sábado, 8 de novembro de 2025

Os passageiros começaram a chorar de repente ao olhar para o mar

Desci do ônibus de turismo e senti o cheiro do mar. As risadas dos outros passageiros se misturavam à brisa fresca enquanto eu olhava para o navio de cruzeiro que se erguia imponente sobre o cais. A excursão ao centro histórico tinha sido perfeita — comida local, lembrancinhas e dezenas de fotos, a maioria de gatos de rua. Eu mal podia esperar pelo jantar a bordo, quando o navio zarparia do porto e começaria uma viagem de sete dias pelo Atlântico em direção ao Caribe.

Depois de trocar de roupa e me refrescar na cabine, fui para o salão de jantar principal. Um anúncio informou que a saída estava atrasada uns dez minutos porque um casal de passageiros tinha se atrasado. Putz, a segunda vez no cruzeiro que isso acontecia. Passei por passageiros com cara de irritados e cheguei ao salão. Era um restaurante lindo, que se estendia por toda a largura do navio e tinha três andares de altura. Decorado com painéis brancos, completados por enfeites azuis nas mesas e nos lustres. A maioria dos passageiros já estava sentada, enquanto eu fui levado a uma mesinha para dois no fundo do salão. Não dava pra ver nenhuma janela, mas isso não me incomodava porque a comida era ótima. As outras pessoas conversavam, riam e curtiam as férias.

Terminei o prato principal e estava ansioso pela sobremesa quando notei, pela primeira vez, um casal sentado perto de uma janela. A janela estava um pouco suja e tinha cantos arredondados, mas o que chamou minha atenção foi que eles estavam chorando. Não pareciam particularmente tristes, mas lágrimas escorriam pelo rosto deles. Sem dizer uma palavra, os dois se levantaram ao mesmo tempo e saíram. Logo depois, ouvi gritos e barulhos altos do lado de fora do salão, mas não dei muita bola e terminei minha sobremesa.

Não vi o casal depois disso e fui para uma salinha de biblioteca num dos conveses inferiores. No caminho, vi vários membros da tripulação conversando baixinho, com cara de nervosos. Depois de me sentar com meu livro — um romance policial dos anos 30 —, senti um leve arrepio. Tinha certeza de que vinha de uma sensação geral de desconforto dos tripulantes por perto. Quando notei dois deles conversando, comecei a andar devagar na direção deles, fingindo olhar as prateleiras de livros. “Levaram eles pra sala de resfriamento no convés 3!”, ouvi um deles dizer, seguido de “Ouvi dizer que foi uma bagunça! Ainda bem que a gente não tava lá.” Depois eles saíram, me deixando curioso pra caralho sobre o que estavam falando. Perdi a vontade de ler e subi pros conveses abertos pra tomar um ar.

Subi as escadas, convés por convés, pensando nos dois tripulantes. Que tipo de bagunça era aquela? Por que a sala de resfriamento? Quando cheguei no topo da escada, indo pra porta que dava pro convés superior, uma mulher jovem abriu a porta e voltou pra dentro. Ou melhor, ela simplesmente atravessou a porta sem nem levantar a mão; o corpo dela bateu nas portas e as empurrou enquanto andava devagar pra frente, como um objeto imparável. Ela olhava fixo à frente, sem notar ninguém ao redor, mas eu vi logo as lágrimas. Não eram lágrimas pequenas, mas um rio escorrendo pelo rosto. Ela nem tentava enxugar, só continuava andando em direção à escada, olhando pra frente. Passou devagar por mim. Achei que ia voltar pra cabine, mas de repente ela parou no meio da escada.

Ela virou devagar com um sorriso — não um sorriso feliz, mas daquele tipo que você dá pra uma criança chorando, cheio de compaixão e pena. De repente, ela se curvou e bateu a cabeça com uma força enorme contra a borda de um degrau. Sangue cobriu a escada, e o som do crânio dela se partindo ecoou pelas paredes de aço do poço da escada. Eu corri. Deveria ter chamado um tripulante ou tentado fazer primeiros socorros, mas o medo era tão grande que saí correndo pro convés aberto, mas o que vi lá me fez parar na hora. Uns cinco passageiros estavam do lado de fora, mais uns dez jaziam no chão cobertos de sangue. Os cinco sorriam com lágrimas escorrendo pelo rosto. Um deles segurava uma barra de aço fina e quebrada, mas antes que eu visse o que ele pretendia fazer com aquilo, gritei e corri de volta pra dentro, passando pela mulher no chão e indo direto pra minha cabine.

Bati a porta com força e me sentei, enterrando o rosto nas mãos e soluçando. Examinei a cabine: tudo limpo e arrumado. Queria ter uma varanda ou pelo menos uma janela, mas só encarei a parede. O balanço lento do navio era reconfortante, e eu me acalmei um pouco. Fiquei sentado no chão por o que pareceram horas até criar coragem pra espiar do lado de fora da cabine de novo.

Abri a porta e olhei pelo corredor. Silêncio. O corrimão na lateral do corredor tinha manchas vermelhas num ponto, das quais desviei o olhar rapidinho. Fui pro convés dos botes salva-vidas procurar um tripulante. Subi um convés e, logo antes da porta que dava pros botes, parei. Letras escritas com sangue seco cobriam a janela de vidro da porta. “Não olhe pra baixo”, era tudo o que dizia.

Hesitei e não empurrei a porta. Virei e vi uma mulher me olhando a poucos metros. Olhei direto pros olhos dela e, graças a Deus, não tinha lágrimas, só um olhar assustado. Percebi na hora que o olhar dela também foi direto pros meus olhos pra checar se tinha lágrimas. “Você olhou?”, ela gritou pra mim. Disse que não. Quando ela se aproximou, perguntei se sabia o que tinha acontecido. “Passageiros por todo o navio começaram a chorar e se machucar! Não sei o que dá neles. Notei primeiro quando tava conversando com um cara no átrio principal, aí ele olhou pela janela e começou a chorar como se alguém tivesse dito que a família dele morreu. Mas ele não parecia triste por ele, parecia triste por outra pessoa. Cheio de compaixão. Aí ele… ele foi e…” Ela começou a soluçar, mas não precisou continuar. A gente sabia o que acontecia com todo mundo que olhava.

Depois que ela se apresentou como Sarah, decidimos ir mais pra proa do navio atrás de tripulantes que talvez conseguissem chamar ajuda. Já era estranho ninguém ter aparecido; ainda estávamos perto o suficiente da costa pra helicópteros ou guarda costeira nos alcançarem. Tentamos usar os celulares, mas sem sinal. O Wi-Fi do navio, que a companhia anunciava como um dos mais rápidos do mar, tinha sumido. Enquanto andávamos, passageiros com lágrimas escorrendo entravam do convés dos botes, mas a gente nunca olhava pra eles por muito tempo.

Logo antes de chegar na proa, vimos um tripulante em pânico indo pros botes. Ele nos viu e fez sinal pra gente ir. Mesmo que os passageiros chorando nunca prestassem atenção na gente, ele sussurrava: “Eles olharam! Todos os oficiais na ponte olharam!”. O medo apertou mais. Se não tem mais ninguém na ponte, não dá pra falar com o mundo lá fora nem pra dar meia-volta. O tripulante, que se apresentou como Jim, disse que ia tentar descer um bote salva-vidas pra fugir usando uma venda nos olhos.

Com um aceno de aprovação, nos preparamos pra sair pro convés dos botes, amarrando uma manga rasgada na cabeça como venda. Jim foi na frente e empurrou a porta. Ar gelado bateu no nosso rosto como mil agulhas. Andamos devagar pra frente e depois pra esquerda. Depois de uns sete metros, chegamos num guindaste de bote. Jim puxou uma alavanca, e o bote começou a descer do alto das nossas cabeças até o nível do convés pra gente entrar. Logo antes de tocar o chão, uma parte do braço do guindaste que descia do teto bateu na minha cabeça e arrancou minha venda. O impacto me jogou no chão e me deixou zonzo. Ouvi os outros gritarem algo pra mim, mas eu tava tonto e só ouvia as vozes como um trovão distante. Abri os olhos.

Vi as ondas lá embaixo. Uma visão linda, com o luar refletindo nas ondas. Primeiro não vi nada, depois notei movimento debaixo d’água. Achei que eram tubarões ou golfinhos pelo tamanho, mas quando meus olhos se ajustaram ao escuro, percebi. Corpos humanos, se movendo junto com o navio. Um dos corpos esticou a mão pro casco e começou a escalar, de algum jeito se agarrando na superfície perfeitamente lisa do navio. O corpo parecia afogado há muito tempo, mas subia com a boca escancarada num sorriso largo.

Coitadinho, pensei. Deve estar com tanto frio e fome. Senti pena dele, como se tivesse encontrado um bicho morrendo na estrada. Lágrimas começaram a escorrer pelo meu rosto. Eu sentia que ele tava com tanta fome, passando fome havia anos. Se ao menos eu pudesse dar algo pra ele comer. As lágrimas não paravam. Ele chegou no topo e sorriu pra mim. Se ao menos eu tivesse comida comigo. Talvez eu pudesse dar algo meu? Ele precisa do meu corpo mais do que eu. Tá tão fraco e desesperado por comida. Sorrindo tão amigável. A borda afiada do corrimão chamou minha atenção. Se ao menos eu pudesse dar algo pra ele comer. Eu tava na frente do corrimão, erguendo devagar a cabeça. Queria rachar meu crânio pra dar comida pra criatura. Me encheu de alegria saber que ele finalmente ia poder comer. Quando os músculos do meu pescoço se prepararam pra bater pra baixo, uma mão tentou agarrar a parte de trás da minha camisa. Não me incomodou, eu tava concentrado no corrimão.

De repente, a mão me agarrou e me puxou com força pra trás; era a Sarah, me arrastando pro bote. O sorriso da criatura sumiu, e ela abriu a boca escancarada revelando fileiras de dentes afiados. O olhar dela de repente se encheu de uma raiva incompreensível. Ela deu um salto pra frente, mas o bote já tinha descido. Pareceu uma eternidade até chegar na linha d’água, mas assim que tocamos a água, parei de chorar. Confusos e apavorados, remamos em direção à costa enquanto o navio sumia devagar no horizonte.

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