quinta-feira, 6 de novembro de 2025

Minha viagem virou um pesadelo

Eu nunca tinha dirigido até Miami antes. Era pra ter ido anos atrás, mas tudo fechou e viajar parecia impossível. Quando a vida finalmente voltou a algo parecido com o normal, eu planejei a estrada sozinho. Metade dos lugares que o Jeremy e eu falávamos em visitar tinham sumido de vez, mas eu achei que ainda valia a pena ir.

Eu tava no meio do nada quando aconteceu. O rádio cortou do Dr. Dre pra um chiado puro. A tela não piscou — derreteu, os números das estações se contorcendo em sequências aleatórias de letras, como se o sinal estivesse tentando falar. Antes que eu pudesse mexer no botão, ele deslizou sozinho pro controle de volume. Eu baixei e fingi que não tinha acabado de ver meu carro tentando se comunicar comigo.

Três minutos depois o céu escureceu. Nuvens pesadas rolaram tão rápido que parecia que alguém tinha ligado um interruptor. Aí veio a chuva — lençóis grossos batendo no para-brisa, mesmo sendo pleno verão e o app jurando céu limpo. O GPS dizia que faltavam 53 km. Isso — quilômetros. Eu uso métrica; faz mais sentido. Mas o que me gelou não foi a distância. Foi a luz amarela de combustível piscando fraquinho, como se estivesse respirando. Eu devia ter notado antes. O Jeremy me mandou encher o tanque antes de sair, e eu dei de ombros.

Rezei pra ter um posto ali perto. De algum jeito, a rodovia cuspiu um logo à frente, como se estivesse me esperando.

A chuva parou na hora. Não devagar — sumiu. Passei a mão no para-brisa uma vez, e pelo vidro embaçado vi uma placa de estrada, ou o que sobrou dela. O metal pendia torto, preso por um único parafuso. O vento já devia ter arrancado aquilo há tempos, mas ela ainda tava lá, como se tivesse um propósito.

A área de serviço parecia abandonada de longe, mas as luzes tavam acesas. Encostei, saí do carro e fui direto pro banheiro antes de abastecer. Dentro, umas poucas pessoas sentadas nos balcões de fast-food: Subway, KFC, um chinês pequeno e um cafézinho meio escuro. Ninguém falava. Ninguém erguia o olhar. Comiam como se estivessem tentando lembrar como era mastigar.

Entre os restaurantes, uma lojinha estreita, mal cabia a porta. Só notei por causa da placa desbotada em cima: Souvenir.

Não sei por que entrei. Hábito, vai ver. Lá dentro, uma velhinha no caixa. Cabelo prateado preso num coque apertado, óculos finos, um livro de palavras-cruzadas aberto na frente dela. Não se mexeu quando entrei. Não acenou. Não piscou. Só ficou me olhando, como se estivesse me esperando.

A loja não tinha nada de especial — cartões-postais empoeirados, pulseiras baratas, bonés, camisetas velhas. Aquela tralha que a gente só compra quando não tem mais motivo pra continuar andando.

Aí eu vi. Um boné com o logo antigo do touro de Miami. Não o atual — o antigo, que tiraram de circulação anos atrás por causa de uma briga de plágio. O Jeremy sempre zoava que compraria um se achasse. A gente usava o logo original no ensino médio; o diretor era louco por aquele time. Ver aquilo ali parecia impossível.

Não sei por que aquela lojinha de souvenir me incomodou tanto.  
Ficava bem na beira da rodovia, neon rachado zumbindo como se estivesse morrendo. As prateleiras lotadas de tranqueira velha — não antiguidades, mas coisas que pareciam... erradas. Como adereços de um lugar que lembrava o passado de um jeito diferente do nosso.

Achei uma camiseta com um mascote de touro — Team Bulls, o logo quase idêntico ao do meu colégio antigo. Mesmas cores, mesmo rosnado. Só um detalhezinho no olho era diferente, como se alguém tivesse copiado de memória depois de anos no subsolo. Comprei de zoeira pro Jeremy. Uma Pepsi também. O atendente não falou uma palavra. Nem olhou pra mim. Só passou as coisas no caixa e empurrou a sacola pelo balcão, como se tivesse medo de encostar em mim.

A estrada até Miami devia ter sido moleza. Mas vinte minutos depois, quando entrei na cidade, tudo parecia fora do lugar — como se a cena alegre de praia do lado de fora da janela fosse encenada. Brilhante demais. Limpa demais. Como se estivesse se esforçando.

Aí o cara surgiu na frente do carro.

Pisei no freio com tudo, pneus gritando. Uma criança saiu de trás dele — pálida, sorvete escorrendo pelo pulso. O homem só me encarou, olhos arregalados como se eu tivesse cometido um pecado. Como se eu não devesse ter chegado.

Meu coração quase parou. Estacionei a um quarteirão de distância e fiquei lá tremendo, tentando respirar. Fiquei me dizendo que era cansaço. Que eu só tinha imaginado o olhar dele.

Quando cheguei na casa do Jeremy, o sol tava se pondo. Ele tava esperando do lado de fora com o cachorro — Rudolf. Um vira-lata simpático, olhos castanhos, abanando o rabo com tanta força que o corpo todo balançava. Coloquei o boné da lojinha nele e a gente riu. Por um momento, pareceu normal.

Aí a noite caiu, e algo na casa parecia... observando.

O Jeremy falava — histórias do hospital, esgotamento, cansaço da pandemia. Tentei prestar atenção, mas minhas pálpebras pesavam, como se o próprio quarto estivesse me puxando pra baixo. O cachorro saiu pro jardim. A sitcom tocava. O Jeremy continuava falando, sem me olhar.

E aí eu ouvi.

Um estalo seco, como madeira rachando no calor. Dei um pulo.  
O Jeremy nem reagiu. Só continuou falando, voz firme, olhos na TV.

Olhei pra fora.

O Rudolf corria pelo quintal, mas não era mais um cachorro. Era uma forma — queimando, piscando, se movendo errado, como se o fogo tivesse resolvido imitar uma coisa viva. Gritei o nome do Jeremy, berrei sobre o cachorro dele, mas quando ele olhou, o Rudolf tava ali do lado dele, bocejando. Perfeitamente bem. Como se nada tivesse acontecido.

Me convenci de que era choque do quase-acidente de antes. Cansaço. Estresse. Tentei respirar. Tentei agir normal. O Jeremy pegou água pra mim. Pediu pizza. Comemos enquanto o sol sumia, e a casa parecia afundar mais na terra.

Aí a TV piscou. Um programa de auditório.  
O competidor parecia o Jeremy — quase idêntico, exceto pelo cabelo.

A pergunta era sobre a deusa grega Héstia.

“Fogo!”, o Jeremy gritou pra TV, meio de brincadeira. E aí ele congelou. Olhos arregalados.

“Tá pegando fogo”, ele sussurrou. “No jardim.”

Virei. E vi de novo. A forma queimando — correndo, em pânico, com o contorno inconfundível de um cachorro em chamas.

Corremos pra fora com água, apagamos o fogo, engasgando com fumaça e pânico. Quando as chamas morreram, a forma desabou, e o que sobrou não era um animal queimado — era nada. Só terra chamuscada, soltando vapor, como se algo tivesse queimado pra sair do mundo.

Quando nos viramos, o Rudolf tava atrás da gente.  
Rabo abanando. Língua pra fora. Totalmente ileso.

Mas os olhos dele tavam errados.  
Refletiam o fogo.  
Mesmo no escuro.

O silêncio entre a gente parecia vivo.  
Quando olhei pro Jeremy, reconheci cada emoção arranhando o rosto dele — medo, arrependimento, um pavor esmagador que eu nunca tinha visto em outro ser humano. Não era só que algo ruim tinha acontecido. Era que algo errado tinha se instalado sobre a gente, e nós dois sabíamos.

Não teve choro. Ele não tremeu nem gritou. Só ficou olhando além de mim, como se o mundo do lado de fora da janela tivesse virado algo que ele não reconhecia mais. Aí uma batida na porta da frente. A voz de uma mulher veio de fora — vizinha perguntando se tava tudo bem.

“Tá”, o Jeremy disse. “Tudo bem.”

Não tava. Eu sabia. Ele sabia.

Quando a porta se fechou de novo, o silêncio engoliu o quarto. Por um momento, nenhum de nós se mexeu. O tempo não parecia real. Finalmente, o Jeremy falou sem me olhar.

“A gente conversa sobre isso depois”, murmurou.

Tentei responder, mas ele já tava subindo as escadas. A porta fechou. Um segundo depois, ouvi tampinhas de cerveja batendo na madeira.

Não dormi. Toda vez que fechava os olhos, via de novo — aquela coisa, aqueles momentos impossíveis, o pesadelo que não parecia sonho nenhum.

Quando a manhã finalmente chegou, meu cérebro parecia oco e pesado ao mesmo tempo. Demorei um minuto pra lembrar o que tinha sonhado, e quando caiu a ficha, o medo voltou como um soco.

Eu corria subindo uma ladeira, perseguindo o Jeremy por uma névoa grossa. Parecia um jogo de terror antigo — atmosfera granulada, sem som além da minha respiração e do esmagar da terra. O Jeremy nunca olhava pra trás. Quanto mais perto eu chegava, mais densa ficava a névoa, até eu não enxergar minhas próprias mãos. Aí o chão sumiu debaixo dos meus pés — eu tava prestes a despencar de um penhasco. Parei bem a tempo, e a névoa se dissolveu. As pegadas do Jeremy terminavam bem na beira. Uma pegada incompleta pairava ali, como se ele tivesse dado um passo pro nada.

Uma batida suave me acordou de verdade.  
“Tá acordado?”, o Jeremy perguntou pela porta.

Falei que sim — ou pelo menos acho que falei — e me arrastei da cama. Ele já tinha feito panquecas. Pela janela, um montinho de terra no gramado. Em cima, uma foto. Do Rudolf.

Ele não falou nada sobre aquilo. Nem olhou. Só empurrou um prato pra mim e mastigou em silêncio. Entendi. Não era pra falar sobre a noite passada. O que quer que tivesse acontecido — o que quer que a gente tivesse visto — não era pra ser dito em voz alta.

Depois do café, o Jeremy insistiu que a gente pegasse meu carro.

“Confia em mim”, ele disse baixinho. “Você vai querer ir embora quando quiser.”

Sorreiu como se fosse piada, mas eu sabia que não era.

Ele disse que conhecia um lugar — “praias de coral no meio do mato”, ele chamou. Essa frase ficou grudada na minha cabeça desde então. Acho que não é algo que as pessoas dizem de verdade, mas ele agiu como se eu devesse saber. Não usava roupa de trilha. Sem botas. Sem equipamento. Só jeans e aquela camiseta de beisebol desbotada que eu dei pra ele ontem.

Dirigimos em silêncio até a cidade derreter em campos e trilhas estreitas. Era lindo — lindo de um jeito inquietante. Flores por todo lado, como se alguém tivesse pintado. Fileiras perfeitas. Cores vibrantes. Aquele tipo de paisagem que só parece real se você tá sonhando ou na frente de um folheto photoshopado.

Subimos uma encosta suave até um mirante. Pessoas andavam ao nosso redor, quietas e sorridentes, como se nada de ruim pudesse acontecer naquele lugar. Por um segundo, acreditei. Respirei o ar frio e deixei a paz me invadir. Meus ombros relaxaram. Meus pensamentos pararam.

Aí eu pisquei.

E o mundo não era mais o mesmo.

A colina sumiu.  
Os jardins sumiram.  
O céu, as pessoas — tudo desapareceu.

Eu tava em uma planície gramada engolida por névoa branca. Meu corpo se recusava a se mexer. Meus olhos travados pra frente, presos. O pânico rastejava dentro das minhas costelas, mas não tinha pra onde ir. Eu respirava — sei que respirava — mas não conseguia levantar um dedo.

Acho que eu não tava mais no controle.

Quando tentei me mexer, parecia que eu tava acordando dentro do meu próprio corpo pela primeira vez, como se tivesse sido amarrado por correntes que eu não via. Quanto mais eu lutava, mais sentia que tava rompendo o que quer que me segurasse.

Foi aí que notei.

Algo vinha na minha direção. Não andava. Deslizava. Não flutuava como quem anda na ponta dos pés no escuro — não rastejava nem se escondia. Se movia como se o chão não fosse real, como se não precisasse do mundo em que o resto de nós tá preso.

Por um segundo, esqueci como respirar. Cada parte de mim gritava que se eu não me mexesse agora, se não me arrancasse do que quer que me segurasse, algo definitivo ia acontecer. Algo de que eu não voltaria.

Continuou vindo.

Mais perto. Perto demais. A poucos metros —

“Não. Não. Não — fica longe de mim!”

Não sei como, mas de repente ele tava bem à frente e eu conseguia me mexer de novo. Corri. Corri como se minha vida dependesse disso — e talvez dependesse — mas aquela coisa deslizava mais rápido. Não era humana. Eu sentia. Parecia puro erro.

Aí ela me pegou.

Tudo ficou branco. Uma voz gritou — não a minha — “Para ele!”

Abri os olhos e tava pendurado na beira de uma plataforma de mirante na cidade, minhas mãos agarradas pelas de estranhos tentando me puxar de volta. Meu corpo parecia impossivelmente pesado, como se a gravidade tivesse me escolhido. Dezenas de pessoas se esforçavam pra me erguer... e eu mal me mexia.

Olhei pra baixo.

O Jeremy tava agarrado nas minhas pernas, tremendo, desesperado. E atrás dele — agarrado nele — tava aquilo. Um peso morto puxando pra baixo. Subia pelas costas dele como se tivesse todo o tempo do mundo.

Ninguém mais via. Juro que não.

Um segurança agarrou meu braço e tentou me levantar. Subi centímetro por centímetro — e a coisa também. Subiu até o rosto dela pairar a centímetros do meu. Sorriu. Os dedos cravaram na minha roupa, como se decidisse quem levar.

Tentei gritar o nome do Jeremy. Tentei avisar. Mas o demônio envolveu a mão no pulso dele, como quem marca propriedade. O Jeremy nem reagiu.

Num momento ele tava lá.

No outro, o aperto afrouxou... e ele sumiu.

Sem grito. Só o som de um corpo batendo em algo lá embaixo. Um baque surdo, final. Todo mundo ao meu redor ficou em silêncio, paralisado, como se não entendesse o que tinha acabado de ver.

O demônio sumiu.

Fiquei olhando pro corpo do Jeremy enquanto me puxavam de volta pro chão firme. Depois, testemunhas disseram que só viram eu escorregar — pendurado na beira, apavorado — e o Jeremy tentando ajudar. Não viram a coisa. Não sentiram.

Eles querem respostas. Eu também.

Dirigi pra longe depois. Não consegui ir pra casa do Jeremy. Não liguei música. Não pensei. Só dirigi, em silêncio, tentando não sentir a forma da mão dele ainda em mim.

Quando cheguei na rodovia, o rádio ligou sozinho de novo. Desliguei. Não aguentava ouvir.

Parei numa área de serviço — a mesma da noite anterior. Só que dessa vez, a lojinha de souvenir não tava lá. O prédio simplesmente... não existia. Todos os outros lugares tavam no mesmo lugar. Mas a loja? Sumiu como se nunca tivesse existido.

Rodei procurando. Nada. Nenhum rastro, nenhum sinal de que tinha sido real.

Não achei desde então.

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