Um hábito que aprendi quando era criança: prender a respiração se eu estivesse num carro que estivesse passando por um cemitério. Não lembro quem me contou, mas lembro que era algo que eu e meus amigos seguíamos religiosamente na infância, não importava quem estivesse dirigindo ou pra onde a gente ia. E se as janelas do carro estivessem abertas, era pânico geral pra enrolar todas pra cima antes que as rodas chegassem na entrada do cemitério. Naquela época eram as janelas de manivela manual. Aquelas que exigiam toda a força de criança magricela que eu tinha pra fechar. Mas nesses momentos elas sempre conseguiam fechar na hora H.
Não sei se algum de nós sabia por que a gente fazia isso. Eu com certeza não sabia.
Mesmo assim, é um hábito que mantenho até hoje, mesmo com o meu trigésimo aniversário batendo na porta. Não é que eu tivesse grandes planos pro meu aniversário, mas teria sido legal poder comemorar.
Lembro de tomar a decisão concreta quando tirei minha carteira de motorista: eu ia continuar jogando o jogo nem que fosse só por mim mesmo. Às vezes o hábito parece bobo de admitir, mas minha mentalidade sempre foi “melhor prevenir do que remediar”. Se tem mais gente no carro, eu sou discreto. Bem menos fanfarra do que quando eu era criança. Só uma inalada grande enquanto os pneus continuam deslizando na estrada. Eu subo as janelas casualmente, como se não fosse nada demais. Talvez como se eu tivesse visto um inseto que não queria que entrasse no carro.
Mas nem sempre dá pra prender a respiração a tempo, né. Eu nem sempre vejo o cemitério até estar bem no meio dele. Paro de respirar na hora que percebo por onde tô passando, mas aí já parece tarde demais. Até dois dias atrás, eu não sabia as consequências. Agora sei.
Foi porque me mudei pra uma cidade nova que tudo isso aconteceu. Eu não sabia que as estradas secundárias que levavam à loja de artesanato tinham tantos cemitérios. Era da minha natureza simplesmente evitar esse tipo de estrada, pegar a rodovia mesmo se tivesse mais trânsito.
Eu tava sozinho indo buscar material pra um dos meus muitos projetos de artesanato. Eu devia ter dado meia-volta quando vi que a estrada em que eu ia ficar por sete quilômetros não tinha nada além de curvas, espaço aberto e grama. Não tinha ninguém no carro pra questionar minhas ações. Eu devia ter sacado que, descendo aquela estrada sinuosa, ia ter vários cemitérios. Mas me disse pra não ser ridículo. Um jogo de criança não devia me impedir de pegar o caminho mais rápido pra algum lugar.
Meu outro erro foi deixar as janelas abertas. Nesse ponto já era um ato de desafio. Eu sabia que ia ter cemitérios, mas me recusei a reconhecer antes que eles aparecessem. Claro que hoje em dia as janelas sobem bem mais rápido com botão elétrico, mas aparentemente não rápido o suficiente.
Eu nem percebi que algo estava errado até o dia seguinte. Acordei grogue, esfregando o sono dos olhos enquanto cambaleava pelo corredor até o banheiro. Meus olhos estavam saltados e injetados, como se algo tivesse pressionado por dentro do meu crânio, tentando sair pelos olhos. Um filete fino de sangue seco de algum momento da noite tinha grudado no meu pescoço. Segui a trilha de volta até a orelha direita, como se algo tivesse tentado forçar saída por ali. Meu nariz estava inchado, e a pele do meu rosto queimava ao toque, como se estivesse lutando contra algum tipo de infecção.
Mas antes de ir mais longe, preciso voltar ao ponto central. O evento em si. Então, como eu disse, eu tava dirigindo numa estrada desconhecida com aquela coceira familiar subindo pelas costas, aquela que me dizia que ia ter um cemitério em cada curva. O motivo de eu não ter visto logo de cara foi porque meu celular me distraiu. E antes que você torça o nariz pra mim, eu sei que não devia olhar pro celular dirigindo, mas eu tava esperando uma atualização importante do trabalho. O irônico é que nem era a atualização que eu esperava.
Era minha irmã em crise. Ela vive em crise, mas normalmente as crises dela não me afetam tanto assim. Normalmente não se transferem como uma maldição esperando engravidar a próxima pessoa. Cliquei na mensagem e vi uma parede de texto azul com um monte de pontos de exclamação e carinhas bravas. Foi por isso que não percebi que meu carrinho vermelho tinha cruzado o plano. Eu nem tava lendo a mensagem. Fechei o app de mensagens verdes quase na hora. Só queria ter certeza de que não era algo grave, algo que realmente precisasse ser resolvido naquele momento.
É difícil descrever pra vocês o surto de medo que desceu pela minha espinha quando voltei a olhar pra estrada. Claro, parei de respirar na hora. Sim, apertei os quatro botões das janelas assim que meus dedos soltaram o volante. Acabou em meros segundos. Num momento eu tava no meio de passar por um cemitério e no seguinte o momento passou.
O sol entrava queimando no carro e começou a cozinhar tudo lá dentro agora que não tinha como escapar. Mesmo com o momento passado, eu não queria baixar as janelas de novo, como se eu pudesse ganhar favor dos fantasmas se continuasse seguindo as regras. Mas óbvio que eu tinha que respirar em algum momento e soltar o ar logo depois.
Continuei respirando e cozinhando dentro do carro, o ar-condicionado temporariamente quebrado. Eu tinha todas as ferramentas pra trocar o motor do ventilador, a peça que tinha pifado na semana passada, mas como era um dia bonito achei que podia esperar. Então essa era a razão do suor escorrendo pelas costas, pura preguiça.
Mas eu sabia que não podia ser descuidado e baixar as janelas de novo. Fiz a curva devagar e me deparei com outro cemitério. Esse eu consegui me preparar; dava pra ver um pouco adiante. Consegui dar aquela inalada profunda que precisava antes de passar por ele. Nem me importei de estar assando como frango de padaria porque eu tava seguro. As janelas fechadas e a falta de respiração me mantinham seguro.
Você acharia que eu tô mentindo se eu dissesse que encontrei outro cemitério a uns dois quilômetros e meio na mesma estrada? Juro que foi o último, mas eu não inspirei ar fresco, sem circular, até estacionar e escancarar a porta quinze minutos depois. Aquelas respiradas foram algumas das mais gostosas que já dei; o ar outonal bateu nas minhas narinas de um jeito tão fresco, tão limpo. Talvez esse tenha sido meu erro — fui ganancioso demais com o ar do outono.
A mensagem que arruinou minha vida? Sei que alguns de vocês devem estar curiosos. Era porque o namorado atual dela, o cara com quem ela tinha saído duas vezes, não gostava de gatos. Dá pra chamar alguém de namorado depois de dois encontros? Ela morava sozinha com dois gatos, Canela e Açúcar, então claramente esse relacionamento nunca ia dar certo. Ela tava indignada que alguém pudesse odiar gatos, especialmente o cara dos sonhos dela. Bom, acho que ele não era mais o cara dos sonhos.
Quando paguei na loja de artesanato, eu já tinha quase esquecido da aventura no caminho até lá. Como eu disse, não percebi as consequências. Até ontem de manhã era só um joguinho bobo de criança. E sim, respondi a mensagem da minha irmã com todas as platitudes certas tipo “como ele ousa” e “você merece coisa melhor”. Quando penso nisso agora, eu peguei um caminho diferente pra voltar, se foi consciente ou subconsciente, aí é discussão. Não tinha cemitério nenhum no caminho de volta, pelo menos nenhum que eu tenha visto.
Isso foi há dois dias, quase quarenta e oito horas exatas. A maior parte do meu cabelo caiu. Tô digitando com um dedo só, o único que ainda tem unha. Pelo menos é o indicador. Pequenos milagres e tal. O resto caiu ontem à noite. Encontrei eles grudados no lençol. Unhas dos pés também. Sumiram.
Tentei ditado por voz no computador, só pra descobrir que não tenho mais voz. Só saía um som de engasgo estrangulado. Acho que faz sentido. Quando olhei no espelho, meu peito tava afundado — o pescoço enrugado, todas as dobras da traqueia e do esôfago visíveis sob a camada fina de pele.
Tô começando a deixar manchas de sangue no teclado. Acho que essa unha não vai durar muito mais. Acho que devia ir logo ao ponto. Acho que já passou do ponto de pedir ajuda. Então isso virou um daqueles posts de alerta. Sabe, aqueles que te mandam tomar cuidado, sempre olhar atrás da esquina, acender a luz antes de dormir — nesse caso, sempre checar se tem cemitério. Nunca tirar os olhos da estrada.
Tem tanta pergunta que vai ficar sem resposta. E o ar-condicionado ou o aquecedor? Os fantasmas entram se você ligar isso? Foi a janela aberta ou as janelas nem importam? É todo cemitério? Todo fantasma? Tem que estar dirigindo? Não tenho tempo pra responder nenhuma dessas. Já tô infectado, possuído, assombrado, ou seja lá o que for isso.
Vocês podem testar todas essas teorias se quiserem. Não sei se recomendo. Outro dente caiu da minha boca agora há pouco. Acho que só tenho dois sobrando. Tá difícil manter a mandíbula fechada; tô tentando impedir que o sangue escorra. Não tá funcionando. O teclado tá escorregadio agora.
Minhas respirações estão mais rasas. É como se eu não conseguisse recuperar o fôlego. Meio irônico, como se os fantasmas ainda estivessem roubando o ar dos meus pulmões. Como se eu ainda estivesse passando de carro por aquele cemitério.
Acho que só tenho mais alguns momentos. O suficiente pra postar isso. Fico imaginando o que minha família vai pensar quando eu não atender as ligações. Fico imaginando quanto tempo vai levar pra eles encontrarem meu corpo. Fico imaginando se vou ter um corpo pra deixar pra trás.


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