sábado, 3 de maio de 2025

Eu entreguei minhas memórias a uma criatura estranha, e agora não sei quem sou

Não espero que acreditem nesta história — eu mesmo não sei se é verdade ou invenção de uma mente doente. Ainda assim, imploro: quem estiver lendo isso, tente se lembrar — uma sombra sem rosto já visitou seus sonhos? Porque ela pode fazer com você o que fez comigo.

Vou começar do início. Ultimamente — embora eu não consiga dizer exatamente há quanto tempo — tenho tido lapsos de memória. No começo, eram coisas triviais. Esquecia onde estacionei o carro, e deixava pra lá. Depois, comecei a esquecer o caminho para meu próprio apartamento, meu nome e — meu Deus — até minha família. Todo dia, acordava nesta casa, e, embora tudo parecesse familiar, parecia estranho, como se alguém tivesse arrumado minhas coisas para mim.

Temi estar desenvolvendo demência. Estava pronto para procurar um médico — se não fosse pela última noite. Meu Deus... naquela noite, encontrei um dos cadernos. Estava atrás da minha cama. Juro que nunca o coloquei ali. Mas o abri. As primeiras páginas estavam escritas com minha própria letra — e, ainda assim, não tinha memória de tê-las escrito. Li: “Meu irmão morreu em um acidente de carro. Absurdo. Acidental. Um homem avançou o sinal vermelho enquanto mandava mensagem e o matou. Tive que identificar o corpo. Ele era a única família que me restava. Adeus, irmãozinho. Eu te amo.”

Não conseguia respirar. Um ataque de pânico me dominou. Minhas pernas cederam, eu ofegava, e meu coração oscilava entre explodir e parar. Juro pela minha vida: eu não lembrava disso. Tremendo, virei mais páginas. Memórias — na minha própria caligrafia — mas não eram minhas. Pensei que o Alzheimer estivesse devorando meu cérebro. Decidi manter diários, para não me perder completamente.

Então, cheguei a uma entrada que me paralisou com um medo primal. Ela vinha após um trecho sobre minha bebedeira — depois de perder o emprego, meu irmão, minha vontade de viver. A página seguinte dizia: “Estava deitado no sofá, olhando a estática da TV. Não conseguia me levantar, não conseguia desligar aquela maldita. Então, o ar ficou mais pesado. Respirei como se fosse através de algodão. O quarto inclinou. E na porta… ela estava lá. Uma figura escura. Magra. Nem homem, nem fera. Uma sombra alta. Seu rosto — borrado. Tentei reconstruí-lo instintivamente, mas não consegui, como se nunca devesse ser visto. Sua voz não vinha da boca. Zumbia na minha cabeça, grave e distorcida como estática de rádio. Disse que podia tirar o que me assombrava — levar toda a minha dor. Sem alma, sem sangue, sem preço. Naquela noite, eu estava destruído. E então… concordei. O funeral. A ligação. A mandíbula desfigurada do meu irmão. Entreguei todas essas memórias à criatura. E agora, ao acordar, sinto-me leve. Vivo. Calmo. Feliz. Os ecos estão sumindo. Não lembro por que estive triste. Vou deixar este caderno em algum lugar, para nunca mais voltar a ele.”

O terror me tomou. Eu havia apagado meu próprio irmão. Olhei o caderno horrorizado, o suor escorrendo da testa. Engolindo o nó na garganta, tentei lembrar seu nome — mas a memória escapava, como um jogo cruel. Fiquei sentado por horas. Nada vinha. Folheei o caderno novamente. Nada fazia sentido — o irmão morto, o ataque de pânico na faculdade, o gato desaparecido — nada. Minha cabeça estava vazia.

Então, veio o pensamento: Será que entreguei todas as minhas memórias dolorosas a esse ser? Quase vomitei.

Mas percebi que também não lembrava mais das coisas boas. Minhas únicas memórias agora eram de confusão — “Onde fica minha casa?” “Qual é meu nome?” Nada mais. Quanto mais pensava, mais o ontem escapava pelos meus dedos, e até a manhã de hoje se tornava borrada. Cambaleei até a cozinha, tonto, tremendo de medo.

No lixo, outro caderno.

Arranquei-o como se contivesse fragmentos da minha alma. Páginas estavam rasgadas. Algumas não faziam sentido. Algumas eram apenas desenhos: portas, corredores, olhos, a figura alta e sem rosto. Mas numa página — uma entrada assustadora: “Sonhos estranhos me perseguem. Não exatamente pesadelos — mas sufocantes mesmo assim. Estou num corredor, com portas alinhadas. Atrás de cada uma, sou eu — mas diferente: chorando, gritando, paralisado. Todo sonho termina igual. Eu me viro. E ela está lá. Sorrindo… Aquele sorriso parece familiar, como se eu já o tivesse visto. Entreguei outra memória. Não sei qual número. Aquela sobre os idiotas na faculdade que zombaram de mim. Logo vou esquecê-los também. E… meu Deus… Como é bom viver sem o peso desses horrores. Nunca quero voltar.”

O terror rastejou sob minha pele, aninhou-se nos meus ossos. A realidade se desfez. Minha vida, este mundo — nada parecia real. Destruí minha casa. Encontrei cadernos em gavetas, debaixo da cama, até numa ventilação. Era como se eu tivesse escondido partes de mim mesmo por aí, sabendo que esqueceria.

Páginas faltando. Rabiscos. Fragmentos de alegria. Então, atrás do radiador — outro caderno. Uma página: “Algo estranho de novo. Acordei à noite. Uma mulher me encarava, olhos cheios de horror. Ela me chamou de Ben.” Ben… Mas em outro diário, eu me chamei de John. Corri ao banheiro, mãos trêmulas, abri o espelho — e encarei.

Não reconheci o rosto. Olhos grandes demais. Calmos demais. Curvei-me de dor e vomitei no vaso. Lá — outro caderno debaixo da banheira. Novamente, páginas rasgadas. Algumas linhas sobreviveram: “Você deu seu nome. Você deu seu rosto. Pare de fazer acordos. Não são apenas memórias. Ela está tomando VOCÊ.”

Joguei-o longe e fitei o teto. O que resta de mim? Acho que entreguei minha mãe. Minha infância. Lembro vagamente que verde já foi minha cor favorita — mas agora, ao olhar uma toalha verde, algo parece errado.

Já se passaram… talvez 30 horas. Tento não dormir. Se dormir, ela virá. E vou desistir até disso. Horas atrás, duas memórias perfuraram minha mente como gelo: escondendo-me com meu irmãozinho do nosso pai bêbado e estando no funeral do meu irmão. Quanto sacrifiquei pela paz. Meu Deus, logo vou adormecer. Vou esquecer os cadernos. As memórias. A mim mesmo.

Mas… há mais uma coisa.

Nesta vigília, eu a sinto. Na casa. Observando dos cantos. Sussurrando canções que talvez eu já tenha conhecido. Logo, tudo acabará. E o mais assustador?

Enquanto escrevo isso, duas visões se formam: Sou criança no armário novamente. Sem irmão. Meu pai grita meu nome — mas não o entendo. A porta do armário se abre. Não é meu pai. Sou eu — de antes dos acordos. Ele me encara como se eu fosse um cadáver. Atrás dele… ela sorri. Em outra visão, estou no funeral do meu irmão. Mas, dessa vez… ele está de pé. Chorando. E eu sou o que está no caixão.

Por favor — não faça acordos se a vir.

Até suas piores memórias são parte de você. A dor te molda. Quando você rejeita isso… a coisa sem rosto caminhará pelo mundo com seu sorriso. E então, nada de você restará. Porque você não é apenas sua alegria.

Você é tudo o que lembra. E ela quer que você seja nada.

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