poder, uma aura vermelha horrenda brilhando com cada pulso. O alce tava comigo agora, enterrado na minha alma como um carrapato gordo. O ser na minha frente começou a se dissipar numa névoa fina, uma sombra viva enquanto tomava meu corpo. Ele começou a infiltrar cada poro que eu tinha, a névoa fétida me cercando como um cardume. Eu sentia ele se alimentando da minha própria alma.
Pensei que tava ferrada, condenada a vagar pela terra como marionete de um conde do inferno. Então de repente um estrondo trovejante veio. As bolas do demônio saltaram das órbitas, a névoa recuou rápido, se afastando de mim enquanto o quarto ao redor voltava a existir. A Barb tava no espelho quebrando ele em pedaços com a tábua. Pedaços de vidro quebrado choveram em nós, e ela logo partiu a tábua em duas com o joelho.
A conexão foi cortada; a boneca pensou rápido. Senti o que restava da minha essência começar a ferver e murchar. Vi isso afundar de volta pro inferno pra fermentar e apodrecer. O vaso se levantou, contra minha vontade, e ficou de pé com a amiga. Vimos a forma murcha se contorcer e gemer no chão. Os olhos lindos se liquefizeram dentro, e com um grito lamentoso tudo que restava da minha forma corpórea era uma mancha preta no chão delas, o cheiro de enxofre ainda grudado nas tábuas.
Eu tava com dificuldade de me recompor, ainda sentia algo lutando dentro por controle. Controlei esses sentimentos e voltei minha atenção pra Barb. O rosto dela era uma mistura horrível de medo e alívio, os olhos dela me olhando com preocupação. Sorri pra manter as aparências e puxei ela pra um abraço.
“Você conseguiu, Barb! Você mandou esse filho da puta de volta pro inferno.” Exclamei, provavelmente mais alto do que pretendia. Ela aceitou o abraço mas se afastou devagar.
“Você—tá bem? O que ele tava fazendo com você? Eu só vi essa, essa sombra pairando sobre você. Não conseguia tocar em nenhum de vocês, entrei em pânico e comecei a quebrar tudo.” Ela parecia estranhamente envergonhada da solução desajeitada, mas útil.
“Ele queria me possuir, acho, fazer sei lá o quê com meu corpo. Você parou ele bem na hora. Desculpa, foi tudo minha culpa. Você me perdoa?” Falei o mais doce que consegui. Tava exagerando, olhando agora ela com certeza viu através de mim. Mas ela acenou com a cabeça e me abraçou, dizendo algo sobre me pagar de volta limpando essa bagunça. A mulher de cabelo dourado se mexeu na cama, e fomos cuidar dela.
O demônio foi vencido, lição aprendida, todos viveram felizes para sempre e nunca mais foram incomodados por seres de outro mundo.
Agora, obviamente vocês, pessoas finas, não compram essa merda. Eu deixei bem óbvio o que realmente aconteceu, eu ficava pulando pra dentro. Minha culpa mesmo, entreguei o jogo cedo demais. Em minha defesa, fuçar nas memórias dela é uma tarefa horrenda. Quando lembrei da zombaria estridente e idiota dela, bem, acho que fiquei um pouco na defensiva.
Eu venci no momento que toquei naquela tábua, a vontade dela é forte mas a minha é mais. O espírito dela permanece, se debatendo e gritando no fundo do que já foi a mente dela. Talvez eu tenha sorte e a boneca ache que eu realmente sumi. Ela me dá olhares de canto, às vezes pego ela me olhando pelo canto do olho. Talvez eu tenha que lidar com ela.
Por enquanto tudo tá indo nadando. Fiquei um pouco preocupado de ter perdido o pé na alma dela quando o espelho quebrou, mas eu permaneço. Na verdade fiquei mais forte, como um tumor crescendo eu aumento em poder. Olhei pra mim no espelho hoje de manhã, através dos esmeraldas dela vi meus carvões flamejantes. Na testa dela dois chifrinhos pequenos começaram a brotar. A corrupção tá a todo vapor. Logo vou tomar esse mundo por tudo que vale.
Aí vamos ver quem tá rindo.

