Mas ultimamente, algo mudou.
Tudo começou com uma conversa com minha mãe. Ela mencionou, quase casualmente, que eu era uma criança muito quieta. O tom dela era leve, mas havia algo estranho em seus olhos — como se ela estivesse se lembrando de um fantasma, não de uma criança.
Eu ri. Eu? Quieta? Hoje em dia, as pessoas praticamente imploram para eu calar a boca. Mas quanto mais eu pensava nisso, mais aquilo me incomodava. Porque eu não conseguia me lembrar. Não apenas de ser quieta — de nada. Nada antes dos meus doze anos.
A princípio, presumi a explicação mais comum: trauma. O tipo que se enrosca no seu cérebro e apaga a luz. Disse a mim mesma que talvez minha mente tivesse enterrado aqueles anos. Me protegido. Selado tudo atrás de uma porta trancada.
Mas então... os flashes começaram.
Eles vinham como estática em um sinal quebrado — rápidos, intrusivos, sumindo antes que eu pudesse segurá-los. Uma floresta. Algo observando. Um zumbido sob tudo, como um batimento cardíaco que não era meu.
Então, como qualquer pessoa racional faria — haha — recorri à internet. Pesquisei coisas como “é normal esquecer a maior parte da infância?”. A maior parte era o que se espera: tópicos no Reddit e blogs de bem-estar duvidosos. Até que me deparei com um nome: Dra. Smith.
O artigo dizia que ela havia obtido avanços com pacientes de Alzheimer e demência. Pacientes estavam recuperando memórias vívidas — detalhes de décadas atrás. Rostos. Nomes. Emoções. Tudo voltando.
Então vi que ela viria à minha cidade. Por pouco tempo. Aceitando apenas alguns candidatos. “Os Sortudos.”
Não achei que seria escolhida. Enviei um pequeno texto — brega demais, pensando bem — sobre querer me entender melhor. Não fiz perguntas. Não li as letras miúdas. Apenas... me inscrevi. Paguei. E esperei.
Três dias depois, recebi o e-mail. “Você foi selecionada.”
A mensagem dizia para entrar em contato com a assistente dela para agendar uma consulta. E foi assim que acabei aqui — sentada na sala de espera silenciosa demais de um prédio limpo demais, prestes a deixar uma completa estranha mexer nos cantos mais escuros da minha mente.
Havia outras três pessoas.
Um homem idoso, frágil, mas focado. Uma adolescente de olhos vazios e fones de ouvido, com a mãe ao lado, ansiosa demais. E um jovem — talvez na casa dos vinte — calmo de um jeito que parecia... errado. Como se ele já soubesse o que estava por vir.
Esperei. Por uns quarenta e cinco minutos, talvez mais. Então:
“Sra. Coleman?”
Uma mulher estava no canto da sala, chamando. Segui-a por um corredor longo e estéril. Ao nos aproximarmos da porta, olhei para trás. Os outros ainda me observavam — rostos indecifráveis, olhos parados demais.
“A Dra. Smith vai atendê-la agora.”
Ela já estava de pé quando entrei. Alta. Alta demais. Loira, polida e clínica de um jeito que fazia sua beleza parecer artificial. Familiar, de algum modo. Como um rosto visto uma vez em um sonho — antes de se transformar em pesadelo.
“Sra. Coleman,” ela disse, estendendo a mão. “Lucy,” corrigi, sem pensar.
O sorriso dela vacilou. “Lucy,” ela repetiu. Monótona agora. Fria. “Por favor, sente-se.”
O consultório era impecável. Ela apontou para uma cadeira elegante — estranhamente idêntica à dela, mas, quando me sentei, parecia errada. Como se o formato tivesse sido moldado para outra pessoa.
“Você escreveu que não se lembra de nada antes dos doze anos,” ela disse. Assenti. “Nada. Nem uma única memória. Apenas… estática. Uma fita em branco.”
Contei o que minha mãe disse — sobre como eu mudei. Como ela uma vez sussurrou: “Foi como se me devolvessem uma criança diferente.”
Essa parte sempre ficou comigo. Eles. Não “como se você tivesse crescido”. Não “como se você tivesse mudado”. Mas “eles”.
A Dra. Smith inclinou a cabeça. “Você mencionou um trauma. E um boletim de ocorrência?” Engoli em seco.
“Tenho uma tatuagem na coxa. Minha mãe não sabe de onde veio. Ela diz que eu não a tinha antes de desaparecer.” “Desaparecer?” “Por pouco tempo. Quando eu tinha doze anos. A polícia me encontrou em um campo. Eu estava... catatônica. Minha mãe achou que era algo de culto. Mas o relatório não diz muito. Só que estive desaparecida por dois dias e depois... voltei.”
O silêncio se estendeu entre nós. Eu podia ouvir o zumbido das luzes fluorescentes. Ou talvez fosse outra coisa.
“E agora você está aqui,” ela disse suavemente, “pronta para lembrar.”
Hesitei. Depois assenti. “Acho... acho que preciso.”
Ela sorriu de novo, mas o sorriso não chegou aos olhos. “Então me siga.”
No canto da sala havia uma porta que eu não tinha notado. Ao passarmos por ela, uma onda de ar gelado me atingiu como um tapa.
“Não se assuste,” ela disse. “O corpo retém memórias melhor quando está frio. Quanto mais frio, mais obediente a mente se torna.”
Tentei rir. “Como quando você está morto?”
O sorriso dela se alargou. “Exatamente.”
A sala adiante era ofuscante. Pisos brancos, paredes brancas, luz branca. No centro: a cadeira. Cercada por tubos e fios. Parecia menos um equipamento médico e mais um trono construído para algo não humano.
“Sente-se,” ela disse. “Vamos começar em breve.”
A cadeira sugou o calor do meu corpo. Restrições de metal se fecharam com um clique. Disse a mim mesma que isso era procedimento padrão. Disse que poderia ir embora a qualquer momento. Mas as correias diziam o contrário.
Tubos transparentes corriam com um líquido brilhante. Técnicos se moviam ao meu redor sem falar. Eles não pareciam pessoas.
A voz da Dra. Smith ecoou de algum lugar distante: “Apenas respire. Deixe sua mente se abrir.”
Então: o tom. Cortou meu crânio. Um som agudo, fino como uma agulha.
E então — Escuridão. Não sono. Não inconsciência. Apenas ausência.
Então: Flashes. A floresta. A noite.
As árvores balançavam como se respirassem. Meus pés estavam descalços. Agulhas de pinheiro furavam meus calcanhares. Eu era pequena. Nove, talvez dez anos.
E algo estava acima de mim. Bloqueando as estrelas.
O zumbido voltou. Não dos tubos — mas do céu. De dentro de mim.
Então: Eles vieram. Altos. Brancos.
Pele como porcelana molhada. Sem olhos. Sem bocas. Mas eu os sentia me observando. Sentia eles pensando. Esta está danificada. Não. Esta é nova. Vamos ficar com esta.
Tentei gritar. Tentei correr. Mas nada se movia.
Então eu estava em uma mesa. Fria. Flutuando no ar — ou na água. Ou ambos.
Eles pairavam. Mãos como agulhas. Máquinas que zumbiam.
Minha pele se abriu como papel. Sem dor. Eles não olhavam meu corpo.
Estavam dentro da minha mente. Apagando. Dissecando. Reorganizando.
Esta chora pelos outros. Remova a parte que se apega. Esta se lembra da mãe. Tranque isso. Esta resiste. Amoleça-a.
Eu assisti enquanto me desfaziam.
Então: uma luz. Um campo. Uma casa. E eu estava em casa. Mas não de verdade.
Voltei ofegante. Engasgando. O frio me atingiu como uma parede. Eu tremia, os dentes batendo.
A Dra. Smith estava ali, expressão indecifrável.
“Então você se lembra,” ela disse.
Olhei para ela, olhos arregalados. “O que... o que eram eles? O que fizeram comigo?”
Ela se virou para o tablet. “Você é o nosso caso mais claro até agora.”
“Você disse que isso era um estudo,” sussurrei.
Ela não olhou para cima. “E você disse que queria se lembrar.”
A porta sibilou. Duas figuras entraram. Ternos feitos daquela mesma luz alienígena e brilhante.
“Não — espere. Você disse que eu podia escolher —”
As restrições se fecharam novamente. Frias. Apertadas.
Finalmente, ela me olhou. Seus olhos — vítreos. Reflexivos. “Você escolheu.” “Só não sabia o que estava escolhendo.”
A tela atrás dela acendeu. E lá estava eu — sendo levada. Amarrada. Aberta.
Mas dessa vez... eu me lembrava de tudo.
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