“Sexta-feira, último dia de trabalho, primeiro dia do fim de semana, que era pra ser aguardado com ansiedade, finalmente um tempo pra relaxar.
Engraçado, eu costumava sentir isso, eu costumava detestar as segundas-feiras. No domingo eu já começava a ficar pra baixo, sabendo que não ia poder jogar videogame e ficar de boa pelos próximos cinco dias. Eu amava jogar videogame; eles me deixavam escapar da minha vida de merda pelo menos por um momento. A única coisa boa das segundas era que a minha namorada estaria aqui. Ela volta pra cidade natal dela todo fim de semana, me deixando sozinho com os meus pensamentos. Antes, eu lidava com isso de boa, sem drama: dois dias comendo porcaria e jogando, com só uns pensamentos intrusivos de vez em quando.
Mas isso era antes.
Porque, desde que eu comecei a ouvir isso, ouvir essa voz, as coisas começaram a desabar. Meu nome é Paul e eu luto contra TOC.
Eu moro num apartamento em Varsóvia. É meio apertado, admito, mas pra um estudante como eu dá pro gasto. E, pra ser justo, o aluguel era bem baratinho pra um lugar bem no centro da cidade. Eu moro no quarto andar, apartamento 36. Meus vizinhos são meio esquisitos, não muito de conversa; pra ser honesto, acho que nunca troquei uma palavra com eles. Também não os vejo muito. Eles ficam quase sempre trancados dentro de casa; nossas interações se resumem a um “oi” quando nos esbarramos na saída pro mercado.
Como eu sou meio tímido e fico envergonhado de falar com os outros por causa da minha doença, antes eu até gostava disso. Mas hoje em dia eu queria ter alguém, qualquer um, pra conversar, pra me ajudar a sair dessa merda.
Mas vamos voltar pro começo.
Há mais ou menos um mês, eu comecei a perceber uma coisa estranha. Sabe, TOC já é uma merda danada de lidar: ficar checando a casa toda, ver se não tem nada escondido no escuro, se desliguei o fogão, ficar preocupado em morrer por qualquer coisinha que eu logo imagino ser uma doença ou lesão fatal. Mas isso não era o papo chato de sempre, aquele que eu já tinha me acostumado — se é que dá pra chamar de “acostumar” fumar um maço de cigarro por dia só pra tirar da cabeça.
No começo, eram barulhos estranhos à noite, que pareciam vir de dentro da minha cabeça. Não dei muita bola; quer dizer, meus remédios às vezes causam alucinações hipnagógicas. Mas não parou por aí, puta que pariu, não parou nem fudendo. A primeira vez que ouvi aqueles barulhos (só consigo descrever como um rosnado baixo, tipo um cachorro que fareja um estranho e quer assustar pra longe) deve ter sido no dia 11 de março. Lembro que me senti exausto no trabalho no dia seguinte, porque o barulho me acordava toda vez que eu começava a cair no sono.
Desde então, os barulhos foram ficando cada vez mais altos, toda noite.
Nos dias seguintes, as coisas ficaram relativamente normais, tirando o rosnado.
Mas aí, no dia 15, mudou tudo: eu ouvi ela chamar meu nome pela primeira vez. Parecia a minha própria voz, mas distorcida, estranha pra caralho. Minha voz soava como se eu nunca tivesse ouvido antes.
“Paul, você checou o fogão?”
Essas foram as palavras que ecoaram na minha cabeça. Eu já tinha pensamentos intrusivos sobre o fogão, então não era tão fora do comum. Se não fosse pelo fato de que não era só um pensamento — era uma pergunta. Uma porra de uma pergunta. Não era eu me perguntando se tinha checado, não; eu nunca falo comigo mesmo em terceira pessoa.
Na semana passada, fui pro trabalho pela última vez. Minha chefe disse que não podia mais me deixar perto dos clientes, que ia fazer mal pro negócio. Eu entendo; eu ia pedir pra sair mesmo. Não confio mais em mim perto de gente.
Há duas semanas, minha namorada terminou comigo; acho que não aguentou mais esses rituais que eu faço. Fiquei aliviado que ela não desceu pro porão antes de ir embora. Tenho certeza que teria chamado a polícia se soubesse.
“O monstro vai te pegar se você não sacrificar o gato do vizinho pra ele.”
Porra, que idiotice, né? Fazer coisas que você sabe que são inúteis e beiram a loucura, mas ainda assim precisar fazer só pra coçar aquela coceira irritante dentro da cabeça. Eu odeio TOC, odeio pra caralho.
Mas, bom, o que eu posso dizer? Não controlo nada, talvez meus remédios estejam fracos demais agora. Talvez eu precise aumentar a dose.
Uma semana depois que comecei a ouvir ela falar comigo, senti necessidade de fazer rituais novos, que nunca tinha feito antes. Pintar símbolos nas paredes com sangue (nem sempre o meu), pra afastar espíritos malignos. Repetir as palavras “Te invito Zabulus” mesmo sem saber o que significam. E muito, muito mais.
Ela disse que eu não precisava de remédio mais forte, mas de um padre. Achei que era só cansaço das minhas palhaçadas, mas agora não tenho mais certeza.
Quer dizer, eu sei que TOC anda de mãos dadas com síndrome do impostor e que eu posso estar achando que isso não é TOC e sim outra coisa, mesmo sendo só a doença, mas... tudo parece real demais.
Acho que a gente devia voltar pro presente.
Eu não consigo mais controlar meu corpo; minhas mãos fazem o que querem, minhas pernas andam quando eu não quero. Me sinto um espectador passivo da minha própria vida, só assistindo as coisas acontecerem. Ainda tenho um restinho de controle; não é constante. Vem em ondas: posso estar normal e, de repente, começar a enforcar um cliente aleatório.
Por isso não saio mais de casa. Só saio quando é estritamente necessário; peço delivery quando dá e, o resto do tempo, simplesmente não como.
Meus pais ajudam o quanto podem; mandam dinheiro pra compras. Meu senhorio disse que vai me dar um tempinho pra me reerguer antes de cobrar aluguel.
Mas eu acho que não consigo. A voz não cala a boca. Eu ouço o tempo todo; ela fala comigo, me diz coisas horríveis, coisas que eu nem imaginaria. Fico feliz que minha namorada tenha ido embora quando foi, antes de piorar, senão acho que ela não estaria viva hoje.
Vou tentar buscar ajuda; talvez ainda dê pra voltar a ser eu mesmo.
Terça-feira, 4 de dezembro de 2025.
Não consegui fazer nada, absolutamente nada. Sou prisioneiro da minha própria mente. Essa é a primeira vez em séculos que consigo estar no banco do motorista. No que minha vida virou? Deus, por favor, acaba com isso, se é que você tá aí.
Quarta-feira, 25.
Não aguento mais. Foi longe demais. Ela disse pro meu pai que eu sempre odiei as entranhas dele, que queria que ele morresse pra eu pelo menos herdar alguma coisa. Meus pais cortaram todos os laços comigo. Não tenho mais dinheiro, não tenho mais apoio. Esse pode ser o fim da linha pra mim.
Ela me contou o nome dela: Waoavuvz. Quer que eu sinta como é perder tudo. Se alimenta da minha dor. Disse que adora me ver lutando pra quebrar as correntes, pra impedir ela. Que sou divertido demais de brincar porque eu era tão cego à existência dela, tentando explicar tudo só como minha doença piorando. Não me resta nada; ela levou tudo. Ontem quase matei minha vizinha; ela só estava no lugar errado na hora errada. Ainda não sei como não fui preso. Minha casa é uma zona: cheiro de podre, mofo, lixo, ratos mortos. Me dá ânsia; se eu pudesse vomitar, vomitaria, mas não consigo — perdi o reflexo de vômito depois da quinta vez que comi ensopado de barata. Meus braços estão cobertos de cicatrizes, runas cortadas no corpo. Pareço uma bruxa de filme de terror.
Quero morrer, quero simplesmente deixar tudo isso pra trás. Detesto acordar, não porque estou seguro nos meus sonhos — não estou, ela me segue pra todo lugar. Odeio acordar porque sinto as garras dela cravadas nos meus ombros, na minha alma, me forçando a fazer coisas contra a minha vontade, me forçando a machucar pessoas.
1º de janeiro de 2026.
Silêncio. Silêncio ensurdecedor. A presença que era tão avassaladora sumiu, não tem mais sinal. Mas, junto com ela, também sumiu o único motivo de eu ainda estar vivo: a falta de oportunidade. Não me resta nada: amigos, família, dinheiro, emprego. Fui expulso da faculdade. Meu senhorio disse que tenho três dias pra desocupar ou vai chamar a polícia. Minha ex se casou; acho que superou bem rápido, sem surpresa — eu também ia querer esquecer alguém como eu o mais rápido possível se estivesse no lugar dela. Meu irmão se formou e eu não fui convidado pra festa de formatura. Pelo visto, meus pais não querem mais nada comigo.
Vou acabar com isso amanhã. Desculpa por te deixar ciente dele. Você não tá seguro; ele não vai se contentar comigo, vai vir atrás de você em seguida. Fique seguro e não ceda às exigências dele; essas compulsões são o motivo de ele ter conseguido tomar controle.
Adeus e, pros meus amigos e família, por favor, não me esqueçam — o eu que vocês conheciam, o eu de antes. Amo vocês. Paul.”
Oi, eu sou o Matt. Essas foram as últimas páginas do diário do meu irmão; encontrei no apartamento dele depois do enterro. Preciso da sua ajuda: ontem à noite comecei a ouvir barulhos.


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