terça-feira, 4 de novembro de 2025

Os dias que virão

Meu avô sempre foi louco por bibelôs e bugigangas ultrapassadas – pelo menos era o que pareciam pra mim. Pra ele, eram pequenas janelas pra um passado que a maioria da minha geração já esqueceu de vez.

Nos fins de semana esporádicos em que meus pais me largavam na casa dele, ele me arrastava pra todo tipo de feiras de porta-malas, lojas de antiguidade e brechós.

Na minha infância eu detestava aquilo, mas com o tempo, quando as lembranças dessas saídas foram se apagando, virou o único jeito de me reconectar com a memória dele.

Embora eu tenha carinho pelos objetos que chamariam a atenção dele – brinquedos antigos e tal –, minha busca sempre foi por livros.

No começo usava eles só pra passar o tempo; logo viraram o alvo da minha vasculhada obsessiva, despertando aquela vontade louca de escrever os meus próprios.

Ele sempre dizia que aquelas peças quebradas, gastas e completamente desamadas tinham, sem dúvida, testemunhado décadas da vida dos donos. Com um pouco de graxa de cotovelo, como ele falava, podiam ser revitalizadas e voltar a ser úteis.

Eu curtia pra caralho essa ideia, embora os romances falassem comigo num nível diferente. Janelas pra mente de autores lembrados só pelo nome.

Me dava uma satisfação do caralho poder ser transportado pro mundo que eles rabiscavam, vendo tudo pelos olhos deles.

Naquela manhã de domingo cedinho, eu já tinha fisgado dois romances, louco pra voltar pra casa e me afogar no brilho do verão enquanto devorava aquelas páginas empoeiradas. Mas algo lá dentro – talvez as palavras do vovô – me empurrou a pelo menos dar a volta completa, vai que.

Chegando no fim da fileira, meus olhos bateram num carrinho de metal de corda, pequeno e surrado. Parecia bem com aqueles que tenho no escritório, porque nunca tive coragem de jogar fora nada do que ele me deixou.

Peguei na mão, aliviado por acalmar aquela sensação, quando outro item praticamente pulou na minha cara.

Deitado ao lado do balde vermelho desbotado pelo sol, que continha uma mistureba de carrinhos de brinquedo, tinha um livro encadernado em couro marrom-escuro.

Hipnotizado pelo tomo bem envelhecido, virei ele e li o título gravado, meticulosamente talhado na capa levemente úmida.

“Uma história de vida”.

Não reconheci o título nem o nome do autor rabiscado, pequeno demais até pras minhas lentes aumentarem. Tentei chamar a atenção da vendedora. A mulher corpulenta, vidrada no celular, acenou com a mão e repetiu uma frase cansada, apontando pro adesivo de preço no balde.

Joguei as moedas, voltei pra casa com bem mais escolha que o normal. Pensando qual dos novos achados atacar primeiro, meu olhar sempre caía naquele livro.

Não sei o que eu esperava de um título desses – talvez uma autobiografia reflexiva ou um guia completo pra viver a vida intensamente. Não foi o que rolou.

Nem terminei a primeira página e o estilo do autor já me travou. Cada frase era uma descrição metódica, até relatando os sentidos que o personagem principal estaria sentindo.

As descrições eram precisas, ainda mais do ponto de vista de alguém afastado da situação, mas presente o suficiente pra sentir tudo junto.

O problema mais foda, porém, era que cada detalhe batia quase perfeitamente com a minha infância.

Meu local de nascimento, o hospital, o horário exato, até a primeira casa e o nome completo dos meus pais.

Admito, não tenho memórias sólidas daqueles anos por motivos óbvios, mas as descrições do meu quarto e da família eram precisas demais.

Não consegui ler mais. Quem quer que tivesse bolado essa piada doente devia estar me seguindo há um tempão – ou pegou minhas informações na internet.

Nos dias seguintes, virei paranoico pra caralho, olhando por cima do ombro a cada segundo, pronto pra encarar algum perseguidor sombrio.

Nunca aconteceu, mas mostrei o livro pra uma amiga, em parte pra justificar minha loucura atual e em parte pra saciar uma curiosidade.

Libby surtou direitinho quando leu a primeira página, os olhos arregalados e a testa franzida enquanto eu via o olhar dela percorrer cada linha.

Já comecei meu discurso no segundo em que ela ergueu os olhos pros meus, mas a primeira pergunta dela calou minhas preocupações – por um momento. A frase seguinte que saiu da boca dela me deixou pasmo, igualzinho a ela.

“Como diabos alguém sabe tanto sobre mim?”

Desabei no salto que eu já tinha dado, chegando numa conclusão completamente alienígena. Virei o livro e reli as primeiras linhas; ainda detalhavam minha infância, mas segundo Libby, as palavras daquela página eram sobre ela.

Em pânico, cortei a conversa e precisei pesquisar mais. Usei o intervalo do trabalho pra vasculhar a internet atrás de qualquer informação. Nada.

Nenhum conto sobre o objeto, nenhum caso paranormal, nada. Nem a identidade daquela mulher era conhecida, embora eu tenha perguntado pra todos os vendedores habituais que estavam lá naquele dia.

Resignado com meu destino, afundei na poltrona naquela noite quando uma ideia idiota e irresponsável brotou na minha cabeça.

Se o autor daquele livro sabia tanto sobre mim – a ponto de eu nem lembrar direito de alguns detalhes –, então eu queria botar à prova. Loucura, eu sei, mas o quanto eu podia tirar de um livro sobre a minha própria vida?

Sem a ajuda dos meus pais, teria que cavar fundo e tentar casar cada batida dessa história com os dias que vivi, todos aqueles ontens.

Começou tranquilo, usando álbuns de fotos antigos e histórias que me contaram quando eu era criança. A maioria daqueles eventos iniciais batia. Não tinha memórias marcantes, então as descrições não mexiam muito.

Aquele escorregão na cantina trouxe de volta uma onda de vergonha que na época me matou por dentro, mas agora só arrancou um risinho baixo.

Meu primeiro gol pelo time juvenil e a pizza depois definitivamente acertaram aquela coceira nostálgica. Naqueles anos iniciais, quando eu não estava atolado em responsabilidades de adulto, tudo parecia bem mais leve.

Quanto mais detalhadas as contas ficavam, mais memórias vívidas eu conseguia arrancar do esquecimento.

Às vezes eu revivia dias inteiros do passado – sons, cheiros e imagens perfeitamente articulados em cada página, alguns até mais palpáveis que a minha própria lembrança.

Dias frescos de verão no quintal dos avós, colhendo amoras pra famosa torta de amora e maçã da vovó, voltavam correndo. Uma época mais quieta, sem estresse.

Sem viver na pele, aquelas sensações eram viciantes o suficiente pra grudar qualquer um na página, capaz de reviver aqueles momentos altos como se estivesse lá.

Infelizmente, outras visões eram uma bagunça de emoções que eu era jovem demais pra processar, só espelhando a miséria da minha família de luto.

Aqueles falecimentos batiam com força tectônica. Nas páginas, eram tão reais e físicas quanto o livro de onde vazavam. Arrancados com violência, deixando tanta devastação quanto no dia em que os perdi.

Logo, o encanto tentador de alcançar o passado calou todo o resto.

Lutar contra a vontade de faltar no trabalho era como segurar uma pedra gigantesca, mas bastou ceder à virada viciante de mais uma página e meu emprego dos sonhos perdeu qualquer peso.

Oito anos ralando pra chegar ali não valiam nada. Nem quando cheguei no topo, finalmente publicando minha própria obra, me tirou um centímetro da poltrona onde me colei.

Mensagens, ligações e até batidas ocasionais na porta não quebravam meu foco laser na narrativa que eu mesmo tinha vivido.

O mínimo do mínimo era o que eu fazia. Comer uma vez por dia parecia tortura, olhando de volta pras páginas impecavelmente lisas a cada microsegundo possível.

Minha insônia levantou a cabeça feia, trabalhando dobrado pra me tirar dos cochilos involuntários no chão da sala. No meu auge, a maior parte do meu melhor trabalho fluía nas horas crepusculares, encontrando inspiração nova enquanto meus pensamentos ficavam soltos.

Numa fachada distorcida dos meus próprios pensamentos, tudo o que importava era a próxima linha, a próxima recriação perfeita de um dia há muito descartado. Na época considerado só enchimento pro próximo grande evento da vida, agora ruminado como texto sagrado de um padre no altar.

Logo meu celular morreu, comi tudo o que consegui engolir com o mínimo de preparo possível e as batidas na porta ficaram mais frequentes.

Uma voz ecoou da porta de carvalho podre, misturando-se à brisa fria, nada além de um sussurro ambiente enquanto eu avançava pelos meus próprios recuerdos.

Pronto pra virar a página, meus olhos devoravam cada palavra famintos, parando pela primeira vez por vontade própria. Como uma experiência fora do corpo, a frase final descrevia cada detalhe minúsculo do quarto esquecido onde eu estava deitado, centrando no meu corpo exausto, virando pra mesma página.

Antes que eu pudesse processar o limiar em que eu estava, vozes explodiram e madeira estilhaçou enquanto aquele tomo bíblico era arrancado da minha mão encharcada.

No meio do caos e da confusão, aquela janela pra cada momento concebível sumiu, nada além de bafo num espelho.

Eu gostaria de dizer que estava estável o suficiente pra viver sem aquilo, não tão preso, mas meu rosto emaciado bastou pros dois policiais entenderem. Por sabe-se lá quanto tempo, eu tinha overdosed na minha droga de escolha: nostalgia.

Contido no meu estado selvagem – mais pelo meu próprio bem –, fui levado pro hospital. Aquelas memórias estão nebulosas, mas o nojo pela minha própria deterioração mental deixou um gosto amargo na boca.

Tive visitas, gente preocupada comigo, aflita com minha falta de interação, mas por mais triste que seja dizer, eu sentia falta das pessoas pra quem podia voltar pra mais. Aquelas páginas sem fim, ainda capazes de me transportar pros dias quietos de verão, onde ainda chamavam meu nome.

Com tempo pra me recuperar, não voltei ao meu melhor, mas cheguei o mais perto possível. Porém, rolando o celular depois da alta, ficou claro que Libby não tinha.

Nos meses em que eu fiquei grudado nas páginas, ela pirou.

A caixa de Pandora que abri pra ela causou uma ruptura braba na psique. Só com as primeiras páginas, uma pergunta brotou e praticamente a engoliu inteira.

Estava espalhado pelo quarto dela, em toda superfície disponível.

Eu teria aceitado o abuso por aquela ação idiota, mas nunca veio. Ver ela encolhida em silêncio naquela poltrona de canto – como eu via pela janela – finalmente colocou em perspectiva o quanto eu tinha sido sugado pela oferta.

Sei que foi burro, irresponsável, tudo isso, mas cheguei no topo daquela curva.

No tempo afastado, deixei a mente vagar, embora acho que a conclusão sempre esteve ali, cutucando no fundo da cabeça. O que aconteceria se eu lesse adiante?

Eu gravaria ativamente meu futuro na pedra, ou ele, como aquelas descrições do passado, já estaria escrito?

Talvez essa informação me mande pra outra espiral, pensando no meu destino e no meu livre-arbítrio.

Aqueles relatos, tão perfeitos que parecia que o autor viu cada evento pelos meus olhos.

A menos que eu vire aquela página e grave aquelas palavras na existência, nunca vou saber.

Mas é exatamente isso: estou pronto pra virar o autor da minha própria história?

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