sábado, 3 de maio de 2025

Valeu a pena?

Sou cientista. Ou, pelo menos, costumava ser. Mas algo mudou durante o teste Hyperion. Algo irreversível. E agora, nem sei mais se ainda posso ser considerado humano.

Sei como isso soa. Mas não estou aqui para convencer ninguém — só preciso contar a alguém. Qualquer um. Antes que o que está dentro de mim termine o que começou.

O dia começou como a maioria em Chicago: cinzento, agitado, exausto. Acordei de um sonho que não consigo lembrar completamente. Só fragmentos restam: luz quente do sol, risadas, a voz da minha mãe. Era um contraste cruel com a manhã que me recebeu. Meu apartamento estava gelado. Meus membros doíam. Vesti-me em silêncio, tremendo ao colocar o jaleco. Um modelo sofisticado, supostamente. Embora, depois de tantos anos na área, até o prestígio pareça poliéster e fiapos.

Pulei o café da manhã. Nervosismo, talvez. Ou talvez uma parte de mim soubesse. Tomei um café velho numa caneca rachada e saí.

A cidade era um organismo vivo. Táxis buzinavam. Multidões se aglomeravam. Arranha-céus rasgavam o céu. A maioria das pessoas corria ao meu redor, cega para o leviatã adormecido sob seus pés. Hyperion. Nossa obra-prima. Um acelerador de partículas escondido nas entranhas de Chicago, construído para simular os primeiros espasmos de nascimento do universo. Nosso objetivo? Recriar um Big Bang — só que em escala menor.

O teste era naquela manhã. Anos de trabalho, bilhões de dólares e noites sem dormir culminando em um único momento.

Eu deveria estar eufórico. Mas, ao me aproximar da entrada de aço e vidro do laboratório, uma pressão cresceu no meu estômago. Como se meu corpo estivesse me avisando para voltar. Ignorei. Disse a mim mesmo que era empolgação.

O laboratório pulsava com expectativa. Os corredores brilhavam em um branco estéril, preenchidos pelo zumbido baixo dos servidores e conversas abafadas. Ao chegar ao nível de observação, vi Mitch, prancheta na mão, um sorriso estampado no rosto.

“Bom dia, John”, ele disse. “Pronto pra fazer história?”

Sorri, embora o sorriso parecesse frágil. “Todos os sistemas ok?”

“A Shelly acabou de terminar os diagnósticos finais lá embaixo. Deve voltar a qualquer momento.”

O laboratório além da janela de observação brilhava com luzes azuis suaves. Fileiras de painéis de controle piscavam. Cabos serpenteavam pelo chão como veias de uma fera gigante adormecida. Quando Shelly surgiu pela porta lateral com um sinal de positivo, a sala ganhou vida.

“Beleza”, disse Mitch, a voz ecoando pelo interfone, “iniciando o teste um do Projeto Hyperion. Por favor, afastem-se do vidro.”

O zumbido do acelerador rastejou pelas paredes. Minhas pontas dos dedos formigaram. O ar ficou denso, carregado. Eu sentia a máquina acordando.

“Cinco…”

Minha respiração ficou presa na garganta.

“Quatro…”

Minhas unhas cravaram na espuma do braço da cadeira.

“Três…”

O suor se acumulou na base das minhas costas.

“Dois…”

Meu coração trovejava.

“Um.”

BOOM.

Tudo escureceu.

Mas não era inconsciência — não de verdade. Era mais como cair fora da realidade.

Quando meus sentidos voltaram, eu estava… em lugar nenhum. Suspenso em um vazio que pulsava em vermelho e preto. O céu era uma bagunça giratória de nuvens marrons e uma estrela negra inchada que latejava como uma ferida. Abaixo de mim, um oceano carmesim rolava, denso como sangue e igualmente ameaçador.

Tentei me mover. Meus membros não responderam.

Olhei para baixo — e gritei. Minhas pernas tinham sumido, substituídas por uma cauda musculosa e afilada que se contorcia no ar como um nervo cortado. Meus braços terminavam em garras alongadas, pretas e brilhantes, como de inseto. Minha pele pendia e ondulava, gelatinosa. Levei a mão ao rosto e senti dobras úmidas, moles, derretendo. Minha boca — minha boca tinha desaparecido.

Eu flutuava. Uma mutação deformada do homem que já fui.

E então os vi.

Os olhos.

Órbitas enormes, sem pálpebras, pairavam além das nuvens. Quilômetros de largura. Pretos como piche. Observando com uma indiferença que tornava a oração ridícula. Quando as nuvens se abriram, o resto da coisa emergiu. Um corpo vasto demais para a sanidade. Escamas carmesim que brilhavam como brasas. Membros — se é que podiam ser chamados assim — espiralavam com tentáculos e dentes. Sua boca se abriu, mais ampla do que a física deveria permitir, e a névoa negra que exsurgia cheirava a podridão e ozônio.

Fui puxado em sua direção.

Lutei. Arranhei. Gritei em silêncio. Mas resistir não significava nada.

Seus dentes não eram dentes. Eram monólitos — torres de osso amarelado que raspavam os céus. Deslizei entre eles e mergulhei na escuridão.

Dentro de sua boca, não havia escuridão. Estava vivo.

Tentáculos deslizavam das paredes. Cada um terminava em uma boca de ventosa, cercada por presas de obsidiana brilhante. Elas se agarraram a mim, mordendo, roendo, perfurando. Minha carne — ou o que costumava ser minha carne — se desprendia em pedaços úmidos. Uma delas cravou suas presas no meu crânio. Tudo o que eu conseguia pensar era no meu arrependimento. Eu havia falhado. Minha visão, meu sonho, havia fracassado completamente. Nem questionei minha situação. Apenas aceitei.

Quando a dor se tornou insuportável, acordei.

No Colorado.

As planícies se estendiam douradas e infinitas. O céu pairava cinzento e baixo. Minhas pernas estavam de volta. Minha pele, intacta. À frente, estava a casa da minha infância — tinta descascando, varanda cedendo. E pela janela… ela.

Minha mãe.

Ela estava no fogão, cantarolando. O cheiro de torta de frango flutuava no ar — minha favorita. Ela se fora há três anos. Câncer renal. Rápido e cruel. Perdi seu último suspiro por doze horas. Uma nevasca, a maior que Chicago viu em uma década, atrasou meu voo. Eu deveria ter viajado antes. O Hyperion era um projeto exigente demais. Sempre precisavam de mim, sempre exigindo um esforço extra. Sempre senti um pouco de culpa, como se minhas ambições tivessem deixado minha mãe morrer sozinha. Perguntas sempre me corroíam. Quais foram suas últimas palavras? Minha presença teria aliviado sua passagem?

Essas perguntas me consumiam enquanto subia na varanda. Bati na porta.

Ela não respondeu.

Abri a porta. Ela rangeu com um som familiar.

“Mãe?” chamei.

Ela se virou. O mesmo rosto suave. O mesmo sorriso gentil.

Mas o calor não estava lá. Seus olhos estavam errados. Um tom escuro demais. Seu sorriso curvava-se levemente no meio, como se sustentado por arames.

“John”, ela disse, a voz melodiosa, mas vazia. “Faz tanto tempo. Seu projeto deu certo?”

Ela se aproximou. Recuei.

“O que foi?” ela perguntou. “Não reconhece sua própria mãe?”

Seu rosto cedeu. Seus braços se alongaram. Garras brotaram de seus dedos. Suas pernas se fundiram em uma cauda. A pele derreteu, escorreu. Ela se tornou eu.

Um espelho grotesco do que eu havia me tornado.

“O projeto deu certo, não foi?” — era eu, choramingando. “Nós conseguimos, não foi?”

Então vieram os tentáculos. As bocas rangendo. Eles me despedaçaram — meu reflexo, minha culpa, meu pecado.

“Valeu a pena?” ele — eu — engasgou antes de ser arrastado para a parede.

A casa começou a desmoronar. As paredes pulsavam como um coração moribundo. Afundei no chão, frio e trêmulo. Talvez esse fosse meu castigo. Um túmulo moldado pela memória.

Então—

Acordei.

De volta ao laboratório. Deitado no chão. Mitch pairava sobre mim, sorrindo como louco.

“John! Meu Deus, você nos assustou! Você desmaiou. Mas escuta — conseguimos. Os dados estão fora da curva. Isso… isso é território de Nobel!”

Ele me ajudou a levantar. Meus joelhos tremiam.

“Fizemos bem, né?” perguntei. “Valeu a pena?”

Ele piscou, confuso. “Claro. Por uma descoberta desse tamanho? Eu faria isso dez vezes.”

Ele falava sério.

Saí. O sol brilhava agora. A vida seguia. Nada havia mudado.

Exceto eu.

Agora, não consigo dormir mais que algumas horas sem vê-lo. A coisa no céu. Os tentáculos. Eu mesmo — derretendo, gritando.

E aqui está a parte que mais me assusta: as leituras de energia que obtivemos naquele primeiro teste… elas não correspondem a nada no universo conhecido. Nem mesmo a anomalias quânticas. Nem mesmo à teoria do caos.

É como se a máquina tivesse aberto uma porta para outro lugar. Um vislumbre rápido de outro plano de existência.

E acho — o que quer que fosse — olhou de volta. Qualquer janela que abrimos, funcionava nos dois sentidos.

Então, se eu pareço normal — rindo, trabalhando, tomando café — saiba disso:

Não sou mais humano. Me tornei uma casca, uma entidade assumindo o eco de um nome.

E toda noite, antes de fechar os olhos, ouço o eco de uma pergunta que nunca vou parar de fazer.

Valeu a pena?

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