Mas, durante as férias de inverno do semestre, eu me remexia inquieto na cama, os olhos saltando pros números brilhantes do meu relógio: 3h07 da manhã… Eu preferia mil vezes ter ficado acordado até as 3h do que acordar às 3h. Só fiquei lá deitado, torcendo pra que o sono voltasse a me invadir os ossos. Nunca voltou. As paredes pareciam prender a respiração, ouvindo os sussurros suaves que vinham do outro quarto. Elijah. Virei pro lado, enfiei a cabeça no travesseiro tentando abafar o silêncio ensurdecedor da noite misturado com aquelas canções de coral esquisitas que ele cantarolava. Normalmente ele recitava versículos da Bíblia ou orações aleatórias, mas as músicas cantaroladas eram raras e sempre me deixavam arrepiado.
A ansiedade cravou as garras tão fundo no meu estômago naquela noite que achei que ia vomitar. O desconforto pairava no ar. Toda noite, aquele psicopata do caralho voltava de sei lá onde, arrastando terra e murmurando orações crípticas. Já tava mais irritante do que qualquer outra coisa. Fazia semanas que eu não pregava o olho direito por causa daquele sussurro filho da puta.
Porra, nem sei como me meti nessa merda. Claro, sou um estudante universitário quebrado e precisava desesperadamente de um teto… Mendigo não escolhe, né?
Ultimamente, ele tem trazido objetos manchados de lama – penas tingidas, cruzes de madeira grosseiras e páginas rasgadas e úmidas da Bíblia – que parecem se multiplicar toda vez que eu olho pra coleção. O nascer do sol não trazia respostas, só mais perguntas. Nunca perguntei nada. Tem gente que tem hobbies esquisitos e não é como se ele estivesse machucando alguém.
Continuei resistindo à vontade de confrontar o Elijah. Tinha medo do que poderia desabar se eu abrisse a boca. O pensamento ficava ali: o que ele tá fazendo de verdade com aquelas coisas?
Mas a curiosidade cravou as garras compridas nas dobras mais profundas do meu cérebro. A falta de respostas pras perguntas que eu nem fazia virou insuportável e acabou me consumindo.
Numa noite, decidi ficar acordado, de ouvido colado pro barulhinho característico dos pés arrastando. Devagar, e com o cu na mão, rastejei até a porta do meu quarto, que separava meu canto do resto da casa. O coração disparou quando entreabri a porta e espiei pro quarto mal iluminado, sombras dançando com a luz de uma única vela tremeluzente. Meu colega de quarto, Elijah, estava ajoelhado no meio da coleção bizarra, murmurando versículos com uma intensidade frenética. Os olhos arregalados de um fervor que me congelou no lugar.
Limpei a garganta de leve, o suficiente pra quebrar o encanto sem assustar. Minha curiosidade rompendo as amarras do desconforto.
“O que você tá fazendo?” perguntei, voz baixa no silêncio opressivo.
Elijah encarou meus olhos, uma calma sobrenatural no olhar, seguida de uma pausa desconfortavelmente longa.
“Construindo uma ponte entre o céu e a terra”, respondeu como se isso explicasse tudo.
Hesitante, saí do quarto, cruzando o limiar pro santuário de segredos. “Por que os objetos estranhos…?” insisti, olhando pra eles com uma mistura de fascínio e pavor.
Elijah inclinou a cabeça, como se tentasse enxergar uma verdade que eu não via. “Ferramentas”, entoou, “pra guiar os perdidos e prender os caídos.”
O ar ficou mais pesado, carregado de algo intangível que parecia vibrar entre a gente. Hesitei de novo, inquieto mas intrigado com a resposta críptica. “…e quem você tá guiando? Quem você prende?” sussurrei, precisando entender. Morrendo de vontade de entender um pouco dos comportamentos bizarros do meu colega de quarto. Maldita essa minha necessidade de saber tudo, por que eu tenho que ser tão enxerido?
O sorriso do Elijah era enigmático, insondável. “Aqueles que vagam nas trevas”, foi tudo o que deu, os dedos deslizando por uma das cruzes de madeira.
Estremeci sem querer, as palavras mandando um calafrio descer pela espinha. “Que trevas?” insisti, feito idiota, impulsionado por uma mistura de terror e curiosidade mórbida.
Os olhos do Elijah brilhavam de intensidade. “Eles estão ao nosso redor. Invisíveis, mas perto”, sussurrou, a voz tanto um cântico quanto um aviso.
Vacilei, atordoado com a realidade e a loucura se sobrepondo. Queria correr, mas meus pés continuaram plantados, como se tivessem criado raízes no assoalho de madeira. “Você pelo menos… tá nos protegendo?” arrisquei, olhando pros itens sinistros espalhados sob a nova luz.
Elijah assentiu, fechando os olhos como em transe. “De jeitos que você nem imagina”, garantiu. Por algum motivo, aquilo soou qualquer coisa menos tranquilizador.
Algo mudou no ar, frio e ofegante, sussurrando segredos sombrios demais pra compartilhar. Meu olhar foi atraído pra uma boneca manchada de lama no meio daquele monte macabro. Os olhos dela reluziam sob a luz da vela, parecendo vivos. Tremendo, dei um passo em direção à boneca pra ver melhor, o quarto pulsando com uma energia invisível, uma força tão antiga quanto maligna. De repente, uma sombra disparou pela parede, sem pertencer a nenhum de nós.
Recuei de supetão, o coração martelando contra as costelas como um pássaro preso. A sombra se contorcia de forma antinatural, inchando e comprimindo como se testasse os limites deste mundo.
“Você tá vendo agora?” A voz do Elijah vagou num zumbido grave, ressonante e solene.
Assenti, a garganta seca. Eu via e queria não ter visto. Fala sério, cético virando crente na marra.
O ambiente estalou com eletricidade, denso com a presença de algo invisível mas inegavelmente poderoso.
“O que eles querem?” consegui perguntar, quase inaudível, sentindo os pelos da nuca se eriçarem.
Os olhos do Elijah continuavam fechados, as mãos unidas em súplica fervorosa. “Buscam o que todos os andarilhos desejam: salvação”, murmurou, as palavras pingando uma devoção perturbadora.
Engoli em seco, o peso da revelação me esmagando. Agora eu entendia, pelo menos um pedaço do quadro torto pintado pelos rituais bizarros e falas crípticas do meu colega de quarto. Mas que preço essa salvação ia cobrar, e quem, de fato, estava sendo salvo?
De repente, Elijah falou, arrancando-me dos pensamentos: “A porta tem que se abrir”, confessou, a voz como correntes de seda, prendendo mas suave. O desespero arranhou minhas entranhas, uma avalanche de pavor soterrando cada pensamento. Achei que ia botar o jantar pra fora.
“Não dá pra impedir?” implorei, procurando nos olhos fervorosos do meu colega de quarto um pingo de humanidade, um lampejo de redenção. Mas só vi devoção desconectada de qualquer noção moral.
Elijah balançou a cabeça, uma tristeza resignada piscando rápido antes de sumir. “Não cabe a nós parar”, respondeu, cada palavra um sino pesado. Lá fora, o vento uivava, ecoando o tumulto dentro da minha cabeça. Me sentia preso, um rato numa maquinação divina distorcida, além do meu controle ou compreensão.
“O que acontece quando a porta abrir?” sussurrei, temendo a resposta mas incapaz de fugir daquela dança macabra.
“Eles vêm”, Elijah respondeu, olhos distantes, vendo horrores que deviam ficar invisíveis.


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