domingo, 9 de novembro de 2025

Eu morava lá no norte, e é por isso que eu me mudei

Eu morava numa cidadezinha lá no norte – tipo, norte mesmo, onde neva metade do ano. Nasci lá e fiquei até os treze anos. Meu pai era pescador, saía pro mar por semanas seguidas, e minha mãe ficava em casa cuidando de mim. Não foi a melhor infância, mas eu tinha pais que se importavam comigo.

O motivo de a gente ter saído quando eu tava no sétimo ano foi um dia que eu tava voltando da escola no inverno. Quando você mora no subártico, as noites ficam mais longas. Eu fiquei um pouquinho mais na escola pra ver a aurora boreal. Sempre ficava olhando pela janela da sala, tanto que às vezes o professor precisava me mandar prestar atenção na aula.

Eu tava olhando as luzes no céu na praia perto da escola, mas aí vi um par de olhos mais perto da areia. Eles tavam me encarando direto. Minha mãe e o professor, o Sr. Lacroix, às vezes me falavam que os ursos polares apareciam naquela época do ano, mas eu achei que cinco minutos depois da aula não ia dar nada.

Eu não corri. Não de cara. Fiquei olhando pros olhos dele e fui recuando devagar. Meu coração já tava disparado, meus olhos vasculhando tudo em volta atrás de uma saída.

Era assim na minha cidade: o pessoal deixava o carro destrancado caso alguém topasse com um urso. Eu vi uma caminhonete; uma picape preta com rodas grandes, e quando cheguei perto o suficiente, finalmente disparei pra dentro e bati a porta com força. Travei as duas portas assim que entrei, e o urso tava a uns três metros quando eu consegui; arranhando a porta.

Comecei a chorar, encolhido no banco de trás dessa caminhonete com esse urso polar rondando do lado de fora. Só pensava: “Quero ir pra casa. Quero ir pra casa. Não quero morrer. Por que esse urso não vai embora?”

O urso branco tava com fome, e quando não tava batendo na porta, ficava me encarando pela janela. Os olhos dele refletiam a aurora boreal e jogavam a luz de volta pra mim. Meu pai tava no mar pescando e minha mãe em casa, sem conseguir chegar lá; a neve tava alta e mais ainda caindo naquela noite.

Eu sabia que não ia conseguir correr mais que o urso. Tive sorte de achar a caminhonete e de ter tido o bom senso de recuar devagar pra não fazer ele disparar na minha direção. Não sabia de quem era a caminhonete, mas fiquei feliz que tava ali. Devia ser de algum professor, seja lá qual fosse.

Então fiquei preso ali, trancado numa caminhonete com um urso polar me encarando e esperando eu sair. Ele era paciente. E eu sabia que não podia esperar tanto quanto ele.

Parecia uma eternidade dentro daquela caminhonete por horas, só vendo o urso me encarar do lado de fora. Ele sentava ali, esperando. Era isso que mais me apavorava: ele sentava e esperava, como se tivesse todo o tempo do mundo.

Ele fez um barulho, podia ser um bocejo ou um rosnado, mas eu ouvi o que parecia bem com:

“Sai… daí…”

Eu tava com muito frio, com muita fome, dentro daquela caminhonete. Tentei girar a chave, mas o motor só engasgou. A caminhonete tava congelada dura. Tentei me aquecer com as camadas de roupa e ficava olhando pela janela pro urso.

Um dos professores, o Sr. Lacroix, saiu por uma porta lateral da escola. Mas ele congelou ao ver o urso. Correu de volta pra dentro, mas o urso disparou atrás dele, arrombando a porta.

Forcei as pernas pela neve que batia no joelho. Cada passo parecia mais pesado que o anterior, mas eu não podia parar. Me obriguei a correr até chegar em casa e entrar. Minha mãe me agarrou e, claro, perguntou onde eu tava.

Tudo que consegui dizer pra ela foi: “Urso.”

Na manhã seguinte, minha mãe não me deixou ir pra escola por causa da neve e depois de ouvir no rádio local que o Sr. Lacroix tinha morrido no ataque do urso. Uma parte de mim se sente culpada por ter ficado lá fora, porque ele teria chegado na caminhonete dele em segurança e eu estaria em casa.

Todo mundo teve que esperar até a polícia espantar os ursos da escola, e os que conseguiam capturar eram levados pra um centro até poderem ser soltos. Mesmo depois que os ursos foram embora, as estradas ainda precisavam ser limpas. Tudo levou meses, e só em junho as pessoas voltaram a circular nas ruas e estradas. Fiquei aliviado, mas também assustado porque eles podiam voltar no inverno de novo.

Fico feliz de estar vivo, e pouca gente teria sobrevivido no meu lugar. Quando chegou o verão, meus pais e eu decidimos nos mudar. Meu pai virou operário de armazém na cidade grande, e minha mãe trabalhava no shopping. Mesmo sentindo falta dos amigos do fundamental, fiz novos amigos no ensino médio e na faculdade.

Não acho que eu conseguiria ter ficado naquela cidade com ursos aparecendo todo inverno. Sempre que neva, eu me lembro da minha casa antiga. Mas em algumas noites de neve, penso na aurora boreal e naquela noite que vi o urso me encarando.

Não acho que o urso era mau. Ele só tava fazendo o que precisava pra sobreviver. Isso não quer dizer que eu queira chegar perto de um de novo. Não tem muito mais o que eu dizer, a não ser uma coisa que ouvi sobre como lidar com ursos:

Se for preto, lute.

Se for marrom, deite no chão.

Se for branco, diga boa noite.

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