Quando digo que o sótão da casa dos meus pais estava bagunçado, talvez seja o maior eufemismo que já usei. Pelo que me lembro, ele sempre esteve abarrotado de tranqueiras. Era quase impossível dar dois passos sem esbarrar em pilhas de caixas ou algum outro tipo de lixo aleatório... então, foi muito estranho encontrá-lo no estado em que estava.
Depois que meus pais faleceram em um acidente, decidi que iria organizar todo aquele sótão, não importava quanto tempo levasse. Demorei um pouco para reunir coragem de subir lá, mas finalmente consegui superar o medo que sentia. Olhando para trás, não sei exatamente por que estava com medo. Medo de ser repreendido? Medo de encontrar algo que não deveria? Não sei, talvez fosse apenas o clima assustador do lugar. A casa parecia depressivamente vazia, afinal.
Enfim, quando chegou o dia em que parei de procrastinar, respirei fundo e abri a porta do sótão. Era apenas uma abertura tipo um armário que levava a uma escada até a área principal do sótão, o que, por algum motivo, fez minha ansiedade aumentar. Havia uma fina camada de poeira na maçaneta que se dissipou quando a girei.
A primeira coisa que me atingiu foi o cheiro. Uma nuvem de poeira, vinda sabe-se lá de onde, irritou meu nariz, e me curvei tossindo por uns bons trinta segundos. Mesmo depois de recuperar o fôlego, o leve cheiro de madeira velha ainda penetrava minhas narinas, e eu tentava respirar superficialmente para evitar que aquele odor enchesse meus pulmões. Parado no pé da escada do sótão, olhei para o beiral, que, felizmente, estava claro o suficiente para enxergar por causa das duas janelas, uma de cada lado do sótão. Me equilibrando mais uma vez, subi as escadas.
Você deve estar se perguntando, como eu me perguntava, quanta tralha dos meus pais estava espalhada por aí.
Nenhuma.
Nada de caixas, jogos de tabuleiro antigos, papéis, malas ou qualquer outra coisa que costumava estar lá. A única coisa em todo o sótão era uma pequena TV antiga, posicionada bem no centro do cômodo. Parecia ser dos anos 70 ou 80, embora eu provavelmente seja jovem demais para identificar com precisão. Suas únicas características notáveis eram uma tela cinza que cobria a maior parte da superfície e alguns botões e mostradores de aparência inofensiva ao lado.
Olhei ao redor do sótão por cerca de um minuto, tentando entender o que tinha acontecido. A última vez que estive na casa dos meus pais foi cerca de uma semana antes do falecimento deles, e me lembro de o sótão estar completamente cheio. Será que eles contrataram alguém para esvaziar tudo poucos dias antes do acidente?
Enquanto essa pergunta ecoava na minha mente, voltei minha atenção para a TV, que estava curiosamente no meio do espaço agora vazio. Sentei na frente dela para observá-la melhor e senti a madeira dura raspando contra minhas pernas, amaldiçoando silenciosamente meus pais por nunca terem reformado aquela área. Enfim, a TV apenas... estava lá. Eu não sabia como operá-la, então comecei a girar os mostradores e apertar os botões aleatoriamente.
Depois de vários minutos... nada. Apenas uma tela em branco e meu reflexo desapontado me encarando de volta. Fiquei olhando para a tela, sem nem saber o que estava esperando. Apenas... algo.
Com um suspiro, me levantei para descer e pegar uma bebida. Foi quando ela ligou.
A tela ainda estava em branco, mas eu podia ouvir um zumbido fraco de estática. Parecia que ela estava tentando sintonizar, como um rádio antigo, e juro que havia trechos breves de uma voz entremeada na estática. Isso durou alguns minutos até que uma imagem começou a aparecer. No início, era fraca, só ganhando foco depois que bati levemente no topo da TV algumas vezes. As linhas de estática cinza se transformaram em cores.
Não sei o que esperava, mas a imagem que apareceu era bastante... normal, pelo menos à primeira vista. Era uma casa no meio de um campo de grama, com um céu azul-escuro, sem detalhes, ao fundo. Havia algo na imagem que se infiltrava na parte primitiva e assustada do meu cérebro. Era tão... simplista. A casa era apenas um retângulo, com dois ou três retângulos menores representando janelas e um telhado triangular simples.
Então, uma linha de texto apareceu na parte inferior da tela em letras amarelas e em negrito:
Você se lembra da sua casa?
Fiquei encarando a TV por alguns momentos, sem saber o que pensar. Não estava falando de mim, isso seria loucura. Só vivi na casa dos meus pais quando era criança.
Enquanto pensava nisso, a imagem da casa voltou a ficar cinza, e outra imagem apareceu. Mostrava uma sala pequena, mal iluminada, exceto por uma lâmpada fraca pendurada no teto. Dentro do feixe cônico de luz projetado pela lâmpada, consegui distinguir o que parecia uma cadeira de dentista. Era difícil ter certeza, mas parecia haver amarras presas a cada braço da cadeira, e ao lado havia uma mesa com agulhas e outros instrumentos.
Desta vez, o texto dizia: Nossa, olha só todo o trabalho que eles fizeram!
Em seguida, veio um close de algum tipo de câmara, cheia de um líquido escuro e borbulhante. Dentro, mal visível por trás da escuridão, havia uma pequena massa gelatinosa, quase como... carne. Tubos e fios de várias cores cercavam a coisa, e, por algum motivo, quase me lembrava um bebê no útero de uma mãe. Tentei afastar a imagem da minha cabeça enquanto o texto correspondente aparecia na tela:
Ahh, tornar-se humano. Bons tempos...
Antes que eu pudesse processar o que estava vendo, a quarta e última imagem apareceu, desta vez com pedaços de estática ainda piscando, mesmo depois que a imagem ficou totalmente nítida.
Era a foto de uma mulher, talvez no final dos 20 ou início dos 30 anos, vestida com um jaleco branco que descia até abaixo dos joelhos. Ela exibia um sorriso discreto, sem mostrar os dentes, e segurava um pequeno recipiente de algum tipo.
Esses detalhes já eram suficientes para me deixar inquieto, mas foi o que estava dentro do recipiente que fez a bile subir à minha garganta.
Não sei bem como descrever, exceto que parecia um feto humano em uma poça da mesma substância que enchia a câmara da imagem anterior. Mas não era exatamente um feto, era mais uma massa disforme e carnuda que me lembrava mais um teste de Rorschach do que um bebê. Mãos pequenas e primitivas se estendiam em direção à mulher, e rastros de lodo cobriam sua pele. Nos poucos segundos em que a imagem ficou na tela, consegui distinguir várias outras figuras que pareciam estar de jaleco, embora a iluminação ainda fosse fraca. E então o texto apareceu:
Nossa, você era tão fofo naquela época.
Ler aquele texto foi o que me tirou do transe. Enquanto a imagem permanecia na tela por mais alguns segundos, percebi algo.
A mulher na foto era minha mãe. Ela parecia diferente, o cabelo mais escuro e o comportamento mais reservado do que me lembrava, mas não havia como confundir seu rosto. Eu conhecia aquela sarda no pescoço dela, e seus olhos castanhos me encarando através da câmera me fizeram estremecer.
Não esperei pela próxima imagem, se é que havia uma. Entorpecido, levei a TV para o andar de baixo e a despedacei, usando uma faca de cozinha que estava por perto e um machado de cortar lenha da garagem.
Agora estou deitado na cama, tentando, sem sucesso, processar tudo isso. Os pedaços da televisão quebrada estão espalhados pela sala de estar, um andar abaixo, mas a sensação de inquietação que me dominou desde que a estática começou não desapareceu. Me chamem de paranóico, mas verifiquei duas vezes se todas as portas e janelas da casa estão trancadas e as persianas fechadas.
O que aquela TV me mostrou? Será que eu quero mesmo saber?
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