sábado, 1 de novembro de 2025

Não tem luz lá dentro...

Quando eu tinha treze anos, saí pra pedir doces ou travessuras com meus dois últimos melhores amigos, Stilly e Paul. A gente não tinha ido no ano anterior porque, quando tínhamos onze, nosso outro melhor amigo, Mark, sumiu. 

Tinha rolado uma briga naquela noite — a gente devia voltar pra casa até as nove, e o Mark queria continuar batendo de porta em porta pra pegar mais doce. O Stilly teria topado qualquer coisa, mas eu e o Paul éramos certinhos. A gente quase nunca se metia em encrenca, e isso incluía ficar na rua depois do horário. Eu lembro de pedir pro Mark voltar com a gente, mas ele e o Paul tinham ficado se xingando, e ele ainda tava puto. Então ele mostrou o dedo do meio pra gente, fez um barulhinho de galinha e foi embora na direção oposta do nosso bairro. 

Ninguém nunca mais viu ele depois disso.

Procuraram por meses, claro. Polícia investigou, os pais dele colaram cartazes e apareceram em programas de TV locais, essas coisas. E eu fui interrogado várias vezes porque era o único que tinha recebido qualquer mensagem dele. Era no meu celular — meus pais tinham acabado de me dar dois meses antes, quando eu comecei o sexto ano, e o Mark era o único amigo meu que também tinha um. Naquele Halloween, eu esperei até as dez pra mandar uma mensagem pra ter certeza que ele tinha chegado em casa. Foi quando eu peguei o celular que ele acendeu com uma mensagem curta do número dele.

Encontrei uma Casa nova. 

Eu não fazia ideia do que ele tava falando, e mandei mensagem de volta perguntando. Nada. Perguntei se ele tinha chegado em casa, mas nunca mais veio nada. Só no dia seguinte de manhã que eu soube que algo tava realmente errado e contei pros meus pais sobre a mensagem.

Desde então... bom, tudo parecia vazio. Nossos pais não queriam que a gente saísse no Halloween do ano seguinte, e a gente não brigou muito pra ir. Até esse ano, foi meio sem graça. Minha mãe praticamente me empurrou porta afora, talvez achando que sair com os outros amigos de novo, mesmo no Halloween, ia me ajudar a superar tudo. No fim das contas, eu só andava quieto enquanto o Paul e o Stilly discutiam sobre algum seriado que tavam assistindo.

A gente parou em algumas casas e pegou doce, sim, mas sem combinar nada, nosso caminho evitou alguns dos nossos points antigos e entrou em bairros que eu conhecia, mas nunca tinha ido pedir doce. Olhando pro céu, eu franzi a testa. Tá escurecendo, e eu sabia que meus pais queriam a gente de volta logo.

“Então, vocês querem começar a voltar pelo caminho que a gente...”

“Olha isso aí. É novo.”

Eu olhei pro Paul e depois pro que ele tava encarando. Era uma casa grande e velha, agachada no canto mais distante do bairro que a gente tava saqueando sem ânimo. Eu levantei a sobrancelha pra ele.

“Essa casa parece velha pra caralho.”

O Paul deu de ombros pra mim. “Pode ser, mas eu te juro que ela não tava aqui da última vez que passei por aqui. Nunca teve.” 

Eu olhei pro Stilly, que copiou o dar de ombros do Paul. “Tipo, eu também não lembro dela, Gillian. A namorada do meu irmão mora na rua de baixo, e eu nunca lembro de algo assim aqui.”

Franzindo a testa pra ele, eu continuei andando mais perto da casa, estudando o máximo que dava na penumbra que crescia. Eu também não lembrava dela, mas e daí? A casa não tinha brotado do nada como erva daninha. Parecia que tava ali há anos. 

“Talvez alguém tenha mudado ela de lugar? Tipo, eu tive um tio que mudou a casa dele pra outro condado quando ficou puto com meus avós. Tipo, mandou um caminhão mudar aquela porra toda.”

Eu assenti distraidamente enquanto continuava encarando a casa. “Tipo, talvez. Mas tá tudo crescido. Por que alguém mudaria ela pra cá há pouco tempo e depois não cuidaria do quintal nem nada? Parece tão...” Eu parei quando a porta da frente se abriu e alguém saiu.

Era o Mark.

“Jesus... É você mesmo?” O Paul já tava correndo na direção dele, e o Stilly não ficava muito atrás. Eu também tava andando pra frente, mas mais devagar. Parecia que eu tava me mexendo debaixo d’água, cada passo lento, flutuante e estranho, com um zumbido e pressão na cabeça e nos ouvidos. Eu quase cheguei onde o Paul e o Stilly tavam abraçando o outro garoto freneticamente antes de perceber que tava chorando. 

“... que porra, cara?”

“... te sequestraram?” 

“... você precisa de um médico do caralho ou algo assim? A gente pode chamar a polícia e...”

Eu estiquei a mão pra tocar nele, mas algo me fez hesitar. Ele tava sorrindo pra eles, até rindo um pouco, mas não respondia nada. E os olhos dele... quando encontraram os meus, pareciam estranhos.

Baixando a mão, eu dei um passo pra trás. “Onde você tava?”

O rosto dele ficou sério e ele me deu um aceno pequeno. Virando-se, ele gesticulou pra porta entreaberta que tinha acabado de sair. “Eu tava com ele.” 

Nas sombras além da porta, eu via uma forma se mexendo. Podia ser truque da escuridão, mas parecia um pedaço de preto se movendo contra o preto, tipo riscos animados apagando um pedaço da realidade. Meu cérebro torceu só de olhar, um medo febril subindo da barriga, tentando escapar num grito.

E aí o terror sumiu. Pelo canto do olho, eu notei vagamente o Paul e o Stilly fazendo o mesmo, ficando tensos enquanto começavam a recuar ou correr, só pra parar de repente e relaxar de novo. Uma parte de mim sabia que era errado, que tudo isso era errado, mas eu não conseguia agarrar o sentimento ou a ideia. Era tudo muito macio e escorregadio. E aí o Mark tava falando de novo.

“O nome dele é Sr. Krinkle. Essa é a Casa dele.”

Eu via as palavras na minha cabeça enquanto ele falava. Krinkle como papel amassado, mas com K. Casa com maiúscula, igual na mensagem dele dois anos antes. Tinha um peso quente nelas enquanto elas entravam no meu cérebro.

“Ele convida vocês pra entrar também.”

Algo em mim congelou. Eu ainda não tava com medo, mas a sensação de que algo tava muito errado cresceu mais forte enquanto o resto da minha capacidade de correr ou resistir fisicamente escorria. Provavelmente eu parecia calmo por fora enquanto via o Mark pegar a mão do Stilly e levar ele pra dentro da casa, fechando a porta atrás dele. Mas por dentro eu tava gritando.

Mesmo depois que eles sumiram, eu e o Paul não nos mexemos de verdade. Não falamos. Só ficamos ali como lápides nas sombras que aprofundavam, esperando... bom, esperando a nossa vez.

Meus pensamentos patinavam no meu crânio, terror correndo junto com meus instintos pra entender e sobreviver. Era mesmo o Mark? Parecia com ele e... sim, eu achava que era ele, embora ele tivesse mudado. Parecia maior e mais velho, igual o resto de nós, e tava vestindo roupas que eu nunca tinha visto ele usar. Não era fantasia, talvez, só um moletom escuro? Eu não tinha certeza, tudo tinha acontecido rápido demais.

A porta se abriu e o Stilly saiu, seguido pelo Mark. Num relance, pareciam os mesmos de quando entraram, mas não era verdade. O rosto do Stilly, os olhos dele, não eram mais macios, doces e inseguros. E quando ele sorriu, tinha uma dureza que não existia antes. 

“É foda, gente. Não se preocupem, não é tão esquisito quanto parece.” O Stilly já tava esticando a mão pra pegar o Paul quando o Mark parou ele.

“Ainda não. É cedo demais pra você. Eu faço. Só assiste.”

Eu tentei gritar, pra avisar o Paul ou implorar pro Mark, mas nada saía. O Mark pareceu sentir e olhou na minha direção antes de baixar os olhos e pegar o braço do Paul. Sem mais uma palavra, ele levou ele pra dentro, pro negócio preto que esperava lá.

O Stilly ficou do lado de fora, mas não fez mais aquela coisa nervosa de falar demais. Não disse uma palavra. Só me encarou com aquele sorriso filho da puta.

Foi a mesma coisa quando o Paul voltou. Eu era a única que sobrou, e quando o Mark atravessou o quintal até mim, eu senti minha garganta apertar enquanto tentava falar de novo. Já tava completamente escuro, e o rosto dele só dava pra ver vagamente na luz de um poste distante.

“Vem, Gill. Eu te levo lá dentro e mostro. Você precisa ver. É uma coisa do caralho.” Ele deu aquele mesmo sorriso duro que os outros usavam enquanto pegava minha mão.

Algo naquele momento, quando ele pegou minha mão, eu senti o controle sobre mim afrouxar só um pouquinho — o suficiente pra eu soltar uma pergunta sem sentido que eu não esperava.

“Por que tá tão escuro lá dentro?”

Parecia uma pergunta idiota e vaga que podia significar mil coisas, mas de alguma forma eu sabia o que queria dizer e o Mark também. A expressão dele já tinha mudado um pouco quando tocou meus dedos, e agora o rosto dele desabou numa tristeza tão vazia que eu quis abraçar ele apesar do medo.

Com o que pareceu um esforço enorme, ele encontrou meus olhos. “Porque... porque não tem luz lá dentro, Gill.” O Mark olhou de volta pra porta da casa, aberta e esperando como uma boca faminta, e depois pra mim. Ele apertou meus dedos com força. “Você precisa correr agora. Precisa correr e nunca mais voltar aqui. E se um dia você vir essa casa de novo, qualquer hora, qualquer lugar, corre pro outro lado.” 

Ele me soltou e deu um passo pra trás. Eu fui pedir pra ele vir junto, pra nós quatro escaparmos juntos, mas ele já tava balançando a cabeça e articulando “corre” sem som. O Paul e o Stilly já tavam começando a notar que algo tava errado, e ele virou pra parar eles. Eu percebi que tava livre do que quer que me segurava, meu corpo já recuando enquanto o Mark olhava pra trás uma última vez. Ele não disse nada, mas eu ainda senti na minha cabeça.

Corre. 

Então eu corri. Corri pra casa, e quando cheguei, passei meia hora histérica tentando convencer meus pais de uma versão das coisas que eles entenderiam e acreditariam. Eu já sabia que nada ia ajudar, mas ainda tinha que tentar. E pra honra deles, em uma hora já tinha polícia e pais lá no fim da rua, procurando nossos três garotos. Diferentes pessoas me interrogaram durante a noite, e quando o sol tava nascendo, meus pais me levaram pra lá de novo. 

Tinha pais chorando, encarando com raiva, frenéticos na dor esperançosa e brava. Tinha policiais e voluntários, todos com a mesma cara de cansaço e frustração. E aí tinha minha mãe e meu pai, que nunca mais me trataram exatamente igual depois disso.

Não que eu culpe eles de verdade. 

Porque o lugar onde a casa tinha estado tava vazio — nenhum prédio ou garotos. Só um lote vazio e crescido, sem sinal de ninguém além de umas garrafas de cerveja quebradas na beira da grama. Claro que tudo tinha sumido. Eu sabia que ia ser assim. Ainda assim, eu tinha que tentar, né? E eu tive que omitir as partes mais importantes pra eles acreditarem em qualquer coisa. 

Naquele momento, com eles fazendo tantas perguntas, querendo me acusar de algo mas sem ousar de verdade, eu quis gritar a verdade pra eles, por mais terrível e impossível que fosse. Mas eu sabia que não ia ajudar ninguém e ia piorar tudo pra mim.

Então eu fiquei quieta. E quando fiz dezoito, me mudei e fui pra bem longe. Tenho trinta e três agora, e vi a casa mais cinco vezes.

Toda vez eu faço a mesma coisa.

Paro antes de chegar perto demais. Levanto a mão num aceno pequeno — saudação e despedida tudo junto.

E aí eu corro.

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