sexta-feira, 7 de novembro de 2025

Era uma vez por ano...

Sinceramente, nem sei direito por que tô escrevendo isso, nem pra quem. Talvez só pra avisar o pessoal. Do quê, eu nem sei. Ou quem sabe pra tentar achar alguém que tenha passado por coisa parecida.

Eu cresci numa cidadezinha minúscula. Nem sei se dá pra chamar de cidade, na real; era mais uma vila, um lugarejo. Daqueles que parecem presos nos anos 50, onde todo mundo se conhece e tem mais igreja do que casa. Parece charmoso, né? Mas quem mora num lugar desses sabe que, na melhor das hipóteses, é um tédio do caralho, e na pior, uma tortura.

Tinha só uma escola, pra todas as crianças nascidas ali, desde que saíam das fraldas até se formarem e, se dessem sorte, darem o fora daquele fim de mundo. No máximo, uns 30 alunos no colégio inteiro, e mesmo nessa comunidade tão unida, eu era o excluído.

Não que eu ligasse, na verdade. Também não curtia aquelas crianças. Meu único amigo de verdade era a vizinha do lado, a Molly. Nossos pais eram bem próximos, e a gente jantava junto com frequência, o que acho que explica por que ficamos tão grudados.

Mas não é por isso que você tá lendo. Duvido que você queira saber de um menininho magrelo, solitário e sem amigos numa vila chata pra cacete.

Minha casa não era chata, na verdade. A gente tinha uns rituais esquisitos. Parte disso você podia culpar pela cultura do Cinturão da Bíblia: se você faltasse à missa de domingo, era praticamente excomungado; as esposas ficavam em casa cozinhando enquanto os maridos iam trabalhar na mina ali perto; se você não tivesse pelo menos três Bíblias transcritas à mão pela nossa igreja, nem podia entrar no culto, essas coisas. Mas tinha outra parada que eu achava estranha pra caralho.

O festival acontecia uma vez por ano. Se você tá se perguntando o que era o festival, a gente também se perguntava. Ninguém sabia o que era, nem por que a gente fazia. Puta merda, ninguém nem sabia o que acontecia se a gente não fizesse. Um dos nossos muitos pastores, o Padre Sinclair, geralmente comandava tudo.

De fora, parecia um festival de igreja normal. Durante o dia, era mais ou menos isso. Uma oração em grupo, os pais na churrasqueira fazendo salsicha ou hambúrguer, as crianças correndo e jogando bola enquanto as mães traziam biscoitos e fofocavam. Talvez até uma musiquinha se o Padre Sinclair tivesse arrecadado grana suficiente.

Mas à noite, as coisas mudavam. Todo mundo tinha que entrar em casa, menos o Padre Sinclair e uns voluntários da escola. Depois que eles garantiam que todo mundo tava mesmo dentro de casa, eles faziam “aquilo”. Crianças curiosas que queriam saber o que rolava podiam colar o ouvido na janela do quarto, mas não ouviam nada além de silêncio. Bom, até as 3:33 da manhã. Todo ano, sem falhar, às 3:33, vinha um som estridente, seguido de um cântico sobrenatural, e depois silêncio de novo. Eu sei disso porque era uma dessas crianças curiosas. Eu e a Molly, os dois.

A história que eu tô contando aconteceu no nosso décimo segundo festival. Nessa época, já fazia uns anos que a Molly e eu teorizávamos sobre o que era aquele festival. Faltava mais ou menos uma semana pro próximo, e nesse ano a gente tava decidido a descobrir o que era. Talvez a gente pudesse dar um jeito de sair escondido na parte noturna do festival? Bom, isso era só daqui a uma semana. Decidimos fuçar o escritório do Padre Sinclair, pra tentar achar algum podre dele.

Depois do culto de domingo de sempre, a Molly e eu aproveitamos que todo mundo tava distraído com a venda de bolos pra invadir o andar de cima da igreja. Não sei se a gente tava fazendo isso por curiosidade de verdade ou se era só pela adrenalina de fazer algo proibido, mas de qualquer jeito, eu lembro que meu coração tava na boca enquanto a gente se esgueirava pro escritório do padre.

“Sem tranca”, a Molly sussurrou, enquanto a gente segurava o riso. “Sabe, se ele é tão paranoico com o escritório, devia fazer um trabalho melhor pra manter o povo do lado de fora.” Os dois prenderam a respiração enquanto abriam a porta devagar, tomando cuidado com qualquer rangido.

Foi meio decepcionante. Talvez a gente esperasse algo tipo a caverna do Satanás, com tapeçarias de demônios e câmaras de tortura, mas parecia só um escritório normal.

Eu revirei todas as gavetas da mesa enquanto a Molly fuçava o armário de arquivos. Nada. Já távamos quase desistindo quando eu tropecei no tapete. Uma parte virou, e aí a gente viu.

Bem no meio do chão, tinha um símbolo esquisito. Parecia uma estrela. Nenhum de nós reconhecia.

“…tá, talvez seja só um desenho. Talvez ele seja um artista secreto”, a Molly disse, tentando me fazer rir, já que eu devia tá com cara de quem viu fantasma.

Eu, ainda o menininho religioso que fui criado pra ser, agarrei uma Bíblia que achei na mesa do Padre Sinclair. Sem pensar, comecei a folhear as páginas.

“Ei, Molly?”, eu disse. “Essas páginas são estranhas.”

Ela pegou a Bíblia das minhas mãos, franzindo a testa. “Não reconheço nenhum desses versículos. Eu li a Bíblia tipo um milhão de vezes. Isso não tá certo.”

“Oi, crianças.” A gente ouviu, e os dois deram um pulo pra trás. Era o Padre Sinclair.

“Ora, ora, se não são a pequena Molly e o Robert. Que curiosos. Bom, não tão pequenos assim. Devem ter uns doze anos agora, né?”, ele disse, andando na nossa direção de um jeito ameaçador.

“S-sim, padre”, a Molly disse enquanto eu tremia que nem vara verde, sem conseguir falar nada. “Desculpa a gente ter invadido seu escritório.”

“Bobagem! Não tem nada de errado com um pouco de curiosidade”, o padre disse, pisando no símbolo que a gente tinha acabado de descobrir. Ele nos olhou com um olhar afiado, de quem sabe das coisas. “Eu podia usar umas crianças curiosas como vocês no festival da semana que vem. Que tal, crianças? Querem ser meus voluntários?”

Eu comecei a balançar a cabeça dizendo não, mas ele pôs uma mão gelada no meu ombro. Um gesto que eu conhecia, ele fazia com todo mundo na cidade como se fosse um conforto, mas agora era completamente diferente. Ele apertou com força, o suficiente pra deixar um hematoma. “Robert, você e eu sabemos que você não tem muita escolha aqui”, ele disse, piscando.

“Não é nada pra se preocupar, de verdade”, ele disse, nos empurrando pra fora do escritório. “Agora vão pra casa. Abracem suas mães.”

Naquela noite, a Molly e eu ficamos no quarto dela, sem falar nada. A gente tava abalado demais. Em silêncio, ela pegou uma das cinco Bíblias da família dela, as que o Padre Sinclair tinha dado pra gente. Aí ela fuçou a mochila que levou pra igreja naquele dia. Tirou a Bíblia que a gente achou no escritório.

“Molly! Você pegou isso? Ele vai matar a gente!”, eu avisei.

“Acho que ele ia fazer isso de qualquer jeito”, ela disse, seca, enquanto abria as duas Bíblias lado a lado.

Eu vi ela ficando cada vez mais confusa. “Não faz sentido, Rob”, ela disse, virando as páginas dos dois livros. “Esses livros dizem o oposto um do outro. Não sei em qual acreditar.”

“Olha, esse versículo não tá na nossa Bíblia. O que diz?”

Eu apontei pra um, e a Molly começou a ler em voz alta. “Estejam alertas e de sobriedade. O inimigo de vocês, o diabo, prowla como leão rugindo, à procura de alguém para devorar.”

Todo ano, sem falhar, às 3:33, vinha um som estridente,

Os voluntários da escola.

“Molly?”, eu disse, hesitante. “O que acontece com os voluntários todo ano?”

“Bom, normalmente eles se mudam. Vão pra faculdade ou algo assim”, ela disse, mas não parecia convencida.

“Molly?”, eu disse de novo, hesitante. “A gente tá orando pro Deus errado?”

No fim, o festival chegou, e a Molly e eu, como deveríamos estar, passamos a semana inteira apavorados. Quando o dia chegou, e depois a noite, a gente tentou dar no pé. Mas não tinha como passar pelo Padre Sinclair.

“Vocês dois, bravos voluntários, vão ficar aqui”, ele disse, agarrando a gente com força pelos braços.

A gente sentou sob o luar num silêncio ensurdecedor.

“Não precisa mais mentir pra gente, Sinclair”, a Molly disse, quebrando o silêncio. “A gente sabe o que você tá fazendo.”

O Padre Sinclair virou de repente. Deu um tapa na cara dos dois enquanto eu gritava de dor.

Ele deu um sorrisinho. “Vocês sabem por que vivem vidas tão abençoadas? Por que todos nós vivemos vidas tão abençoadas? Eu faço isso por nós, de verdade. Por todos nós. E logo, vocês vão ter feito isso por todos nós também. Deveriam estar orgulhosos.” Ele disse enquanto desenhava aquela estrela esquisita no chão com um graveto. A gente viu ele acender velas e falar palavras estranhas.

De repente, um grito estridente fez a Molly e eu nos abaixarmos e taparmos os ouvidos.

Acho que eram 3:33.

Quando ajudei a Molly a se levantar, eu vi.

Ele se erguia acima de nós, desafiando a altura das árvores. Uma figura alta, escura, com chifres e tudo. Olhou pra gente de cima.

O Padre Sinclair se curvou. “Seus súditos, senhor.” Ele nos empurrou na direção dele enquanto a gente tentava correr.

Ele se abaixou. “Você quebrou as regras, Sinclair. Achei que eu tinha deixado as coisas bem claras.”

Num instante, o Padre Sinclair largou a pose de sempre e eu vi o medo tomar conta dos olhos dele. “Q-que regra? Eu não quebrei regra nenhuma. Seus súditos, como prometido.”

“Minhas condições”, ele trovejou, “pela vida que vocês levam, pelos bens que eu concedo, vocês nunca mais devem ferir uma alma. As almas feridas eram pra ser guardadas pra mim.”

Ele tocou em mim com uma garra enorme que queimava. “Isso é um hematoma que eu vejo?” Ele virou pra Molly, e a marca vermelha no rosto dela. “Inacreditável.”

“Mas senhor!”, o Padre Sinclair implorou, de joelhos. “E o bem da minha vila? Todas essas pessoas, orando só por você. Por minha causa. Não podemos fazer outro acordo?”

Ele pensou um pouco. “Muito bem. Posso permitir mais um ano de prosperidade pra essa vila. Mas vou precisar de outro sacrifício.”

O Padre Sinclair nos empurrou pra frente de novo.

Ele balançou a cabeça. “Não eles. É você que eu quero.”

E com isso, a gente viu ele agarrar o Padre Sinclair com uma garra imensa e jogá-lo no chão como se fosse uma boneca, enquanto ele era consumido pelas chamas abaixo. Ainda ouço os gritos dele até hoje.

A Molly e eu ficamos em choque até aquela criatura gigantesca virar a atenção pra gente.

“E vocês dois”, ele disse, se abaixando até nosso nível. “Vão. Saiam desses terrenos e não voltem. Vocês precisam dar o fora daqui.”

Confusos, mas sem querer desobedecer aquela coisa, a gente começou a ir embora.

Eu virei pra trás. “Te vejo em breve?”

Ele deu um sorrisinho. “Com certeza.”

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