domingo, 9 de novembro de 2025

Algo Estava Batendo Debaixo do Meu Barco

A gente passava a maior parte dos verões na casa de praia da minha avó, no lago. Ela vivia pedindo pra gente ir mais vezes desde que o vovô morreu no ano anterior, mas era foda pros meus pais tirarem folga do trampo por mais de um dia ou dois de cada vez. A semana que a gente passava na casa dos avós era a única férias de verdade que qualquer um de nós tinha no ano inteiro.

Minha parte favorita daqueles verões era quando o vovô me levava no barco à noite. Eu amava o jeito que a água ficava no escuro, e a gente sempre pegava um monte doido de bagre. O melhor, porém, era o silêncio.

Eu não tinha permissão pra tirar o barco sozinho, como se eu conseguisse.

Uma noite, depois de passar o dia andando pela cidade, comendo em restaurantes locais e fazendo compras, meus pais e a vovó capotaram cedo. Eu fiquei acordado mais uma hora ou coisa assim, olhando o lago da margem, ouvindo as ondas batendo na areia e desejando poder tirar o barco.

Notei o velho barracão do vovô, bem do lado do cais. Ele nunca me deixou entrar lá quando eu era criança, dizendo que era perigoso. Mas, como eu não era mais criança, resolvi eu mesmo achar a chave do barracão numa das gavetas da cozinha e dar uma fuçada.

Eu torcia pra ter um barco a remo ou um caiaque. Puta merda, até um boia inflável daria pro gasto. Eu só queria fazer a única coisa que eu realmente curtia no lago.

Abri o barracão e logo entendi por que o vovô queria que eu ficasse longe. Tinha objeto cortante e ferramenta pesada pra caralho em todo canto. Lá no fundo, vi uma lona azul cobrindo um troço grande. Dei uma espiada por baixo e sorri.

Arrastei o velho barco a remo de madeira que encontrei pra fora do barracão e pra margem. Olhei pra trás, pro chalé, pra ter certeza que todo mundo tava dormindo, e vi que as luzes tavam todas apagadas, exceto a da varanda.

Empurrei o barco pra água e comecei a remar. O chalé sumiu atrás de mim enquanto eu ia cada vez mais longe. Logo, tudo o mais sumiu no céu noturno, e o único som era das ondinhas batendo no barco e dos insetos cantando.

Deitei de costas e deixei o balanço suave do barco me relaxar enquanto eu olhava as estrelas brilhando espalhadas pelo céu azul-escuro. Por um momento, todas as preocupações que eu tinha na época sumiram. Fechei os olhos e respirei fundo, desejando poder ficar ali pra sempre…

Toc, toc.

Foi leve no começo. Tão leve que eu pensei se uma onda não tinha empurrado um galhinho contra o lado do barco. Ignorei por um instante e tentei me concentrar de novo no som das ondas, mas a batida voltou mais alta.

Toc, toc.

Sentei e vasculhei a área pra achar de onde vinha o som, mas não vi nada suspeito. Pensei se não tinha algo preso debaixo do barco.

Toc, toc.

Meus olhos fixaram no meio do barco, onde parecia que o som tava saindo. O barco tremeu um pouco quando me movi pro centro. Ajoelhei e encostei o ouvido no fundo.

Toc, toc.

Caí pra trás, quase virando pro lado, mas consegui me equilibrar. Ficou em silêncio por uns minutos. Pensei que o que quer que fosse tinha se soltado, ou, Deus me livre, nadado embora. Mexi no assento, percebendo que tava com medo de me mexer.

Toc, toc, toc, toc, toc, toc…

Peguei o remo e enfiei fundo na água enquanto a batida continuava. Tentei remar por uns segundos antes de perceber que não tava me movendo. O barco ficou parado, como se tivesse enroscado em algo. Remei com toda força, tentando soltar, mas nada.

A batida parou por um momento.

Toc, toc.

Algo espirrou a uns metros do meu barco. Não vi, mas o que quer que fosse era grande, pelo menos do tamanho de um bagre grande. Me movi pro lado oposto do barco e trouxe os joelhos pro peito. Abaixe o rosto pros joelhos e comecei a rezar.

Toc, toc.

“Ele quer que você pergunte quem é”, disse uma voz.

Minhas mãos tremiam, e a respiração acelerou. Não queria erguer a cabeça, mas sabia que não ia conseguir me defender se não fizesse. Respirei fundo antes de erguer a cabeça e ver uma figurinha pequena do outro lado do barco. Era um menininho, de uns 7 ou 8 anos, com roupa encharcada como se tivesse nadado até o barco e subido.

“Que porra você tá fazendo?”, perguntei, a voz tremendo mais do que eu esperava.

Toc, toc.

“Ele quer que você pergunte quem é”, o garoto repetiu. O rosto dele não mostrava emoção nenhuma.

As batidas voltaram, aumentando de velocidade e volume a cada vez.

Toc, toc, toc, toc, toc…

Toc, toc, toc, toc, toc…

“Pergunte quem é”, acho que o menino disse, embora eu mal conseguisse ouvir.

Tampei os ouvidos, mas não parou o som. Era como se a batida estivesse dentro da minha cabeça.

Toc, toc, toc, toc, toc…

Toc, toc, toc, toc, toc…

“Quem é?!”, gritei.

Parou…

Abri os olhos e vi que o menino tinha sumido. O lago tava calmo. Vasculhei a área, mas não vi sinal do menino nem de ninguém. Respirei aliviado, escolhendo acreditar que tinha imaginado tudo.

Coloquei o remo na água e comecei a remar. O barco avançou, me permitindo relaxar um pouco.

Eu tava a poucos metros da margem quando o barco parou de repente, quase me jogando pra frente. Caí enquanto o barco balançava violentamente, como se estivesse numa tempestade braba. A água ao redor borbulhava como se estivesse numa panela fervendo.

Gritei o mais alto que consegui. O barco parou de balançar quando a água se acalmou. Vasculhei a área por mais um momento quando notei algo pálido se movendo debaixo. Quase rompeu a superfície antes de afundar de novo.

Algo bateu no fundo do barco, e vi a silhueta pálida se mover pelo outro lado. Aconteceu várias vezes antes de eu perceber que tinha mais de uma coisa na água.

Todas pararam ao mesmo tempo e flutuaram logo abaixo da superfície.

Contei sete delas. Eram de cores diferentes, mas todas pareciam tufos de alga ou alguma vegetação fina e esvoaçante.

Uma por uma, romperam a superfície, e percebi que o que eu via era cabelo preso a algumas das crianças mais pálidas que já vi.

Só as cabeças flutuavam acima da água, e todos os olhos fixavam em mim. Fechei os olhos com força, torcendo pra que fosse um pesadelo, mas quando abri de novo, as crianças ainda me encaravam. Meus lábios tremiam enquanto lágrimas caíam dos meus olhos.

“Não chora, sr. Bryson”, disse uma menininha de cabelo escuro, que nadou mais perto do barco. “Eu fiz tudo que você mandou.”

“Conta outra piada de toc toc, sr. Bryson”, disse um menino. “Isso vai te fazer se sentir melhor!”

Todas as crianças gritaram “É!” em uníssono.

“Eu não…”, comecei.

“Outra piada de toc toc!”, gritaram de novo.

“Eu não sei nenhuma”, disse, a voz tremendo.

“Sabe, sim”, disse a menina de cabelo escuro antes de se aproximar mais do barco até bater no lado. Os dedinhos dela se enrolaram na borda enquanto ela se puxava pra cima e olhava fundo nos meus olhos. Só agora eu via, mas os olhos dela eram azul-claros, como quando um cachorro tem catarata. Veias roxas serpenteavam pela pele. Ela usava um macacão azul e sapatos rosa, ambos cobertos de lama e alga.

“Você contou uma pra gente antes de amarrar a gente num saco e jogar no lago”, disse ela.

Minha boca se abriu, e a respiração parou.

Toc, toc.

As crianças nadaram pro barco e subiram. Tentei me encostar num canto, mas elas invadiram o barco em questão de minutos. Senti as mãos frias e úmidas delas cobrirem meu corpo enquanto eu tentava gritar, mas nenhum som saía da minha boca…

Quando acordei, o sol tava no meio do céu. Cobri os olhos antes de sentar e enxugar o suor da testa. Vasculhei a área por qualquer sinal do que tinha acontecido na noite anterior, mas não achei nada.

Respirei um pouco pra me acalmar e organizar os pensamentos antes de remar de volta pra margem. Tinha que ter sido tudo um sonho, pensei enquanto arrastava o barco do vovô pra terra.

Ao colocar o barco de volta onde achei, notei uma pequena gravação no lado. Era o nome do vovô, Henry, com o ano 1973 embaixo. Imaginei que foi quando ele e o bisavô construíram o barco.

Comecei a ir pra entrada do barracão quando notei algo debaixo de uma das bancadas laterais. Era um saco de aniagem grande. Tinha vários.

Olhei mais de perto e vi algo rosa e branco encostado na parede. Tirei um sapatinho pequeno, enterrado numa camada de poeira. Larguei na hora. Tampei a boca enquanto me ajoelhava mais perto, percebendo que era o mesmo sapato que a menina usava no barco…

Passei a maior parte daquela semana fuçando o barracão e o antigo escritório do vovô enquanto meus pais e a vovó dormiam. O vovô era bom em esconder coisas de todo mundo, até da vovó. Consegui achar uma chave na escrivaninha dele que abria um cofre enterrado no fundo do barracão, debaixo de caixas de revista.

Dentro, encontrei fotos de crianças, a maioria das quais eu reconheci do barco. Tinha recortes de jornal e cartazes de crianças desaparecidas, que imaginei que ele guardava como troféus. Tinha coisas ainda mais tristes lá dentro, como pulseiras e braceletes.

Fiquei pensando por um tempo se valia a pena contar pra polícia, já que provavelmente não sobrava nada dos corpos. Pelos recortes de jornal, os corpos tavam debaixo d’água há décadas.

Não conseguia tirar os rostos delas da cabeça. Via elas, encharcadas e pálidas, toda vez que tentava dormir. Meus pais notaram a mudança em mim, embora eu negasse. Depois de um tempo, jurei que via as crianças em todo lugar que ia. Não aguentava mais…

Eles dragaram o lago algumas semanas depois. As únicas coisas que restavam eram esqueletinhos minúsculos de alguns deles. Alguns foram identificados por registros dentários. Uma delas era a menininha dos sapatos rosa.

Vi a família dela na TV. Falaram o quanto ela era uma alma linda e que monstro o meu avô era. Não dá pra discordar.

Minha avó nunca mais nos convidou pro lago. Não sei como ela se sentiu com o vovô depois disso, mas sei que odiava a atenção que aquilo trouxe.

Sinto falta daqueles verões no lago, mas sei que não seria a mesma coisa sabendo o que o vovô fez com tantas crianças, e fico muito feliz que ele nunca tenha me contado uma piada de toc toc.

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