Eu desejava do fundo do coração poder ver as folhas caindo, mas as paredes de pedra bloqueavam a luz de fora.
O bunker foi lotado quase que imediatamente depois que a catástrofe aconteceu naquela fatídica manhãzinha. O povo entrou em pânico, alguns sem direção nenhuma. Eu diria que é seguro assumir que a maior parte da população da Terra foi arrancada do chão na hora, pelos ventos de quase mil quilômetros por hora. As árvores de outono foram desenraizadas. Casas explodiram em pedaços soltos de drywall e estuque. Arranha-céus não tombaram — simplesmente saíram voando do chão. Pelo menos um pouco de entulho, segundo as transmissões, conseguiu até alcançar a velocidade de escape, e os terremotos que estouraram a escala Richter não ajudaram. O mundo que se preparava pro inverno que vinha pela frente foi obliterado.
As pessoas viraram sacos de carne voadores sem rumo. Algumas se espatifaram contra paredes bem firmes, atravessaram ruas ou foram moídas nos restos de uma cerca de ferro. Os que tiveram sorte de sobreviver já estavam debaixo da terra ou debaixo d’água. Com o tempo, os restos da lei local e do exército nos tiraram dos esconderijos. Lembro de ver crianças sendo vendadas ao entrar pra não terem que ver os restos dos vizinhos cobertos pelas folhas marrons. Eu não tive essa sorte. Tudo que consegui foi guardar no bolso uma folha rasgada de alguma árvore caída. Talvez ela viesse de onde eu estava, ou talvez tivesse vindo de vários quilômetros de distância. Tanto faz.
O rádio virou o centro das noites de todo mundo. Dentro dos quartos apertados, ele ficava em cima de uma mesinha no meio, ligado a uma antena tosca em algum lugar lá em cima. Conseguimos sintonizar uma transmissão de notícias pra atualizações, mas ouvir cada uma delas ficava mais e mais pesado, e tenho certeza de que eu não era o único. Quando deixávamos ligado durante as noites sem dormir, eu via os ombros do meu vizinho de beliche subindo e descendo debaixo do cobertor fino enquanto ele fungava. Às vezes eu me pegava na mesma, encarando a folha que consegui pegar. A base dela subia até um topo fragmentado, as veias se esticando, sem conseguir sustentar nada.
Uma noite, eu tinha conseguido me ajeitar o suficiente pra quase cair no sono, mas o rádio chamou minha atenção. Ficou mais e mais claro com o tempo, tirando qualquer chance de dormir. Derrotado, desci a escada do beliche até a mesinha do centro. Ninguém parecia notar meus movimentos.
Embora tivesse clareado, a voz ainda chegava mal, mas era melhor que a maioria das noites de chiado incoerente do vento correndo. Girei o botão com cuidado.
“…mapeamento de toda a catástrofe… para o nosso entendi…”
O chiado cortou a fala dele. Parecia um pesquisador lá em cima. As palavras eram formais, ditas em voz alta tentando vencer o vento. Girei o botão de novo.
“…com nossos pontos de dados das equipes perdidas no marco zero, conseguimos mapear o formato da zona de impa… os pontos no mapa formam a imagem de um…”
Uma o quê? Tentei sintonizar melhor, mas o chiado não sumia. Depois de um tempo, o sinal clareou de novo.
“…asualties chegam aos milhares!”
“Merda!”
Ele já tinha passado adiante, e ouvindo mais, não explicou o que era aquilo. Afundei na cadeira rangente com os braços cruzados. O mundo acabou e a gente nem sabia o que causou.
“…torres de satélite recém-construídas voltaram com informações sobre o nascer e o pôr do sol esperados da Terra por área…”
Como isso ia ajudar? Virei na cadeira pra voltar pro beliche, mas a voz do pesquisador continuou, me parando.
“…nascer e pôr do sol não fazem mais parte da nossa transmissão porque os dados de telemetria mostram que a rotação axial parou completamente…”
Meu coração deu um pulo. A Terra parou de girar? Alguém mais tinha ouvido isso? Por que não descobriram antes? Isso com certeza tinha a ver com a tal zona de impacto, né? Era um meteoro? Outro planeta? A Lua?
“O sol não vai se m… da posição atual no céu! Fiquem dentro de casa nes… ti…”
O rádio perdeu o sinal de vez. Sentei de novo na cadeira, atônito. O teto pingava no meu rosto enquanto eu olhava pra cima. Eu queria mais que tudo voltar pra casa e ver as cores das folhas mudando. Queria voltar. Quando isso tudo acabasse, eu poderia voltar. Talvez quando nos dessem uma boa notícia, todo mundo pudesse voltar. Um frenesi subiu do meu estômago pros braços. Eu precisava saber mais. Estiquei a mão pro botão e girei rápido. O dial correu entre canais, parando num onde peguei sinal.
Não era o mesmo canal de antes. Esse estava muito mais claro. Uma voz grave e confiante falou pelo rádio, o chiado sumindo.
“…isso foi predito por gerações. Nossa hora chegou. Todos os fiéis a quem falo, não fraquejem, pois os medrosos são os pecadores. O tufão furioso da ira de Deus vai cessar. Não se enganem, pois Deus destruiu Sodoma e Gomorra pelos seus pecados, e hoje vemos a mão Dele. Esta estação, a estação da queda, tem esse nome por um motivo. Não estamos caídos? Fomos devolvidos ao pó da Terra, como Adão, e vamos nos erguer com um conhecimento mais alto e mais santo.”
“Que porra é essa?”, sussurrei.
“Precisamos ter fé, pois a mão de Deus está sobre nós! Ele veio buscar os fiéis para ficarem à Sua direita! A mão de Deus está sobre nós!”
Girei o dial mais uma vez; precisava do pesquisador de volta, não desse fanático. Mas esse era o único canal que pegava alguma coisa. Voltei pro chiado gritante do canal do pesquisador, a voz dele agora afogada no ruído.
“…zona de impacto… aproximadamente três milhas da estação de transmissão… localizada em… torre de rádio foi danifica… repito, estamos localizados em Dallas, Texas…”
Dallas? A gente tava perto. Senti a folha no bolso, lembrando das palavras do fanático. Eu tinha que ir ver. Se era manhã quando entramos, seria manhã quando eu saísse.
As portas do bunker rasparam no chão pavimentado e rachado, enganchando num pedaço de asfalto levantado. Me espremi entre as placas de metal.
O ar lá fora estava completamente parado, e o céu da manhã confirmou minha teoria. Tudo igual a quando entrei. Nada habitava o ar, nem a menor partícula de poeira. Olhei pro chão. Nem as pilhas de folhas se mexiam. Enquanto meus olhos vagavam, tive o lembrete infeliz de um cadáver completamente destroçado à minha esquerda. Quem quer que tivesse sido, já se foi há um tempo, comprovado pela cor mais escura do sangue. Não parecia estar com dor, porém. Parecia mais… derrotado — finalmente permitido descansar da catástrofe. O cabelo preto do cadáver não se mexia. Fiquei ali um instante antes de voltar a atenção pro ar ao meu redor mais uma vez.
Se o vento parou, ou melhor, se o ar ficou completamente imóvel, por que o sinal do pesquisador era tão ruim? Virei pra subir a colina onde o bunker foi cavado. Ao chegar no topo, me deparei com um pedaço de antena retorcida e quebrada. Toda a estrutura da torre de rádio tinha desabado sobre si mesma com o vento extremo. Apesar do cadáver da minha linha de vida com o mundo exterior estar aos meus pés, minha atenção virou bruscamente pro horizonte com o novo ponto de vista.
O sol ardente pairava logo acima do horizonte a leste, iluminando perfeitamente o contorno da Terra externa, mas com a forma humana do objeto de impacto. Uma mão gigantesca que esticava os dedos até cada extremidade do horizonte agarrava o solo com força incrível. Não se mexia, assim como o rescaldo da catástrofe que causou. Segui o contorno da ponta do indicador, subindo pelo dorso da mão e pelo braço que se esticava pro céu, tudo coberto por camadas cada vez mais densas de atmosfera.
Fiquei ali, pregado no lugar. Tirei a folha do bolso, dei uma última olhada nela antes de deixar cair. Não balançou nem rodopiou no ar. Não, caiu como peso morto. Direto pra baixo, na grama moribunda.


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