terça-feira, 4 de novembro de 2025

Fui caçar dentro de uma zona de testes de radiação. Agora, algo está me caçando...

Lá estava eu, mirando a espingarda na beira da mata, quando sai um cervo de três olhos.

Ele abaixava a cabeça, roçando o focinho na grama. Eu espiava de trás de um carvalho, uns cento e cinquenta metros pra trás, numa leve encosta. Fiquei pasmo. Só conseguia olhar.

O cervo achou o lugar dele e começou a mordiscar a grama. Enquanto os olhos normais ficavam fixos no que comia, o terceiro olho rolava dentro da órbita, pra lá e pra cá, pra lá e pra cá, vasculhando tudo ao redor. Até piscava no próprio ritmo.

Era uma mutação genética foda. Exatamente o tipo de coisa que eu procurava.

Eu tava deitado no chão, atrás da espingarda. Deslizei a mira do olho dele, subindo pelo pescoço, e parei logo acima do ombro direito. Bem em cima do coração. Não consegui segurar o sorriso. Porque hoje era meu dia de sorte. Essa cabeça ia virar um troféu do caralho.

Passei o indicador no gatilho. Respirei fundo. Lá no alto das árvores, o sol se punha. Tudo banhado num brilho dourado. O ar tava gelado e o calor da minha respiração embaçava o vidro da luneta. Segurei o ar. Estabilizei a mira. Reflexos loiros riscavam o pelo marrom-chocolate do cervo. Era lindo pra porra. E a vida dele tava na ponta do meu dedo.

O cervo deu uns passos pra frente, virando de lado pro esquerdo, bagunçando minha mira. Quando ele se inclinou, vi uma quinta perna saindo da bunda dele. Empurrei isso pra longe da cabeça. Foquei. Voltei a mira pro coração. Conte uns batimentos e me ajeitei no chão pra ficar confortável. Umas folhas estalaram debaixo de mim.

O olho se ergueu. E depois se estreitou.

Apertei o gatilho.

No meio segundo que a bala levou pra acertar, o cervo deu um pinote pro lado. Tropeçou, girou e disparou de volta pra mata, roçando num cartaz desbotado que dizia “Zona de Radiação. Proibida a Entrada”.

Meus olhos grudaram no cartaz e no buraco vazio entre as árvores. Uma sensação de fracasso afundou no meu estômago como âncora na água. Depois, uma queimação explodiu no peito. Soltei o ar com força pelos dentes.

Seu filho da puta inútil... Eu tinha acertado. Tinha. Tinha. Tinha. Por que caralhos eu me mexi?

Levantei, encarando o carvalho com ódio, e recolhi a espingarda. Tava pronto pra quebrar ela no meio e rachar lenha de quebra. Eu odiava errar. Odiava pra caralho. Um segundo antes de balançar, uma luz se acendeu na minha cabeça.

Parei. Deixei a espingarda cair pro lado. Aquilo tinha sido um tiro bom. Eu tinha acertado em cheio. Olhei pela luneta. Contra a luz que sumia, um ponto de sangue brilhava.

Afunde no tronco da árvore e cruzei a espingarda no colo. Do lado, minha mochila também encostava na árvore. Enfiei a mão dentro e tirei o cantil. Bebi um gole. E comecei a pensar.

O cervo tava correndo, mas aposto que não foi longe. Aposto que nem um pouco. Mas, se eu for atrás agora, posso assustar ele. Fazer correr mais fundo na mata. Seria burrice. Quando isso acontece numa caçada, o tempo padrão de espera é trinta minutos. No mínimo.

Olhei pra um fio de sol sumindo atrás das árvores.

Em trinta minutos, não ia ter mais luz. Eu ia rastrear dentro de uma floresta desconhecida no escuro total.

Bebi mais um gole, depois pensei no meu pai. Ele ia odiar isso. Pra ele, caçar era só pra comida. Atire só no que você vai comer, e nada mais. Eu sempre discordei.

Quando você sente a adrenalina, a empolgação, o tesão de caçar um bicho e conquistar a vida dele, é inesquecível. É como um barato. É íntimo. É a troca mais delicada que você pode ter com outro ser vivo. Mais que sexo. Tô falando sério. Nada se compara.

Mas, como tudo, o novo enjoa.

Aos vinte e poucos, depois que o pai morreu, o tesão sumiu. O que era minha maior alegria virou rotina. É como quando você começa a dirigir. Na primeira vez que vira o volante, parece que descobriu o fogo. É mágica. Mas deixa um ano passar... bom, como eu disse. É igual qualquer coisa. E você só recupera a mágica encontrando um jeito novo de fazer.

Foi aí que descobri esse lugar. Floresta de Radiação Enterprise.

Durante a Primeira Guerra, o governo dos EUA usou uma área pequena dessa floresta em Wisconsin pra testar os efeitos da radiação na vida selvagem. Queriam ver as formas horríveis que ia alterar as árvores, insetos e animais, pra se os EUA fossem atingidos, a gente soubesse o que esperar.

Os locais odiavam. Políticos brigavam a cada passo pra fechar. Então, mesmo que o projeto tivesse verba pra vinte anos, cortaram depois de um.

O lugar não é mais radioativo. Mas quando li que a vida selvagem foi alterada pra sempre, tive que ver com meus próprios olhos. Claro, caçar aqui era altamente ilegal. Mas isso era parte da graça.

Isso decidiu pra mim. Não fiquei puto porque o cervo correu. Fiquei feliz. Era só o aquecimento pro evento principal. Agora era caçada de verdade. Com sol ou sem sol, eu ia levar meu troféu pra casa.

Coloquei um timer de trinta minutos no relógio.

Depois, encaixei outra bala na câmara, troquei a bateria da luneta infravermelha e, por via das dúvidas, botei uma bateria nova na lanterna de luz vermelha. Quando caça à noite, tem que usar luz vermelha porque os bichos são menos sensíveis a essa cor.

Trinta minutos passaram, e o relógio apitou. Eu tava bem alto já. Joguei a espingarda no ombro e desci a encosta em direção ao sangue. Agora tava escuro.

Uma rajada gelada cortou e atravessou meu casaco. Esfreguei as mãos, soprando pra recuperar o tato, quando cheguei no fundo da encosta. Olhei pro sangue.

Era marrom-escuro e já tinha coagulado por causa do frio. Um cheiro podre subia, e vários tufos de pelo marrom tavam enrolados dentro. Sinais bons.

Sangue marrom-escuro com cheiro horrível significa tiro na barriga. Tiro na barriga significa morte rápida. Sinceramente, fiquei chocado que ele tenha conseguido entrar na mata. Achei que tava perto.

Várias gotas de sangue seguiam pra dentro da floresta. Segui, passando pelo cartaz de aviso, e entrei na mata.

Andei ao lado de mais umas gotas, depois o rastro cortou. Vasculhei ao redor, procurando continuação. O feixe vermelho da lanterna varria árvores que cresciam uma na outra, troncos torcidos em formas horrendas. Na minha frente, um bordo explodia com centenas de cogumelos vermelhos que brotavam na casca como uma erupção.

Do lado direito, vi uma folha com várias gotas de sangue. Estalei naquela direção por uns metros e dei num segundo poço grande de sangue.

Pelo jeito que tava acumulado, o cervo provavelmente parou ali pra descansar. Isso me derrubou. O fato de ele parar, descansar e continuar com um tiro na barriga era uma maravilha absoluta. Esse bicho era foda. Aí notei algo no sangue.

Mais tufos de pelo enrolados, mas de cor diferente da anterior. Esse pelo era vermelho. Pelo de um bicho completamente diferente. Como assim? As chances de outro bicho ferido cruzar exatamente esse caminho eram astronômicas.

Minha melhor aposta era pelo de raposa, mas eu sabia que era forçado. A textura tava errada. Fui mais fundo na floresta. Tinha que tá perto. Tinha que.

Claro, peguei mais rastro e segui uns metros. Parei quando algo brilhou na minha cara.

Esticada entre duas árvores a uns três metros de distância, uma teia de aranha tão grande que devia ter levado um exército pra fazer. Uma rede de padrões assimétricos espiralava pro centro. No meio, uma aranha gorda pendia, tremendo. A centímetros da minha cara.

Parecia que tava tendo um ataque. As pernas eram longas como dedos. A pele era translúcida, e dentro do corpo eu via veias azuis pulsando. Expandindo e contraindo.

Recuei devagar. E enquanto eu recuava, o corpo da aranha parou de tremer. Ficou só pendurada, imóvel, balançando leve no vento.

Aí algo explodiu debaixo dela e centenas, talvez milhares de aranhas bebês saíram correndo. Rastejavam umas por cima das outras pra sair debaixo da mãe. Depois se espalhavam, explorando a teia.

Sou mateiro há muito tempo. Vi muita coisa louca na natureza. Mas nada como aquilo. Aquilo me fodeu. Dei uma volta larga daquelas árvores e tentei esquecer o que tinha visto. Queria que o cervo aparecesse logo. Quanto mais floresta eu via, menos queria tá ali.

Continuei no rastro, pegando uma gota aqui, outra ali. E pra minha surpresa, tive que andar mais duzentos metros até uma clareira nas árvores. Aí achei.

O corpo do cervo tava deitado de lado, amontoado. Estudei a barriga, procurando subir e descer. Mas tava parado. Finalmente, caiu morto. “Aí tá você”, sussurrei.

Um galho estalou atrás de mim.

Virei, varrendo a luz pelas árvores. Não tinha nada. Virei de volta.

Pelo lugar que acertei, qualquer outro cervo teria dobrado na hora, se não uns metros depois. Mas esse. Esse cervo viajou o equivalente a três campos de futebol com um buraco explodido no intestino. Era loucura absoluta.

Só podia assumir que os bichos dessa mata eram duros pra caralho porque as pessoas os fizeram assim. Pessoas impuseram forças que deviam ter tornado a vida aqui impossível. Eles deviam ter sido apagados. Mas em vez disso, se adaptaram. É o que a vida faz. Acima de tudo, quer existir.

De repente, senti um respeito imenso por aquele cervo. Depois senti culpa. Nunca devia ter vindo aqui. A vida desses bichos já era dura o suficiente sem eu meter o dedo. Lição aprendida. De novo, o pai tava certo. Quanto mais velho eu ficava, mais percebia isso.

Porém—

Já que eu tava aqui, e já que o cervo tava morto, não devia eu fazer o melhor pra honrar ele? Comemorar a perseverança contra todas as probabilidades? A resposta natural parecia sim. Ia levar a cabeça pra casa e pendurar na parede pra todo mundo ver.

Entrei na clareira e, enquanto me aproximava, revirei a mochila atrás da serra de osso. Como não ia esviscerar o cervo inteiro, não ia demorar. Só precisava da cabeça.

Antes de achar a serra, a lanterna piscou um pouco, o que me surpreendeu. Tava com bateria nova. Por sorte, tinha reservas se precisasse.

Parei em cima do cervo e senti algo estranho no jeito que tava deitado de lado. Algo não natural. Aí percebi que não tava deitado de lado. Nem tava lá. Só a pele.

A pele do cervo tava jogada em cima de uma pedra, criando ilusão de volume, mas o corpo tinha sumido. Sumido. Dava pra ver que as bochechas tavam ocas, a barriga esticada na pedra como cobertor numa cadeira, e as pernas enroladas embaixo como cordas. Meu coração pulou. O cervo tinha largado a pele.

Aí a luz piscou, apagou e morreu. Tudo escureceu. Tirei a lanterna da cabeça, cliquei o botão umas vezes, depois bati nela. Nada.

Precisava daquelas baterias.

Ajoelhei, arranquei a mochila do ombro e tateei o zíper. Depois de umas passadas, os dedos roçaram metal. Abri e enfiei a mão, procurando o plástico das baterias.

Os dentes da serra de osso arranharam meu braço, mandando uma dor foda. Minha pele agora tava escorregadia de sangue. Forcei uma risada pra me acalmar. Tá tudo bem. Tudo certo. Só achar as baterias, colocar e vazar. Simples.

Algo se mexeu atrás de mim.

Levantei, arrancando a espingarda do ombro. Usei a luneta térmica pra varrer a área onde ouvi o barulho. Se tivesse algo, o calor do corpo ia aparecer em branco. Mas só via uma paisagem de árvores deformadas e um tapete de folhas mortas embaixo. Algo definitivamente tava lá. Só não queria ser visto.

Todos os meus sentidos entraram em overdrive. Meu cérebro tava louco, tentando absorver tudo de uma vez, tentando localizar a ameaça. Eu tava perdendo a cabeça.

Saí correndo na direção que achava que tinha vindo, usando a luneta da espingarda pra ver, o que tornava correr rápido impossível. Tropecei em raízes, galhos mortos, saliências no chão escondidas na minha visão. Aí meu pé bateu em algo sólido. Tropecei pra frente, largando a espingarda mas me segurando numa árvore. Minhas mãos esmagaram algo. Aí começou a se mexer.

Empurrei a árvore e me joguei no chão, depois comecei a tatear no escuro. Tinha que pegar a espingarda. Varri na frente, virei esquerda, varri mais, virei de novo e bati na coronha. Agarrei e levantei correndo.

Atrás de mim, algo também começou a correr. Quatro pernas batendo no chão com velocidade do caralho. Quando ouvi, girei e disparei um tiro de aviso pra mostrar que eu ainda era ameaça. Que ainda tinha poder.

Quando virei de volta, bati em algo pegajoso. Senti cócegas no rosto e no couro cabeludo. Olhei pra baixo. Dezenas de pontinhos brilhantes rastejavam na minha jaqueta. Tinha corrido direto na teia.

Bati no corpo e puxei o cabelo, lutando pra tirar. Mas os corpinhos grudavam como cola. Rasguei a mochila e tirei o cantil, depois joguei uísque na cabeça e espalhei. Quando o álcool entrou, a cócega parou.

Eu tinha perdido total controle da situação. Se continuasse correndo assim, ia morrer. Não conhecia essa mata. O que me caçava conhecia. Precisava de um lugar pra acampar. Precisava que viesse até mim.

Vasculhei. A uns metros, uma parede de pedra. Se encostasse as costas ali, cortava pelo menos um ângulo de ataque. Não era muito, mas era algo.

Corri pra lá. A posição era melhor do que imaginei. Porque tinha um buraco cavado na base. Um buraco que eu podia enfiar o corpo. E esperar.

Ajoelhei e entrei de costas, agarrado na espingarda. O espaço era apertado. Mas cabia. Me ajeitei. Depois varri fora do buraco, testando a mira.

Tava deitado do lado esquerdo, num ângulo foda. Mas tinha certeza que dava pra fazer algo. Assim que visse, mirava na cabeça e atirava. Já tinha gastado uma bala, então sobravam quatro. Quatro chances.

Tinha que ficar quieto agora. Sabia que a audição dele era afiada. Ouviu eu estalar uma folha a cento e cinquenta metros. Pra pegar de surpresa, precisava ficar parado como estátua.

Fiquei imóvel, olhando pela espingarda, ouvindo o tum-tum rápido do meu coração. Mal respirava.

De algum lugar à direita, ouvi folhas estalando. Vindo bem de fora do buraco. Queria mirar pra lá. Mas tinha medo que o movimento fizesse barulho demais. Em vez disso, esperei ele entrar na mira.

Os passos ficavam mais perto. Pra checar onde tava em relação a mim, avancei o olho devagar da luneta. Uma forma escura entrou no campo. Só que não era forma de bicho. Era forma de gente. Rastejando de quatro. A cabeça abaixada no chão, olhando algo além do buraco, mas rastejando bem na minha frente.

Mesmo a menos de sessenta centímetros, não percebeu minha presença. Fiquei imóvel. Tava quase direto na minha linha de tiro. Passei o dedo no gatilho.

Aí algo fez cócegas na linha do cabelo, e perninhas minúsculas desceram no meio da minha testa. Quando a aranha chegou entre meus olhos, parou. O corpo brilhava no canto da visão. Meu reflexo gritava pra mão bater, esmagar. Mas isso significaria morte quase certa pra mim. Tinha que ficar perfeitamente parado.

Enquanto a criatura humanoide rastejava direto na frente do cano, a aranha subiu na ponta do meu nariz, depois desceu por um fio. Pernas como agulhas roçaram meus lábios e andaram, explorando a carne mole ao redor da boca. Não mexi um músculo. Desceu pelo queixo, pelo pescoço e entrou na frente da camisa.

Fora do buraco, a criatura olhava pro lado esquerdo. Depois parou, como se tivesse captado algo. As orelhas tremiam. Minha arma agora mirava longe demais pro direito. Tava tão congelado de medo, tão paralisado, que não ousava me mexer. Tava perto demais. A cabeça virou pro buraco, só uns centímetros. Segurei o ar nos pulmões com força. Aí virou mais um centímetro, e mais um, e olhou direto pra mim. Bem dentro do buraco.

Aí virou pro outro lado e rastejou pra longe, me mostrando as costas. Devia tá me caçando pelo som.

Deixei ele se afastar. Aí voltei o olho pra luneta. Lá tava. Bem na mira. Deslizei a retícula na nuca. O pescoço rolou pro esquerdo. Segui. Esperei. Depois de uns segundos parado, o dedo tocou o gatilho e começou a apertar. Algo afiado picou meu peito.

A retícula desviou e disparei fora do alvo. A cabeça girou pra trás, direto pra mim. Foi a primeira vez que vi direito.

Tava usando a minha cara.

Minhas mãos tremiam enquanto alinhava a retícula de novo, bem entre os olhos, e disparei a segunda bala. Ele desviou pro direito, pulou de volta e avançou.

Disparei a terceira.

Cortei pro esquerdo, como se soubesse exatamente quando eu ia atirar antes de eu puxar o gatilho.

Chegou a um metro e meio de mim.

Mirei direto na cabeça e apertei a última bala enquanto ele pulava do chão. Caiu de cabeça dentro do buraco, tremendo em cima de mim. Aí parou de tremer, e o corpo ficou muito parado. Um calor começou a vazar na minha camisa. Tava sangrando.

Lutei contra o peso morto e finalmente empurrei o suficiente da abertura pra me espremer pra fora.

Fiquei de pé, depois dobrei e vomitei. Aí as pernas cederam nos joelhos e desabei no chão. Tive que me esforçar pra levantar de novo. Uma pressão crescia na cabeça. Parecia que meus olhos iam explodir.

Quando me estabilizei, levantei a espingarda pra ver o que tinha atirado. Tava de costas, e via que tinha acertado direto no coração, totalmente por acidente. Tiro de sorte. Milagre.

***

Agora tô sentado na cadeira de rodas perto da lareira. Na minha sala de caça. Exceto pela luz tremendo da fogueira, o quarto tá escuro. Por causa das enxaquecas, é tudo que meus olhos aguentam.

Fogo tem um jeito engraçado de pintar um quarto. Tô notando coisas nas paredes que não via há anos.

O fogo brilha nos olhos escuros dos meus troféus empalhados. Reluz no metal brilhante da minha primeira espingarda. Reflete nas molduras das fotos de caçadas antigas. Tudo isso representa os bons tempos. Esse quarto é uma extensão de mim. Essas relíquias são pedaços de mim. Enquanto olho ao redor, me pergunto se vou conseguir adicionar mais alguma coisa, ou se minha última adição já foi feita.

Minha saúde não tá boa nessas últimas semanas. Quando fui picado, injetaram um veneno que meu corpo não consegue combater.

Primeiro, perdi os movimentos finos das mãos, então não consigo mais mirar uma espingarda. Depois perdi o uso das pernas. Não consigo ir trabalhar nem sair de casa sem ajuda. E agora a visão tá indo embora. As enxaquecas são tão ruins que vejo em dobro. Quando atacam, parece duas picaretas batendo nas têmporas, sem parar.

Minha namorada parou de vir. Nem atende minhas ligações. Acho que acha tudo isso depressivo demais. Não dá pra culpar ela.

Talvez eu tenha trazido isso pra mim mesmo. Talvez seja castigo por tratar caça como jogo. Se for, aceito. Mas queria que meu arrependimento aliviasse a dor, nem que fosse um pouco. Tô doendo o tempo todo agora. É só no que penso.

Só fico feliz que o pai não tá aqui pra ver isso. Me dá vontade de chorar, pensando nele e nos dias que caçamos juntos. Quando fecho os olhos, ainda ouço a voz dele me levando pra caçar pela primeira vez. Ele era tão jovem. Nós dois éramos. Lá estávamos, de bruços, espiando por cima de uma árvore morta e estudando um cervo. Era uma beleza.

Eu tinha a espingarda nele, e sentia ele sussurrando no meu ombro, dizendo exatamente onde mirar, exatamente como respirar. Pra ficar calmo. Meus dedos tremiam tanto que mal segurava a espingarda. Mas ele disse que tava tudo bem. Disse pra não ter medo, porque o que a gente fazia era parte de um ciclo. Era um ato de violência, mas seria seguido por um ato de amor. Quando eu tomasse a vida do cervo, ele disse, nossa família ia ter comida por seis meses.

O pai se foi há alguns anos, mas ainda fala comigo. O som da voz dele tá tão claro na minha cabeça agora. Me conforta. É como ouvir as palavras de um anjo.

Mas o que ele pensaria de mim agora? Todos esses erros que cometi? Essas cabeças de troféu na parede? Me perdoaria?

Bem na minha frente tá pendurada a minha própria cabeça. Meus três olhos mortos e frios me encaram de volta. Zombam de mim e de como vivi a vida. Um paradoxo doentio. Parece que a natureza tá dando a última risada. O que o pai acharia disso?

Às vezes, nem consigo explicar pra mim mesmo por que faço algumas das coisas que faço. Olho pra dentro, mas as respostas ficam num lugar fundo e escuro demais pra eu alcançar. Ou talvez eu só não queira olhar.

De algum jeito, acho que as coisas vão se ajeitar do jeito que devem. Talvez minha dor suma logo. Talvez eu veja o pai de novo. E até lá, talvez eu tenha encontrado algumas respostas pra ele.

Aí talvez ele consiga me perdoar no coração. Vou dar um abraço nele, e dizer o quanto sinto. Que ele tava certo sobre tudo. Aí, finalmente, a gente pega as espingardas e vai caçar juntos de novo.

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