segunda-feira, 3 de novembro de 2025

Um cara me assaltou no mês passado. Ele não levou minha carteira, mas levou uma coisa que eu nunca vou conseguir de volta...

Escrevo isso porque não tenho outra forma de falar. O boletim de ocorrência da polícia só diz "agressão grave". Eles não entendem. Não podem entender.

Antes disso tudo, minha voz era a minha vida. Mais que a vida: era o meu propósito. Todo dia eu achava um canto nessa cidade imensa e indiferente e pregava. Sou jovem, sei como parece. Uns riam na cara, outros passavam correndo, mas alguns paravam pra ouvir. Nunca gritei fogo e enxofre. Falava de esperança, de achar luz nas rachaduras dessa selva de concreto. Minha voz era um sino. Forte, ressonante, um dom que eu achava que Deus tinha me dado pra dividir. Eu sentia as palavras vibrarem no peito, uma força física que eu jogava por cima de uma praça lotada, cortando o barulho dos carros e da multidão até alcançar quem precisava ouvir. Aquela sensação... era estar vivo de verdade.

Tudo acabou há um mês.

Era uma terça. Terminei tarde, garganta arranhada mas alma nas nuvens. Tive um dia bom; umas pessoas pararam pra conversar, pra desabafar. Voltava pra casa por um atalho que já fizera cem vezes. Um beco estreito, mal iluminado, que te cospe a um quarteirão do meu prédio. Sempre parecia um segredinho, um momento de silêncio entre o rugido da avenida e o zum-zum do bairro.

Naquela noite, o silêncio era outro. Pesado. Predatório.

Ele era só uma forma no fundo da sombra, no meio do beco. Só vi quando já tava em cima. Primeiro pensei num morador de rua, e minha mão foi automática pra carteira — não de medo, mas pra dar o troco que eu tinha.

"Deus te abençoe, irmão", comecei a dizer. As palavras morreram na garganta.

Não era morador de rua. Era... errado. Magrelo é pouco. A pele parecia grande demais pros ossos, esticada num esqueleto fino demais. Os olhos eram buracos negros na luz fraca. Tinha um cheiro também, de terra úmida e papel mofado.

Ele se mexeu mais rápido que eu consegui reagir. Num segundo era forma, no outro a mão dele tava cravada no meu braço. Gelada pra caralho, um frio morto que atravessava o casaco. Fiz o que qualquer um faria. Abri a boca e berrei.

Foi um berro bom, daqueles que nascem do medo puro, com toda a potência que eu botava nos sermões. Deveria ter ecoado nas paredes de tijolo e trazido gente correndo.

Mas não ecoou.

O cara, esse boneco de palha, nem piscou. Não tentou me calar. Em vez disso, se aproximou, cara a centímetros da minha. E enquanto eu berrava, ele fez uma coisa que até hoje não cabe na cabeça. Inspirou.

Não foi respiração normal. Foi uma sugada funda, rangida, impossível, um vácuo. Eu senti. Senti a minha voz, o som, a força, a vibração, sendo puxada dos pulmões, arrancada da garganta. Era físico, como se tirassem um fio do meu âmago. O berro afinou, tremelicou e... sumiu. Só silêncio.

Minha boca ainda aberta, pulmões ainda arfando, mas zero som. Só um silêncio aterrorizante onde minha voz devia estar. O cara se endireitou, um brilho de satisfação nos olhos fundos. Não pegou a carteira. Não me tocou de novo. Só soltou o braço, virou e derreteu nas sombras do fundo do beco.

Fiquei ali um tempão, tentando gritar por socorro, tentando fazer barulho. Respirava, tossia, mas a parte que faz som... sumiu. Era tentar mexer um membro fantasma. A máquina tava lá, mas o sinal não chegava.

Os primeiros dias foram um borrão de médicos e especialistas. Andava com bloquinho e caneta pra todo lado.

*Fui assaltado. Berrei e minha voz parou.*

Olhavam com pena. Um otorrino enfiou câmera pelo nariz até a garganta. Mostrou o monitor. "Olha", disse, apontando. "Pregas vocais perfeitas. Sem inchaço, sem paralisia, sem nódulos. Fisicamente, zero motivo pra você não falar."

Deram nome: transtorno de conversão. Trauma psicológico grave virando sintoma físico. Minha mente, disseram, ficou tão chocada que desligou a voz pra me proteger. Explicação plausível, científica. Fez sentido pra todo mundo menos pra mim.

Fui pros meus mentores, os pregadores mais velhos que me guiaram. Sentei numa cadeira de carvalho numa sala cheirando a livro velho e escrevi tudo num bloco amarelo. Leram, caras marcadas de preocupação.

"O inimigo age de muitas formas, filho", disse um, voz grave e reconfortante. "Ele quer calar os mensageiros do Senhor. Foi um trauma. O choque roubou tua língua por um tempo. Tenha fé. Ore. Descanse. Deixe Deus curar tua mente, e a voz volta."

Psicológico. Todo mundo concordava. Vítima de crime violento, mente quebrou de um jeito específico e raro. Tentei acreditar. Oreí. Descansei. Enchi cadernos com sermões mudos, súplicas mudas a Deus. Mas eu sabia o que senti. Não foi a mente quebrando. Foi roubo. Sentia o vazio no peito onde antes ressoava. Um buraco que doía de silêncio.

A vida virou pesadelo quieto. O mundo parecia atrás de um vidro. Não trabalhava. Não pregava. Nem pedia café sem apontar e escrever. Virei fantasma na própria vida, identidade arrancada. O silêncio era o barulho mais alto que já ouvi.

Aí, exatamente uma semana depois do ataque, o horror de verdade começou.

Eu tava no apê, tentando ler. Janela aberta, ar da noite e som distante da cidade entrando. Primeiro foi um murmúrio, no limite do ouvido. Quase ignorei, rádio de carro ou briga de casal. Mas o ritmo... tinha algo familiar.

Fui à janela, me debrucei. O som subia e descia, vindo com o vento. Aí ouvi claro, uma frase ecoando de umas ruas dali.

"...e eu vos digo, a compaixão do próximo é fraqueza que você pode explorar..."

Congelei. Suor frio tomou o corpo inteiro. Era a minha voz.

Sem erro. Meu tom, meu timbre, meu jeito de esticar vogais quando enfatizo. A voz que usava todo dia pra falar de amor e perdão. Mas as palavras... veneno. Uma gozação torpe de tudo que eu preguei.

Peguei as chaves e saí correndo, coração batendo na garganta. Desci a rua atrás do som. Parecia vir de um parquinho a dois quarteirões. Cheguei sem fôlego, frenético, e... nada. Só uns cachorreiros, um casal no banco. Silêncio. Voz sumiu.

Tentei me convencer: alucinação auditiva, sintoma do trauma. Médicos diriam isso. Mente pregando peça, criando fantasma da voz perdida. Fazia sentido.

Mas na noite seguinte, aconteceu de novo.

Dessa vez mais perto. Parecia do telhado do prédio em frente. Fiquei na janela, sangue gelando.

"...olhem pros desesperados e vejam não alma pra salvar, mas ferramenta pra usar. A esperança deles é moeda, gaste à vontade..."

Minha voz, pregando evangelho do mal puro. Egoísmo como virtude, crueldade como força. Sermão do inferno, no mesmo tom apaixonado que eu usava pra consolar perdidos. Fiquei meia hora olhando o telhado. Ninguém. A voz cuspiu sujeira no ar noturno e... parou, como se desligassem.

Toda noite depois, ficava mais perto.

Uma noite, do beco atrás do prédio. Outra, do cruzamento bem embaixo da janela. Eu descia correndo, mas nunca tinha ninguém. Fantasma.

Eu tava desmoronando. Não dormia. Ficava no escuro, na janela, esperando, temendo o momento que eu começava a falar. Amigos e mentores da igreja vinham ver. Tentava explicar, rabiscando loucamente.

*Ouço minha voz. Alguém tá usando. Diz coisas horríveis.*

Mesmos olhares de pena. "É o trauma", diziam suave. "Sua mente tá processando. Talvez seja sua raiva, seu medo se manifestando."

Achavam que eu pirava. E, pra ser honesto, eu começava a achar o mesmo. Era esse o meu novo normal? Preso no silêncio, assombrado por uma versão distorcida de mim?

Ontem à noite decidi que não aguentava mais. Louco ou não, tinha que enfrentar. Quando a voz começou, mais perto que nunca, vindo do mesmo beco onde perdi, não hesitei. Peguei a lanterna mais pesada e saí pra encarar meu fantasma.

O beco tava igual, e a voz... tava ali. Alta, ricocheteando nas paredes, torrente de palavras lindas, persuasivas, horrendas.

"...porque o verdadeiro poder não tá em erguer os outros, mas na certeza de que você pode derrubá-los..."

Vinham do fundo. Me aproximei devagar, feixe da lanterna cortando a escuridão, e vi ele.

O mesmo magrelo. Mesmo espantalho. Não tava sozinho. Encurralara uma garota contra a parede. Ela olhava pra cima, olhos arregalados, mas não de medo. Era... fascínio. Hipnotizada.

A voz saía dele. Mas os lábios não acompanhavam. Parecia dublagem ruim. O som, *meu* som, brotava do peito, transmissão perfeita da minha voz roubada, torcida pro propósito dele.

Sangue gelou, mas aí acendeu outro fogo. Raiva justa. Aquela que eu canalizava nos sermões. Sou pastor, e isso... era lobo no meio do rebanho.

Ele me viu. O feixe pegou o rosto, olhos fundos cravaram nos meus. A voz cortou de repente, mergulhando o beco num silêncio chocante. A garota piscou, como acordando, e medo de verdade finalmente surgiu.

O magrelo inclinou a cabeça. Não pareceu surpreso. Um som seco, folhas mortas no asfalto, saiu da garganta. Talvez risada. Aí falou, voz dele dessa vez. Sussurro.

"Você. Voltou. O fogo em você é forte. Tempera o som."

Sabia. Falava comigo, mas parecia entender minhas perguntas mudas. Dei um passo, erguendo a lanterna como porrete. Não sabia o que ia fazer. Só sabia que não podia deixar ele machucar ela.

"Se pergunta como?", chiou, olhos fixos. "É um dom. Pego instrumentos de convicção. Sermão do pregador, promessa do político, sussurro do amante. Bebo o som, uso a fé que sobra pra atrair." Apontou o queixo pra garota, que agora tremia. "Eles ouvem voz que querem acreditar. Se aproximam. Muros caem. O resto fica fácil."

Não tinha voz pra gritar aviso. Não tinha palavras pra condenar. Só convicção. Num gesto desesperado, fiz o único que podia. Me joguei nele.

Não sou grande, e ele era forte pra caralho, mas a surpresa bastou. Bati nele, caímos embolados.

"CORRE!", articulei pra garota, grito mudo, desesperado.

Por um segundo ela ficou parada, aí o instinto de sobrevivência ligou. Saiu raspando, passos ecoando enquanto fugia na noite.

Senti um lampejo de vitória. Durou pouco.

O ladrão me jogou longe com força assustadora. Bati na parede, ar fora. Antes de me recuperar, tava em cima, mão esquelética no meu pescoço.

Se inclinou, cara a centímetros. Fedor de terra podre tomou conta.

"Gesto inútil", sibilou, voz farfalhando na escuridão. "Teu rebanho fugiu. O pastor vai ser devorado."

Aperto aumentou, consciência escorregando. Ria, mesmo som de folhas, e abriu a boca.

Vou ver isso em pesadelo pro resto da vida, por mais curta que seja. Não era mais boca. Esticou, desengonçou, alargou, carne se contorcendo fora da física, da biologia. Abriu mais, mais, até a cabeça ser só um buraco perfeito, círculo de breu sem estrelas. Buraco no mundo. Um zumbido agudo saía, puxando as bordas da alma. Baixava aquele vazio no meu rosto, e eu sabia, com certeza além do terror, que ia me engolir. Não só o corpo, tudo que eu era.

Aí uma sirene cortou a noite.

Começou longe, mas cresceu, uivando. O ladrão congelou. O buraco da boca recuou, voltando a linha fina sem sangue. Cara de puro saco.

Com um último sibilo de desprezo, soltou meu pescoço, levantou e sumiu. Não correu. Desmanchou nas sombras do fundo e evaporou.

Fiquei ali, ofegante, puxando ar rasgado e mudo, enquanto o carro de polícia freava na boca do beco. A garota que salvei achou eles.

Claro, não acreditaram na história real. Me acharam machucado, vítima histérica. Pra eles, assalto que deu errado. Tentativa de agressão. Ela tentou explicar da voz, do transe, mas anotaram como choque. Quando pediram meu depoimento, só mostrei o bloquinho. Chamaram psicólogo da assistência a vítimas. Foram gentis, profissionais, e totalmente inúteis.

Então aqui estou. Garganta roxa, mas médicos dizem que fico bem. Fisicamente. Voz não voltou. Sei que não volta. Tá lá fora com ele.

Escrevo porque sou pregador, e pregador tem que espalhar a palavra. Esse é meu novo púlpito. Meu novo sermão. Aquela coisa tá solta. Caça na minha cidade, usando minha voz. Pode tá caçando na sua.

Então, por favor, escute. Se voltar pra casa à noite e ouvir uma voz num beco escuro, voz que parece confiável demais, convincente demais... voz que fala de esperança mas te dá um frio na espinha... CORRE. Não escute. Não deixa as palavras criarem raiz. Porque pode ser promessa de político, sussurro de amante.

Ou pode ser a minha.

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