Parece que tô fingindo, né? Por um crime tão pequeno assim. Aquele carnaval me mudou pra sempre, e agora só consigo rimar. Queria nunca ter ido naquele dia, que tivesse ficado em casa, quietinho. Mas agora que o meu destino tá selado, escrevo nesse tom novo.
O carnaval tava rolando na minha cidade, achei que ia ser divertido. Uns shows legais, comida porcaria aos montes. Sentei lá dentro da tenda e vi tudo acontecer. Paguei meus vinte dólares e não saí correndo.
Quando acabou, a galera foi saindo, rindo alto. O mestre de cerimônias tirou o chapéu e deu aquele olhar ensaiado. Agradeceu todo mundo por ter vindo, depois sumiu atrás da cortina. A tenda pareceu menor sem ele, mais escura, meio doente, pálida.
Fiquei ali onde a cortina se abria, só pra dar uma espiada nos bastidores. Só lona, cordas e formas sombrias balançando devagar. Uma voz atrás de mim sussurrou: “Senhor, a saída é à direita.” Fiz que sim com a cabeça, mas meus pés me traíram e me levaram pra noite.
Do lado de fora das tendas, o ar tava parado, os brinquedos não giravam mais. Uma névoa rastejou pelo gramado e escondeu o sol que tava se pondo. As barraquinhas de jogos pareciam dentes tortos, os prêmios rasgados e cinzentos. Um teatro de marionetes ainda cochichava falas, mas ninguém tava assistindo.
As marionetes se mexiam nas cordas emboladas, bocas pintadas escancaradas. Elas se curvavam diante de uma forma sombria que esperava perto do bar. Achei que era alguém, um funcionário esquecido. Mas quando virou, juro que vi: não tinha olhos humanos.
A forma preta subiu como fumaça, o rosto escuro como a noite. Só dois olhos furando o vazio, e um sorriso brilhante. Aqueles olhos cravaram na minha alma e fizeram meu coração desabar. Tudo que eu queria dali pra frente era estar bem longe.
Ele falou, ou talvez cantou, um zumbido grave e fundo. As palavras deslizaram pela borda da minha razão e se enterraram como sono. Disse meu nome em tons quebrados, depois riu, como se fosse piada. E das trevas, o mestre de cerimônias surgiu de colete vermelho.
“Você viu a parte do nosso show que não é pra humanos. Deu um passo além da cortina. E não vai voltar atrás.” Antes que eu me virasse, as cordas foram jogadas, as bonecas começaram a subir. Rostos sorridentes sussurrando baixo, me enrolaram na linha.
Me arrastaram pra uma tenda mais longe e me prenderam num carrinho. Ele ficava num trilho, de onde eu ia partir.
Gritei, berrei, me soltem, por favor! Mas meus gritos eles ignoraram. O mestre de cerimônias apareceu e soltou o discurso ensaiado.
“Você viu o que não devia. Não dá pra te deixar ir embora. Mas o quão pesado vai ser o castigo, só você vai descobrir. Vai jogar um jogo, talvez dois ou mais. Seu sucesso em cada um decide o que te espera. Então vem, o primeiro já tá chegando, hora de ver onde seu futuro vai parar.”
O carrinho disparou na escuridão, chiando e parando devagar. O holofote iluminou meu trem improvisado, revelando a tarefa, o primeiro jogo de habilidade. Pra piorar, uma multidão de seres apareceu, assistindo à minha maldição.
Na minha frente, bem alinhadas, dezenas de cabeças flutuando em potes. Cada uma acordada num líquido verde, me olhando de longe. Os olhos, distorcidos pelo vidro curvo, mostravam pena que eu sentia. Como se, se eu errasse, logo eu fosse o próximo. “Você tem três bolas pra jogar. Acerta uma dentro de um pote. É a sua vida que tá em jogo se não der o par.”
Mão tremendo, peguei a primeira. Fiz uma prece silenciosa. Levantei o braço e joguei, a bola voou pelo ar. Caiu na borda grossa de um pote e quicou pro escuro. Mais duas chances pra salvar minha vida. Tinha que acertar.
As caras nos potes viraram, as bocas começaram a zumbir. Um coral oco de bolhas que deixou meus dedos dormentes. Joguei com a mão trêmula, desviou, curvou torto. Bateu na tampa, rolou pelo lado e sumiu da minha vista. O mestre de cerimônias abriu os braços e disse: “Uma chance, lá vai.” A bola final parecia mais pesada, como se soubesse do meu crime. Sussurrei: “Deus, faz cair” e joguei pela última vez.
Ela arqueou no ar parado, ficou suspensa um segundo. Depois caiu dentro de um pote esperando. A multidão pulou de pé. Um grito ecoou, metade alegria, metade dor, pelo breu. As cabeças piscaram, afundaram devagar, cada uma sumindo no túmulo.
O mestre de cerimônias tirou o chapéu e se curvou com orgulho ensaiado. “Parabéns”, disse, “você vive por enquanto. Mas tem mais que tentaram.” Estalou a bengala, o carrinho deu um solavanco e sumiu pelo trilho. As risadas me seguiram na escuridão, me desafiando a não olhar pra trás.
“Você ganhou a vida, deve tá feliz, mas agora vamos ver se vai sair daqui com a sanidade.”
O jogo seguinte apareceu, meu ânimo caiu. Era aquele clássico do martelo e do sino.
“Se quiser manter a cabeça no lugar, escuta agora. Isso eu não repito. Pra cada centímetro que faltar, sua sanidade vai junto. Bate com força e não vacila, só tem uma tentativa. Pega o martelo e soca naquele ponto!”
Peguei o martelo, senti um choque. Como se a ferramenta nas minhas mãos estivesse me avaliando em silêncio. Minha mente ficou enevoada, controlei, e bati com tudo. Mantive o foco afiado na luz subindo.
Perdi o sino por um centímetro, mas achei que tinha ido bem. Mas senti vagamente a mudança, minha lucidez caiu. Só um pouquinho, não dá pra reclamar. Com um suspiro, segui pro jogo final.
“Você se saiu bem, te digo. O pior já passou. Mas pelo seu grave deslize, vai ter consequência. Ainda tá vivo, mente sã, pode achar que vai contar nosso segredo pro mundo e nos ferrar todos. Então algo temos que fazer, e você escolhe qual. Gira a roda ali na frente. Vamos acabar sem problema.”
A roda de madeira na minha frente, pintada e iluminada, cada espaço com uma maldição, uma bebida que eu ia ter que tomar. Olhei as opções e tremi de medo. Perderia a língua, os ouvidos, ou quem sabe a visão?
As escolhas eram horríveis, mas não tinha jeito. Pus a mão na roda e girei até rodar. Vocês sabem o que aconteceu depois, qual foi o meu destino. Mas comparado com as opções da roda, esse me aliviou.
“Você sobreviveu ao teste, com quase nada. Mas ninguém vai acreditar em você falando assim. Então se acha sortudo que só rima agora. Mas mais uma coisa: você trabalha aqui. Seu primeiro turno começa às nove.”
Então se encontrar o carnaval, fuja a todo custo. Quem vê o ato final nunca mais conta os perdidos.


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