sexta-feira, 14 de novembro de 2025

O Coro de Ossos

Eu dava aula de música numa escola secundária rural pequena no oeste da Pensilvânia. É uma daquelas cidades que nem aparece na maioria dos mapas — uma única bomba de gasolina, dois diners e uma igreja cujo sino não toca desde os anos 80. Peguei o emprego porque era quieto e barato, e achei que uns anos de experiência cairiam bem no currículo antes de tentar algo melhor. Nunca imaginei que quieto pudesse significar perigoso.

O prédio em si é antigo. A ala principal é dos anos 1930, tudo de tijolo e quinas afiadas, daquele tipo que fede a poeira mesmo quando tá limpo. Mas a ala de música foi uma adição dos anos 60 — corredores estreitos, pisos tortos e, o mais notável, uma sala de coral no porão que ninguém gostava de usar. No meu primeiro dia, o zelador — um cara chamado Rick que parecia esculpido da mesma pedra do prédio — me disse: “Não desça lá depois que escurecer. A acústica não é certa.” Eu ri, achei que era piada sobre como o som ecoa em salas de concreto velhas. Ele não riu de volta.

As primeiras semanas foram tranquilas. Eu ensinava coral iniciante pros calouros, avançado pros veteranos e supervisionava ensaio de banda à tarde. Tudo bem. Os alunos eram legais — educados de cidade pequena, meio esquisitos, completamente normais daquele jeito rural. Mas aí chegou outubro, e foi quando as coisas estranhas começaram.

Começou com som. Eu ficava na minha sala depois da aula, corrigindo provas ou afinando instrumentos, quando ouvia um zumbido. No começo, achei que era algum aluno — alguém ficando até tarde pra treinar. Mas a melodia era precisa demais. Juntinha demais. Parecia várias vozes se misturando, suaves e perfeitas, harmonizando de um jeito que arrepiava a espinha. A música vinha de baixo — sempre da sala de coral no porão.

Numa tarde, desci pra conferir. As luzes lá embaixo piscavam como se não fossem trocadas há décadas. O ar cheirava a úmido, tipo pedra calcária velha e ferrugem. A porta da sala de coral tava entreaberta, então empurrei e gritei: “Alô? Alguém aí?” O som parou na hora. Nenhum arrastar de pés, nenhum sussurro, nenhum movimento — só aquele silêncio pesado que pressiona os tímpanos.

Eu devia ter saído dali, mas a curiosidade é foda. A sala de coral parecia normal: fileiras de degraus, um piano vertical quebrado no canto, estantes de partitura empilhadas num canto. A única coisa estranha era a temperatura. Gelado, como se o ar estivesse vazando de uma geladeira. Minha respiração saía em nuvens brancas, mesmo sendo quente lá em cima.

Aí eu vi — riscado no tijolo lá no fundo da sala, bem atrás dos degraus — dezenas de gravuras pequenas, todas num semicírculo arrumadinho. No começo, achei que eram iniciais — grafite típico de moleque entediado —, mas quando olhei de perto, vi que eram notinhas musicais minúsculas, cada uma cuidadosamente talhada na parede, formando pentagramas. Não era aleatório; era uma música.

Tirei uma foto no celular, pensando em perguntar pros alunos no dia seguinte. Talvez fosse alguma pegadinha antiga de veterano. Mas quando ouvi de novo naquela noite — porque claro que ouvi —, percebi que o zumbido que eu tinha escutado antes era a mesma melodia das notas gravadas.

No dia seguinte, mostrei a foto pra minha turma avançada de coral. Alguns reconheceram na hora. “É a Canção do Vazio”, disse uma das veteranas, uma garota chamada Julia. Os outros assentiram. Pelo visto, era uma coisa local antiga — algo que passava de boca em boca em festinhas do pijama ou fogueiras. Se você cantasse a Canção do Vazio na sala de coral do porão, diziam, ouviria vozes cantando de volta. Não eco. Vozes de verdade. E se tentasse gravar, o som não saía — só estática.

“Os moleques faziam isso”, disse Julia. “Mas depois do que rolou com a turma de 2002, pararam.”

Perguntei o que tinha acontecido em 2002.

Ela só falou: “Pergunta pro sr. Calloway” e não encarou meus olhos.

O sr. Calloway tinha sido o diretor de coral antes de mim. Aposentou-se uns anos antes, mas ainda morava na cidade. Naquela noite, procurei o número dele e liguei. A esposa atendeu primeiro, depois passou o telefone quando me apresentei. Ele foi educado, mas calado. Quando perguntei sobre a Canção do Vazio, ele ficou em silêncio total por um tempão antes de dizer: “Não desça lá. Algumas salas lembram demais.” Depois desligou.

Foi aí que percebi que não era historinha de acampamento.

Nas semanas seguintes, os ruídos ficaram mais altos. Às vezes eu ouvia canto durante a aula. Os alunos olhavam em volta nervosos, fingindo que não escutavam. Um dia, uma caloura começou a chorar no meio do ensaio. Quando perguntei o que era, ela disse: “Eles estão nos imitando.” Perguntei quem, mas ela não falou.

Naquele fim de semana, decidi que precisava saber a verdade. Fiquei até tarde na sexta, fingindo trabalhar nos planos de aula. Quando o zelador saiu, peguei uma lanterna e um gravador portátil e desci pro porão. Disse pra mim mesmo que era pesquisa — pela minha paz de espírito. Mas lá no fundo, acho que queria ouvir eu mesmo.

O ar ficava mais frio quanto mais eu descia. A luz da escada zumbia e escurecia. Quando entrei na sala de coral, o silêncio era absoluto. Até o barulho dos canos do prédio parecia ter parado. Fiquei no centro, apertei “gravar” e esperei.

No começo, nada. Depois, um zumbido fraquinho — suave, distante, como vento passando por um cano oco. Prendi a respiração. O zumbido cresceu, dividindo-se em vários tons. Acordes começaram a se formar, resolver, subir. Era lindo de um jeito errado — perfeito demais, sincronizado demais. Nenhum coral humano misturava assim.

Aí começou a melodia. A Canção do Vazio. O mesmo padrão gravado na parede. Só que dessa vez, eu ouvia palavras sob a harmonia — sílabas baixas, sussurradas, numa língua que eu não conhecia. Meus joelhos fraquejaram. Tentei falar, perguntar “Quem tá aí?”, mas minha voz saiu rachada e seca. E aí eu ouvi — o arrastar de pés atrás de mim.

Girei. A sala estava vazia, mas os degraus tremiam levemente, como se algo tivesse acabado de descer deles. O canto ficou mais alto, mais perto, até eu sentir vibrando no peito. As paredes começaram a pulsar a cada nota, e eu percebi — Deus me ajude — que o próprio tijolo estava cantando.

Tropecei pra trás, a lanterna balançando loucamente pelo chão. Foi aí que vi o que tinha passado batido antes. As gravuras na parede não eram mais só notas. Tinham se espalhado pelo chão, enrolando como raízes, cada uma formando novos pentagramas que não estavam ali antes. E entrelaçados entre elas, contornos fracos — formas como costelas humanas, caveiras, vértebras, tudo riscado pela mesma mão.

Era um coro de ossos.

A música parou de repente, como se alguém tivesse desligado um interruptor. Corri escada acima, o gravador ainda rodando, o coração batendo tão forte que mal conseguia respirar. Quando cheguei na minha sala, tranquei a porta e fiquei lá tremendo até de manhã.

A gravação era inútil — só estática e uns estalos fracos. Mas no meio, bem antes de acabar, tem outra coisa. Se você aumenta o volume, dá pra ouvir: a minha própria voz sussurrando “Junte-se a nós”. O problema é — eu nunca disse isso.

Falei pro diretor que o porão era inseguro, que podia ter mofo preto ou problema estrutural. Ele concordou em fechar temporariamente. Lacraram a porta com fita de isolamento, e eu tentei esquecer. Mas os alunos não esqueceram. Continuavam ouvindo a música — pelas saídas de ar, pelos canos, até no ginásio. Um garoto jurou que viu rostos nos espelhos durante o ensaio. Outro garantiu que uma voz de menina cantou em harmonia com ele, perfeitamente afinada, apesar de ele estar sozinho.

Em dezembro, três dos meus alunos largaram o coral de vez. Não dava pra culpar. Comecei a ouvir nos meus sonhos também.

Finalmente decidi sair depois do que aconteceu com a Julia. Foi logo antes das férias de inverno. O zelador encontrou ela na escada do porão, sentada no patamar com os olhos abertos e um sorrisinho no rosto. Ela estava cantarolando. Sem parar. A Canção do Vazio. Quando tentaram mexer nela, ela começou a gritar — tão alto que as luzes piscaram. Tiveram que sedar. Ela nunca mais voltou pra escola.

No dia seguinte, a fita de isolamento estava rasgada. A porta da sala de coral estava aberta. Lá dentro, as gravuras tinham crescido de novo. Linhas novas, símbolos novos. E bem no rodapé, escrito com o que parecia ferrugem seca, as palavras: “Nossas vozes lembram.”

Pedi demissão naquela semana.

Mudei pra três estados de distância e arrumei um trampo dando aula de teoria musical online. Mas já fazem anos, e eu ainda ouço às vezes — geralmente tarde, quando tô sozinho e tudo tá quieto. O zumbido começa fraco, logo atrás das paredes, depois vira algo quase lindo.

Não sei quanto tempo me resta até acontecer comigo o que aconteceu com a Julia, mas vou resistir o máximo que puder. Então te deixo com isso: não vá atrás da canção do vazio, não é historinha inventada… 

É real.

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