sexta-feira, 2 de maio de 2025

Falso Arrebatamento

Acordei com o som de trombetas.

Não era exatamente música — algo mais grave, mais antigo. Como uma seção de metais enterrada sob séculos de terra, tocando com pulmões encharcados. Não era tanto uma canção, mas um chamado, e todos os cães do condado uivaram ao mesmo tempo, um coro agudo que subia com a névoa do amanhecer.

Sentei-me na cama, os pés descalços tocando o assoalho frio, e escutei. O som vibrava pelas paredes, não alto, mas profundo, como se estivesse costurado na madeira e nos ossos abaixo dela. Também ouvi o sino da igreja tocando, mas parecia distante, quase educado em comparação ao trovão logo além do céu.

Diziam que o Arrebatamento viria como um ladrão na noite, mas… isso era um desfile.

Quando cheguei à varanda, metade da cidade já estava reunida na rua, vestida com suas melhores roupas de domingo, embora fosse quinta-feira. O velho pastor Elias estava diante da capela, os braços abertos, a cabeça inclinada para as nuvens. Sua túnica branca esvoaçava ao redor dele como se tivesse vida própria, capturada por um vento que nenhum de nós podia sentir.

“Eles estão aqui”, gritou ele. “Os anjos chegaram, exatamente como o Senhor prometeu!”

Murmúrios de alegria percorreram a multidão. Algumas pessoas caíram de joelhos; outras ergueram os braços e choraram. Vi minha vizinha, dona Clara, levantar seu bebê para o céu como uma oferta.

Eu estava paralisado, meu coração não disparado, mas com uma pressão no peito, uma tensão como se algo imenso tivesse voltado seu olhar para nós e decidido que éramos interessantes.

O céu acima da igreja tremeluziu, não como ondas de calor ou miragens, mas como se o próprio ar tivesse rachado. Uma fina fenda se abriu no azul, exsudando luz — não luz do sol, não uma cor que eu já tivesse visto antes. Ela tinha forma, aquela luz. Asas, talvez. Ou algo tentando muito parecer asas.

As pessoas começaram a subir.

Foi lento no início. Seus pés se ergueram do chão como se fossem puxados por cordas. Não havia agitação, nem pânico, apenas reverência. Eles flutuavam em silêncio, banhados naquela luz impossível, os olhos vidrados de êxtase ou loucura — eu não sabia distinguir.

E então vi do que as asas eram feitas.

Não eram penas, mas carne — veias, membranas e articulações que se dobravam de maneiras que nenhum livro de anatomia humana permitiria. As bordas brilhavam, desdobrando-se em mais asas infinitas — em camadas como um caleidoscópio que havia esquecido como ser belo. Rostos brotavam das dobras — nem humanos, nem animais — apenas a ideia de um rosto torcida em algo que gritava divindade e decadência ao mesmo tempo.

Cambaleei para trás, o bile subindo na garganta.

O som da trombeta se aprofundou, sua ressonância sacudindo o chão sob nossos pés.

E ainda assim, eles subiam.

Minha mãe passou flutuando por mim, os olhos fixos no céu, um sorriso lindo no rosto. Sua camisola aderiu a ela como linho fúnebre. Tentei chamá-la, mas minha voz morreu na garganta. Estendi a mão para seu tornozelo, desesperado para puxá-la de volta — mas minha mão atravessou como se ela fosse névoa.

Todos ascenderam. Cada um deles. Seus corpos desapareceram naquela fenda no céu, engolidos inteiros pelas asas.

E então ela se fechou.

A luz sumiu. O som parou. O silêncio que veio depois parecia mais pesado que a trombeta jamais foi.

Fiquei sozinho na rua, descalço, o sol da manhã de repente brilhante demais, comum demais. Um pássaro pousou no telhado da capela e chilreou, completamente alheio ao horror divino que acabara de se desenrolar abaixo dele.

O Arrebatamento havia chegado.

Mas eu fui deixado para trás, sozinho nas consequências do Arrebatamento.

O silêncio não durou.

No início, era apenas o vento, movendo-se errado entre as árvores — não farfalhando as folhas, mas roçando contra elas em padrões lentos e deliberados — como dedos.

Tentei chamar — qualquer um, qualquer coisa — mas a cidade estava vazia. Casas vazias com comida ainda no fogão. Aspersores de gramado tiquetaqueando como se fosse um dia qualquer. Portas entreabertas, cortinas balançando. O sol pairava acima de tudo como um olho indiferente observando.

Caminhei até a igreja, o coração batendo como um metrônomo apertado demais.

As portas da frente estavam abertas, uma delas arrancada da dobradiça, estilhaçada como se algo enorme tivesse passado por ali sem se importar com a arquitetura mortal. Dentro, os bancos estavam chamuscados — não queimados, mas marcados com um padrão que se espiralava a partir do púlpito. Símbolos alinhavam as paredes, estranhos e fluidos, como se tivessem sido rabiscados rapidamente por algo que nunca precisou de linguagem.

O ar cheirava doce e podre. Mel e carne.

Atrás do altar, as vestes do pastor Elias estavam amontoadas, vazias. Mas havia um rastro saindo delas — pequenas manchas escuras no chão, como se algo tivesse tentado se arrastar para fora de sua pele. O padrão de sangue também estava errado… não aleatório, mas simétrico. Deliberado.

Virei-me para sair, mas o órgão gemeu atrás de mim.

Uma nota longa e grave.

Ecoou pela igreja como um sopro através de um crânio oco.

Não esperei para ver se haveria uma segunda.

O mundo parecia sutilmente alterado, como se tivesse girado alguns graus enquanto eu não olhava, aumentando minha crescente desorientação.

E então eu ouvi.

Sussurros.

Não nos meus ouvidos, mas nos meus dentes, rastejando pelas raízes dos molares até o maxilar. Falavam em loops, repetindo uma palavra incessantemente, algo que soava como “Hosianel”. Cada vez que passava pelo meu crânio, o significado se aguçava, arranhando em direção à coerência.

Corri.

De volta para minha casa, passando por carros vazios ainda ligados nas entradas, por portas abertas que eu não ousava olhar. Sombras se estendiam onde não deveriam. Uma delas alcançou-me — longa e fina como o desenho de um braço de criança — e juro que sorriu, mesmo sem ter boca.

Dentro de casa, tranquei todas as portas.

Depois as barricadei.

Depois empurrei móveis contra elas, mesmo sabendo que o que levou os outros não precisava de portas.

Mesmo sabendo que era inútil, barricar as portas me dava uma falsa sensação de controle diante do horror iminente.

Sentei-me na cozinha por horas, encarando o relógio enquanto os ponteiros giravam para trás. Não havia barulho, nem pássaros, nem mesmo o vento agora — apenas a respiração pesada do silêncio.

Até que a luz voltou.

Não no céu — mas nas tábuas do assoalho.

Um brilho suave pulsando sob a madeira. Rítmico, como um batimento cardíaco. Encostei o ouvido nela, e o que ouvi não era tanto um som, mas um chamado. Algo sob a casa. Esperando.

Não respondi.

Fiquei parado. Fiquei quieto.

Fiquei humano.

Por enquanto.

Naquela noite, a luz voltou.

Não estava no céu, nem sob o assoalho, nem mesmo no mundo como eu o entendia. Estava nas minhas paredes, na minha pele, na minha mente. Um brilho pálido que tremeluzia nos cantos da minha visão, recuando quando eu me virava para encará-lo, como algo esperando que eu parasse de prestar atenção.

Não dormi.

Em algum momento — talvez meia-noite, talvez não — o tempo parecia irrelevante. O chão começou a zumbir novamente, agora mais alto e urgente. As tábuas tremiam sob meus pés como se estivessem segurando algo — algo vivo.

Então veio o arranhar.

Debaixo da casa. Como unhas na pedra ou ossos arrastando na terra. Não me movi. Apenas escutei, o coração disparado no peito, enquanto o som circulava abaixo de mim, lento e paciente. Algo estava lá embaixo. Ou muitos algos. Movendo-se em ritmo, respirando com minha respiração.

Uma voz — não, várias — ergueu-se das profundezas.

Não eram palavras, mas imagens gravadas nos meus pensamentos: uma tempestade de asas, uma torre feita de olhos, uma boca sem rosto que sussurrava escrituras ao contrário. Vi os outros — os que subiram — flutuando por um túnel de luz impossível, seus corpos mudando — não por escolha.

Asas irrompiam das omoplatas com um estalo úmido. Olhos se abriam nas palmas, bochechas e torsos. Bocas se rasgavam pelas espinhas e gritavam hinos que dobravam o ar. Seus ossos se contorciam para combinar com uma nova forma, uma que não era feita de carne.

Alguns não sobreviveram à transformação.

Esses foram os que caíram de volta.

Ouvi antes de vê-los. O telhado se partiu — não estilhaçado, não rasgado, mas dividido, como cortinas — e eles desceram.

Pareciam anjos, como se anjos tivessem sido feitos por alguém que nunca viu um humano, mas tentou aproximá-lo de memória.

Um rastejou pela lateral da casa, seus membros longos demais, articulações invertidas, olhos brilhantes orbitando sua cabeça como satélites. Suas asas não eram asas, apenas espinhos que se abriam para fora, cada um com uma mão trêmula e sem penas na ponta.

Outro pousou no quintal e se desdobrou — mais alto que qualquer homem, com costelas que se abriam como pétalas, revelando um rosto dentro do peito: o rosto do meu pai, a boca escancarada, os olhos chorando luz.

Eles me observavam pelas janelas. Não atacavam. Não falavam. Apenas observavam, como se esperassem que eu aceitasse algo.

Não sei o que me fez abrir a porta.

Talvez eu estivesse cansado de fugir. Talvez quisesse saber.

O mais alto se inclinou para mim, e sua voz despejou-se na minha cabeça como cera quente:

“Você não foi escolhido.”

Senti então — que não fui poupado; fui rejeitado. A cidade foi colhida, transformada, levada — mas eu fui deixado para trás como lixo. Não porque era puro. Porque era indigno.

A criatura estendeu a mão. Não uma mão. Um aglomerado de dedos, alguns humanos, alguns insetoides, alguns não deste planeta. Vi o anel de casamento da minha mãe em um deles.

Dei um passo atrás.

E ela sorriu — não com o rosto, mas com todos os olhos em seu corpo piscando em uníssono.

Eles não vieram atrás de mim depois disso. Um a um, subiram novamente, desaparecendo no céu sem fogo, sem som. Apenas sumiram.

A manhã chegou como uma misericórdia que eu não merecia.

Ainda estou aqui.

A cidade ainda está vazia.

Os sinos da igreja nunca tocam, mas às vezes, à noite, o ar zumbe com aquele tom de trombeta — baixo e doce, chamando por algo que não sou eu.

Às vezes, me pergunto se eram anjos e se é assim que o Céu parece. Sem harpas, sem nuvens, apenas asas e luz e uma beleza tão vasta que arranca a alma do corpo como a pele de uma fruta.

Ou talvez fossem demônios, usando as escrituras como camuflagem. Talvez o Arrebatamento fosse uma mentira, uma colheita disfarçada de santidade. E talvez o Inferno seja um lugar acima, não abaixo.

Não sei.

Mas sei disso:

Eles voltarão.

E da próxima vez, acho que não deixarão nada para trás.

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