Eu, por outro lado, aprendi há muito tempo a assumir a responsabilidade pelos meus vacilos e a trabalhar pra não repeti-los. Estaciono bem longe dos outros carros. Deixo um espaço extra no trânsito. E se ouço ou sinto o carro bater na guia ou em qualquer coisa, desço na hora pra ver como ficou. Não fico achando que “tá tudo bem” e saio acelerando. Já perdi calotas assim, e coisa pior.
Há mais ou menos um mês, estava saindo de um estacionamento fazendo uma curva à direita quando subi na guia. Não tinha visto, nem imaginava que estava tão perto, até que de repente senti o carro dar um pulo pra cima e descer do lado do passageiro. Suspirei, dei meia-volta pro primeiro espaço vazio e saí pra inspecionar o estrago.
O carro estava de boa. Tinha uns arranhões leves na lateral do pneu, mas nada sério. Sem bolhas suspeitas, sem furos. Nada que precisasse consertar.
Parecia que eu tinha arrancado um pedação da guia, porém. Pelo menos foi o que pensei de cara. Tinha um bloco de pedra quebrado, do tamanho dos meus dois punhos juntos, jogado na sarjeta, mas eu não conseguia ver de onde na guia ele tinha saído. Quando me aproximei, percebi que nem era o mesmo material. A guia era de cimento, mas a pedra parecia algo mais natural, talvez granito. E estava estranhamente lisa do lado de fora, como se tivesse sido moldada. Claramente não tinha vindo da guia.
Peguei pra examinar. Era pedra trabalhada mesmo. Não dava pra identificar direito o que tinha sido. Tinha uma parte que parecia um sapato, e era possível que o pedaço que eu segurava fosse uma perna inferior. Se fosse isso, a escultura não era lá grande coisa. Os detalhes eram corridos e vagos. O escultor claramente não tinha prestado muita atenção.
Não quis deixar ali pra alguém bater, então joguei no porta-malas do carro. Pensei em jogar fora na próxima vez que passasse perto de uma caçamba.
Claro que esqueci na hora. Só lembrei uns sete dias depois. Pisei no freio com força pra parar num sinal que não tinha visto, e ouvi o bloco de pedra rolando no porta-malas. Quase me matou do coração, porque de primeira não saquei o que era e pensei que tinha atropelado algo que não vi. Fiquei olhando todos os retrovisores em pânico e teria descido pra checar a rua se o cara atrás não tivesse buzinado pra avisar que eu estava travando tudo.
Enquanto acelerava pelo cruzamento, ouvi a pedra quebrada rolar de novo e de repente entendi o que era. Dei uma risada meio nervosa e anotei mentalmente tirar aquilo do porta-malas o quanto antes.
Tinha uma caçamba do lado de fora do condomínio pra onde eu ia, então estacionei na frente, abri o porta-malas. Fiquei surpreso de ver dois pedaços de pedra em vez de um. Primeiro pensei que tinha rolado com força suficiente pra quebrar ao meio, mas quando tirei os pedaços ficou ainda mais confuso.
O pedaço que eu tinha achado outro dia, aquele que parecia uma perna, estava intacto, igual quando encontrei. O segundo pedaço era totalmente novo. Não fazia ideia de como tinha ido parar no porta-malas.
Igual ao primeiro, era granito liso que tinha sido quebrado de forma bruta. Nenhuma das bordas dos pedaços encaixava uma na outra, mas dava pra ver que eram da mesma peça. Onde o primeiro lembrava uma perna rabiscada às pressas, esse dava a impressão de um braço. A mão era clara, cinco dedos abertos. O resto se misturava numa massa vaga.
Obviamente eu tinha pegado dois pedaços naquele dia e esquecido. Era a única explicação que fazia sentido. Nem lembrava que tinha algo no porta-malas até agora. Parecia razoável que também tivesse esquecido que eram dois pedaços.
Talvez eu tivesse conseguido me convencer disso se não fosse pelo terceiro pedaço. Ele não estava no meu carro. Estava encostado na lateral da caçamba.
Era maior que os outros dois e bem menos claro quanto ao que pretendia ser. Sozinho, eu nem teria percebido que era parte de uma estátua. Era um cilindro de granito disforme, quebrado de todos os lados. Quem olhasse de relance acharia que era entulho de obra.
Mas tinha partes alisadas, e a mesma cor dos pedaços de estátua que eu segurava. Encostei a perna nele, girando até achar onde as quebras batiam. O braço também encaixava.
O pedaço jogado fora era três quartos de um tronco, uma imagem borrada, meio vista, esculpida na pedra. Era em escala de metade, supondo que fosse um adulto. Podia ser uma estátua em tamanho real de uma criança.
Não me importei. Joguei os três pedaços na caçamba e estacionei o mais longe possível dela. Quando saí da casa do meu amigo naquela noite, chequei o porta-malas antes de ir pra casa. Estava vazio, ainda bem.
Duas semanas depois, a coisa toda já começava a parecer besteira. Sim, era esquisito, mas um monte de coisa é. Coincidências estranhas acontecem o tempo todo. A maioria nunca é explicada. É assim que o mundo gira. Eu tinha outras coisas pra me preocupar.
Estava pensando em algumas dessas outras coisas enquanto dava ré pra sair da minha vaga no trabalho. Tinha sido um dia longo no fim de uma semana longa. Fui o último a sair do escritório. O sol ainda não tinha nascido quando cheguei de manhã, e já tinha se posto quando saí. Meu escritório não tem janelas. Não vi o sol aquele dia inteiro. Tentava lembrar se tinha visto durante a semana toda.
Estava distraído, é o que quero dizer. Não tinha ninguém no estacionamento. Não tinha motivo especial pra prestar atenção. Até que um estalo alto quebrou meus pensamentos e me trouxe de volta à realidade.
Não tinha nada no retrovisor. Não tinha outros carros no estacionamento. Eu não estava perto de nenhum canteiro. Joguei o carro em ponto morto e pulei pra fora pra ver o que rolou.
A estátua estava quebrada no asfalto, os pedaços exatamente como eu tinha visto antes. A perna esquerda estava embaixo da roda traseira. O braço com os dedos abertos estava a uns metros de distância. O tronco danificado balançava de leve ali perto. Nenhum pedaço do lado direito estava lá, mas a cabeça…
A cabeça estava em mil pedacinhos de granito, espalhados pelo asfalto preto numa constelação horrível. Era tão impressionista quanto o resto da estátua, mas eu conseguia ver um triângulo vago de nariz, um pedaço que parecia ligar um olho e uma orelha, e dezenas de outros pedaços reconhecíveis entre os cascalhos.
Era só uma estátua, só um pedaço de pedra sem vida. Eu podia ter varrido pro lado. Podia ter seguido em frente. Talvez devesse ter feito isso.
Em vez disso, agachei ali no frio da noite, pegando pedaços de granito quebrado até minhas mãos ficarem dormentes. Empilhei os pedaços grandes no porta-malas e joguei todos os menores numa sacola. Quando terminei, o estacionamento estava limpo. Nenhum pedaço da estátua sobrou.
Tenho remontado tudo em casa, colando os pedaços com epóxi. Tem sido surpreendentemente fácil. Eu sei como deve ficar. Já vi antes.
Talvez eu não seja o melhor motorista. Mas assumo a responsabilidade pelos meus erros.


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