Minha mãe era acumuladora. Não do tipo que você vê na TV, soterrada por montanhas de lixo, mas o suficiente para mudá-la. O suficiente para mudar a mim.
Ela tinha banheiros acessíveis, conseguia cozinhar em meio às pilhas, até lavava roupa e louça de vez em quando. Mas precisava revirar montes de traste para encontrar qualquer coisa. Começou a ver ratos, baratas se espalhando quando acendia a luz.
Eu me preocupava com ela desde que saí para a faculdade. Preocupava que piorasse. Que um dia ela empilhasse revistas velhas sobre as resistências do fogão, acionasse o interruptor e incendiasse tudo. Talvez seja coisa de filho único se preocupar tanto com os pais. Não tenho irmãos para checar, e meu pai se foi há dez anos. Ela é tudo o que me resta.
Sei que ela tem pedaços quebrados na mente. Sei que algo sombrio aconteceu com ela, talvez a morte do meu pai, talvez algo ainda mais antigo. Algo empurrou seu estado mental como um galho, até que ele se partiu. Ela sempre foi desleixada, mas depois que meu pai morreu, ficou muito pior.
Há algumas semanas, tentei ligar pela primeira vez em um tempo. Uma voz robótica disse que o serviço dela foi desconectado. Pensei em pedir uma visita de bem-estar, chamar a polícia, mas sabia que as rachaduras em sua mente eram mais profundas do que apenas acumulação. Ela podia ser imprevisível.
Além disso, imaginei que ela provavelmente gastou demais dos cheques da previdência em bilhetes de loteria e cigarros Marlboro. Esqueceu de pagar a conta.
Depois de alguns dias, fiquei preocupado. Tirei o resto do semestre de folga, abandonei as aulas e paguei a taxa. Comprei uma passagem de avião para casa. Não era só a falta de telefone, isso foi apenas o estopim para uma conversa que já estava atrasada há muito tempo.
Quando cheguei, agradeci ao taxista e vi o borrão amarelo desaparecer pela estrada. Fiquei imediatamente chocado com o estado da minha casa de infância. O gramado estava meses sem cortar. Ervas altas como meus quadris balançavam na brisa. O portão de tela chacoalhava para lá e para cá. Era uma casa pequena, de dois andares.
Achei estranho que todas as persianas estivessem fechadas, amareladas e desbotadas pelo sol atrás do vidro sujo. Várias revistas, ainda embrulhadas em capas plásticas, estavam na varanda, e avisos cor-de-rosa e amarelos presos na maçaneta. Abri a caixa de correio, lotada de propaganda e contas atrasadas.
"Mamãe, você não tem pago as contas?" Suspirei.
Olhei ao redor. Todo o bairro parecia mais desgastado agora. Talvez fossem as lentes embaçadas da inocência da infância se desfazendo. Estar de volta fazia meu estômago parecer uma pedra afundando num lago.
Aproximei-me da porta da frente e sacudi a maçaneta. Trancada. Toquei a campainha e esperei. Nada. Eu sabia onde ela guardava a chave reserva para a porta dos fundos. Virei-me e desci os degraus.
O bairro estava morto. Nenhum rosto familiar. Só eu, o leve farfalhar da brisa e os sons distantes de um subúrbio de classe média baixa.
Passei sob o toldo da garagem, ao lado do Honda prateado da minha mãe. Poeira cobria as janelas.
Há quanto tempo ela não dirigia isso?
A chave reserva estava escondida dentro de uma pedra falsa. Eu havia dito que era uma má ideia, mas agora estava grato.
A fechadura abriu com facilidade e entrei. Fui imediatamente atingido pelo odor fétido de decomposição. Inspirei fundo sem pensar e virei-me, vomitando nas ervas. Suspeitei do pior. Pensei em ligar para a emergência, mas precisava ver com meus próprios olhos primeiro.
Cobri o nariz com a camisa e voltei para dentro. A casa estava escura. A acumulação piorara desde a última vez que a vi. Ainda não era uma quantidade intransponível, não o suficiente para envenenar os alicerces da casa, mas também não era bom.
Vi ele deitado na sala. Senhor Bigodes. Moscas zumbiam nas frestas de luz das persianas. Larvas se contorciam em seu corpo quase totalmente decomposto. Engoli a bile que subia, meus dedos tremendo.
Pobre Senhor Bigodes. Ela amava aquele gato. Um medo mais profundo me atingiu como a ponta de uma faca.
Se ela deixou isso acontecer com ele, algo estava errado.
Peguei meu celular e chamei a polícia. Eles chegaram com algumas viaturas mais rápido do que eu esperava. Uma equipe de policiais com luvas azuis de látex vasculhou o lugar. Após um tempo, um deles me sentou na varanda da frente.
Ela não estava lá dentro. Eles olharam em cada canto, sob cada pilha instável. Foram minuciosos e concluíram que não havia sinais de crime, nem de entrada forçada. Era como se ela tivesse simplesmente desaparecido.
"Quando você a viu pela última vez?" perguntou um policial grisalho com bigode. Sua placa dizia Oficial Mathers.
"Não temos conversado muito ultimamente… Estive ocupado com a faculdade… e ela pode ser uma pessoa difícil de se comunicar às vezes. Faz pelo menos quatro meses."
O policial assentiu com simpatia. Coçou o queixo.
"Ela tem amigos, família com quem poderia estar?"
Balancei a cabeça. Sabia que minha mãe podia ser desagradável com as pessoas.
"Ela não mantinha amigos por perto, muito trabalho. Não tem mais família, realmente."
Meu Deus, eu poderia estar falando de mim mesma. Não sei se doía mais dizer isso sobre a mamãe.
"Tá bom. Isso esclarece minhas perguntas. Mas tenho uma coisa que preciso te mostrar lá dentro."
"Ah. Tá, claro."
Os outros policiais estavam saindo agora, voltando para suas viaturas. Segui o Oficial Mathers para dentro.
Ele me levou pelas escadas rangentes. Caixas e móveis velhos ladeavam cada lado. A casa havia arejado um pouco, mas ainda tinha um aroma subjacente de poeira, o cheiro do Senhor Bigodes atenuado, mas persistente.
O Oficial Mathers espantou uma mosca zumbindo perto de seu rosto.
No andar de cima, ele me levou ao quarto principal. O entulho havia sido empurrado para o canto oposto. A cama dela estava encostada na parede opostas de onde costumava ficar. O velho edredom floral estava desalinhado.
Linhas vermelhas adornavam as paredes e o teto. Rabiscos insanos.
*Portal para as nove bênçãos divinas.*
*Participe da carne.*
*O Deus do Lixo.*
Entre os escritos, havia padrões. Pontas de flecha afiadas entremeadas com linhas circulares entrelaçadas.
Meu Deus, ela realmente havia perdido o juízo.
Na parede à minha esquerda, onde a cama ficava antes, havia um contorno vermelho em forma de porta, do tamanho de algo que você veria numa casa de brinquedo infantil. Flechas vermelhas de todos os tamanhos apontavam para ela.
"Meu Deus…" murmurei alto.
O Oficial Mathers caminhou até o contorno vermelho e pressionou a mão no papel de parede cinza. Nada. A mão dele não foi sugada. O braço não revelou nenhuma escotilha escondida.
"Já vi casos assim antes. Esquizofrenia paranoide, delírios."
"Acumulação," interrompi.
"Sim. Acumulação também. Olha, você parece inteligente, então não vou mentir. Isso não é um bom sinal. Se a encontrarmos, eu recomendaria buscar tratamento. Quantos anos tem sua mãe?"
"Ela tem só cinquenta."
*Se a encontrarmos.* Essas palavras ficaram na minha mente como fumaça.
Ele respirou fundo, olhando ao redor do quarto.
"E odeio te dizer isso numa hora dessas. Mas sou obrigado a relatar isso."
Ele apontou para os montes de lixo.
"Está violando os códigos de incêndio, as ordenanças municipais. Precisamos que isso seja limpo pela segurança dela. Vou te dar um tempo. Mas quando voltar aqui em alguns dias, quero ver melhorias, ou terei que envolver a prefeitura. Entendido?"
Assenti. "Vou passar um tempo limpando."
E foi exatamente o que fiz.
Usei minhas economias e aluguei uma caçamba que ficou estacionada na entrada. Comprei todo tipo de equipamento de limpeza.
O Senhor Bigodes foi a primeira coisa a ir. Sua carcaça havia achatado num disco firme, e eu tentei não vomitar ao ver as larvas. Havia uma mancha marrom profunda no carpete onde ele se decompôs. Parecia que algo tinha mastigado ele. Quando o joguei na caçamba, o cheiro dentro da casa melhorou imediatamente.
Liguei por aí e paguei as contas. Felizmente, a casa em si estava quitada, então só precisei colocar as contas de luz e água em dia, que estavam atrasadas por dois meses. Consegui restaurar a energia e a água naquele mesmo dia.
Então veio o trabalho duro. Joguei fora cadeiras de jardim quebradas, caixas de jornais sujos dos anos 70. Consegui limpar toda a sala de estar quando o sol começou a se pôr.
Tenho a tendência de trabalhar para esquecer a dor em vez de enfrentá-la. Deitei no velho sofá mofado, o suor escorrendo pela testa, quando ouvi uma batida vindo do andar de cima. Acordei assustada, encarando o teto. Parecia vir de lá. De cima de mim.
Levantei e subi as escadas, acendendo as luzes no caminho. A maioria das lâmpadas estava queimada, mas algumas piscaram e acenderam.
Virei a esquina, cautelosa.
*Batida.*
O som vinha do quarto principal. Quando cheguei à porta, vi que as letras e símbolos dentro do quarto brilhavam com uma luminescência vermelha fraca. Lembrava algas bioluminescentes que você veria nas profundezas esmagadoras da zona da meia-noite.
Onde estava o pequeno contorno vermelho da porta, agora havia uma boca negra escancarada. Vê-la fez os pelos dos meus braços se arrepiarem. Senti uma profunda sensação de errado. Difícil explicar como é ver seu senso de possibilidade escapar. A sensação de suas linhas internas se desfocarem. Um cético vendo um fantasma se materializar bem na sua frente.
O que eu estava vendo era impossível. Mas estava lá mesmo assim, rasgando um buraco na minha realidade.
Fiz a única coisa que consegui pensar. Peguei a cama e empurrei com todas as minhas forças, arrastando-a pelo chão até que bateu contra a parede oposta, bloqueando o buraco. Saí do quarto, que abria para fora, e coloquei uma cadeira da cozinha sob a maçaneta.
Voltei a me acomodar no sofá, lutando para dormir, imaginando o que espreitava lá em cima. Aquela porta brilhante. Aquele túnel que parecia se estender para sempre, colapsando para dentro como um buraco de minhoca.
*Batida. Batida.*
Olhei para cima. Veio de novo, de cima de mim. Meu coração bateu mais rápido.
Inclinei-me para a parede, hesitei, então bati três vezes em ritmo.
*Batida, batida.*
Senti náuseas. Afundei sob o cobertor que estava usando, tentando focar no celular. Ouvi a cama sendo arrastada da parede, um gemido profundo de madeira contra madeira. Depois, o som de mãos pesadas, pés, algo se movendo de quatro pelo quarto. Indo e voltando. Um cachorro numa corrida.
A maçaneta chacoalhou lá em cima. Ouvi as dobradiças gemerem e rangerem sob o peso de algo flexionando seu corpo contra a porta.
O som de passos recomeçou. O tapa de mãos se movendo acima de mim.
Alguma parte primal do meu cérebro, algum neurônio solto disparando no fundo do meu crânio, me disse que o que estava rastejando lá em cima não era minha mãe.
*Batida.*
Isso parecia confirmar.
Fiquei deitada por horas, dentes cerrados, agarrando o cobertor contra o peito. Irracionalmente, fiquei lá a noite toda. Não tinha para onde ir.
A luz cortou o quarto através do vidro sujo. Uma faixa de sol caiu no meu rosto. Acordei ofegante, olhando ao redor freneticamente.
A casa estava silenciosa, exceto pelo canto dos pássaros lá fora. A noite anterior parecia um sonho febril.
Calcei sandálias e peguei roupas limpas da minha mala. Depois de escovar os dentes e trocar o top suado, subi as escadas.
A cadeira ainda estava sob a maçaneta. Afastei-a e entrei no quarto.
A primeira coisa que notei foi que a cama havia sido empurrada de volta, de lado, virada contra a parede. Eu sabia que a tinha movido na noite anterior.
E não havia nenhuma boca escancarada na porta.
Decidi que o resto da limpeza podia esperar.
Precisava de respostas.
As persianas do quarto estavam fechadas, mas um brilho laranja entrava pelas bordas. Peguei uma pistola de grampos e um saco de lixo preto pesado. Grampeei-o no lugar, colocando mais dois sacos por cima até que nem um raio de luz entrasse.
O quarto ficou mergulhado numa sombra profunda. Vi o leve brilho vermelho preencher o espaço como uma nebulosa em chamas. Alguma luz entrava pela fresta sob a porta, então empurrei um cobertor contra ela.
Ouvi um som abafado de sucção enquanto um quadrado preto ocupava o lugar de ontem. Não estava delirando. Estava lá. Só que dessa vez, senti o cheiro de composto velho assando ao sol. O fedor fétido de um banheiro químico mal cuidado.
Encontrei uma fita métrica e me aproximei da porta. Sou pequena, bem baixinha. A única forma de passar por ali seria rastejando de quatro.
Cheguei perto, o fedor pesado no ar. A porta parecia uma ilusão, as bordas dobradas se fundindo no vazio como uma moeda girando num funil de shopping.
Deslizei a fita métrica para a frente. Ela atravessou a máscara de escuridão e vi a parede tremer ao redor da linha amarela chacoalhando. Continuei empurrando.
A quatro pés, senti ela tocar algo invisível. Como uma isca de pesca raspando o fundo de um lago, um pescador sentindo a tensão.
Empurrei até seis pés. Oito.
De repente, uma tensão chacoalhante puxou a linha. Algo agarrou a ponta. A fita cortou meus dedos, abrindo um sulco na palma da minha mão. Arfei com a dor. A fita fez um barulho enquanto desaparecia no vazio.
O estojo foi arrancado da minha mão, sugado para a parede. Recuei, a palma sangrando.
Mesmo fora de vista, ouvi a fita chacoalhando. Então ela voou de volta.
Houve uma pausa. Encarei a escuridão escancarada.
Algo veio cortando o ar a centímetros da minha cabeça, batendo na parede com um estalo de chicote. Ouvi a fita métrica cair no chão. Virei e vi uma ferida profunda na placa de gesso. A fita métrica fumegava onde caiu.
Nenhuma palavra foi dita, mas a mensagem era clara.
*Saia antes que eu te machuque.*
Um gorgolejo profundo veio da pequena porta. O som de alguém se afogando, engasgando por ar. Um movimento se aproximou.
Então, batidas frenéticas contra as paredes.
Avancei, arranquei os sacos de lixo e banhei o quarto em luz. Minhas pupilas se dilataram dolorosamente contra o brilho repentino.
A porta preta havia sumido.
Enrolei uma toalha na palma sangrando e limpei um velho kit de primeiros socorros que minha mãe guardava no banheiro. Enquanto limpava e enfaixava o ferimento, uma percepção veio lenta e fria.
A polícia não ia encontrar minha mãe. Se havia alguma chance de encontrá-la, dependia de mim.
O pensamento envolveu minhas costelas como um arame se apertando. Espinhos ansiosos pressionavam para dentro a cada respiração.
Sou uma introvertida intensa com tendências obsessivas. Fazer isso exigiria mais de mim do que achava que tinha. Mas que outra escolha havia? Era minha mãe. Meu sangue. A última pessoa no mundo com quem me sentia conectada.
E se ela ainda estivesse viva, precisava da minha ajuda.
A decisão se tomou sozinha.
Fui até a loja de ferragens local e comprei as luzes de construção mais potentes que encontrei, duas luminárias de trabalho com milhares de lúmens. Parei numa loja de equipamentos para atividades ao ar livre e peguei um cinto de escalada, mosquetões, ascensores, descensores, uma corda estática longa o suficiente para passar pela porta e uma lanterna de cabeça de alto lúmen.
Quando cheguei em casa com um carrinho de compras roubado cheio de equipamentos, uma névoa pesada havia se espalhado pelo bairro. O céu agitava-se com uma maré de nuvens de trovão.
Havia um zumbido no ar. Notei pela primeira vez as placas de venda nos gramados ao redor da casa da minha mãe. Talvez eles também sentissem a ondulação no ar. Talvez por isso o bairro fosse agora uma casca seca.
O ar cheirava a pólvora. Senti o gosto de cinzas, como brasas de um incêndio florestal. A névoa engoliu o mundo inteiro.
Ao entrar na casa, uma cauda de névoa se enroscou atrás de mim. Fechei a porta contra ela. Senti-me como um mergulhador parado na beira de um penhasco de areia branca, vendo formas alienígenas surgirem no abismo abaixo.
Instalei as luzes de construção no quarto principal. Ao fundo, as batidas vinham constantes de dentro das paredes. Como água pingando de um cano velho.
*Batida… batida… batida.*
O ar estava pesado com umidade. Um tom cinzento infiltrava-se nas paredes. A casa inteira parecia estar respirando.
Acendi as lâmpadas, inundando o quarto com uma luz branca impiedosa. Ainda não estava pronta para atravessar o portal. Precisava de controle antes. Alguma medida disso.
Claramente, a porta era regida por regras. A luz parecia ser uma delas. As runas brilhantes também.
Revirei os pertences da minha mãe. Caixas de traste, papéis velhos, revistas. Nada útil.
Horas depois, encontrei um diário de couro encadernado enfiado entre o colchão e a estrutura da cama. Ao lado, uma garrafa de tinta e uma caneta-tinteiro.
Quando destampei a garrafa, senti um cheiro metálico, como sangue, misturado com o aroma de carvão.
Os rabiscos dentro do diário eram um pesadelo. Ícones de pessoas esfoladas vivas, esticadas e presas em colunas como anjos grotescos. Montanhas de lixo se erguiam ao redor delas.
A mente da minha mãe não apenas quebrou. Foi torcida, remodelada em algo alienígena.
Virei as páginas. Símbolos que cortavam o papel com sua simetria. Palavras jagged que eu não entendia.
O diário me inquietou. Não havia informações claras dentro, nada que eu pudesse usar.
Deixei-o de lado e me concentrei no objetivo. Na minha missão.
No sótão, encontrei o velho rifle de coelho do meu pai, uma caixa de cartuchos calibre .22. Peguei um machado de dois gumes enferrujado do barracão lá fora. Encontrei também a velha armadilha de lobo do Alasca dele, uma coisa monstruosa feita para ursos e lobos. Encharquei o mecanismo com WD-40 até que as juntas se movessem suavemente novamente.
Algo mais chamou minha atenção sob uma pilha de gaiolas de pássaros. Um galão de gasolina para o cortador de grama. Peguei isso também.
Um plano começou a se formar na minha mente. Imprudente. Estúpido. Mas era tudo o que eu tinha.
Meus olhos voltaram aos rabiscos na parede.
*O Deus do Lixo.*
A coisa que ouvi rastejando naquela noite não era um deus. Nenhum ser divino de sujeira e lixo. Era um parasita. Uma sanguessuga, programada para se alimentar.
Eu ia fazê-lo sangrar.
O mundo lá fora escureceu, o sol encolhendo como uma laranja machucada atrás de uma manta de nuvens.
Pilhas de caixas se erguiam contra as paredes. Senti uma dor no meu ombro onde ele havia sido fixado com parafusos anos atrás. Uma memória da sexta série. Uma velha dor ressuscitada.
Minha palma latejava sob a gaze.
Levei todo o meu peso e várias tentativas para armar a armadilha de lobo. Quando finalmente clicou com um clangor pesado, deslizei-a cuidadosamente para o lugar onde a porta escancarada apareceria.
Carreguei o rifle de coelho, inserindo os cartuchos um a um. Pequenos, mas teriam que servir.
Instalei as luzes de construção, mas mantive-as desligadas por enquanto, prontas para brilhar a qualquer momento.
Mantive o galão de gasolina ao alcance. Último recurso.
Lá fora, o mundo foi engolido por uma névoa branca girando. Orvalho grudava no vidro. Grampeei mais sacos de lixo sobre a janela, jogando o quarto na escuridão completa.
O leve brilho vermelho voltou à vida. A porta começou a girar novamente, a parede além desaparecendo no vazio crescente. O fedor de madeira podre e água estagnada encheu o ar. Ouvi o leve tilintar de moedas chacoalhando num pote.
Batidas frenéticas começaram contra as paredes.
O gorgolejo voltou, baixo e úmido.
A escuridão na porta inchou e pulsou. As paredes vibraram sob a pressão.
Recuei, rifle apontado para o centro.
O brilho vermelho pulsou.
E então ele apareceu.
Não era um rosto. Não exatamente.
Era um nervo exposto fingindo ser um rosto. Sem pele, espasmódico, músculos tremendo com espasmos. Osso projetado nos lugares errados. Um rosto humano esticado e derretendo, enterrado até a metade num crânio de cavalo. Buracos escancarados onde os olhos deveriam estar.
Ele se arrastou para a frente com membros demais. Apêndices finos como gravetos dobrados como insetos quebrados.
*SNAP.*
A armadilha de lobo se fechou em sua cintura com um som que era meio clangor metálico, meio ruptura de carne. Um jorro de pus preto explodiu para o lado no chão, fumegando onde tocou a madeira velha.
A criatura gritou. Não com a boca. Gritou dentro da minha cabeça, um som que estalou contra meus ossos e foi direto para a minha espinha.
Ela se debateu, presa. Metade de seu corpo ainda dentro do portal. Metade preso no nosso mundo.
A armadilha segurou.
Estava pega.
Ainda não estava morrendo.
Mas estava vulnerável.
Ela se contorceu, puxando contra a armadilha, membros escorregadios raspando e batendo no chão. Os dentes de ferro da velha armadilha Kodiak estavam enterrados fundo, triturando osso e vísceras. Um líquido preto espesso escorria da ferida, fumegando onde tocava as tábuas do chão.
Não sangrava como algo natural; o que saía parecia mais óleo, ou piche misturado com estática. Ela continuava se contorcendo, frenética, tentando se libertar. Mas a armadilha segurou.
Peguei o cabo da luminária de construção, arrastando-a para a frente, centímetro por centímetro, até que pairasse perto da borda agitada do portal. Meus dedos tremiam. A criatura ficou imóvel. Ela sabia. Deu um puxão violento, tentando recuar, mas a armadilha apenas mordeu mais fundo. Estava presa. Enredada.
Enfiei o plugue na tomada. As lâmpadas acenderam, uma onda brutal de luz branca inundando o quarto. A criatura gritou, mas não em voz alta; o grito sacudiu minhas costelas, estalou contra meus dentes, um uivo psíquico profundo que vibrou a medula dos meus ossos. O portal ondulou violentamente. As paredes zumbiram com calor enquanto as runas vermelhas brilhavam mais forte. A luz atingiu o limiar. O portal se contraiu mais. Suas bordas tremiam como uma mandíbula cerrada. A criatura se debateu mais uma vez, um espasmo final desesperado. E então a parede mordeu.
A armadilha gemeu sob a pressão. Houve um estalo, úmido e final, quando a coisa foi cortada ao meio. As bordas do portal se cauterizaram em branco quente, selando-se enquanto a metade superior da criatura colapsava no chão. A metade inferior, ainda presa, se contorceu uma vez antes de desabar numa pilha de muco preto brilhante. O fedor era insuportável. Polpa úmida e carne podre misturadas com algo docemente enjoativo. Encheu o quarto como algo vivo, rastejando para dentro do meu nariz, minha boca, minha pele.
A lâmpada piscou uma vez, gemendo sob a pressão. O portal espasmou novamente, falhando como uma transmissão de vídeo corrompida. Levantei o rifle, pressionei o cano contra o que restava de seu rosto contorcido e puxei o gatilho. A cabeça explodiu como um melão podre, icor preto espirrando na parede atrás. Fios de fumaça subiram do cano. Meu coração batia forte no peito.
Os espasmos diminuíram. Mas não pararam. O meio-cadáver desabou, vazando um fluido preto espesso que se acumulava nas tábuas, borbulhando e estalando com pequenos estouros de estática. As batidas nas paredes ficaram mais agudas. Mais rápidas. Talvez não fosse a criatura batendo, afinal.
Desliguei as luzes de trabalho. Lentamente, o portal se reformou. Ondulou de volta à existência como uma ferida se abrindo. Lá estava ele novamente. Aquele escuro impossível. Mais preto do que qualquer coisa que deveria existir. O tipo de preto que engole luz, memória e significado.
Mas desta vez não estava vazio. Desta vez, as batidas eram mais altas. Constantes. Chamando.
Prendi a corda de escalada no meu cinto, verifiquei duas vezes a âncora enrolada na estrutura da cama. A corda zumbia levemente com a tensão enquanto testava meu peso. Acendi a lanterna de cabeça. O cone de luz penetrou no vazio, engolido quase instantaneamente pela escuridão. A porta pulsava nas bordas, respirando.
Chega de hesitação.
Respirei fundo, cheio de suor, pólvora e o fedor persistente da criatura, e me ajoelhei. O zumbido estático arranhava meus ouvidos, como unhas arrastando em vinil. Abaixei-me para a frente, as palmas afundando no carpete encharcado de sangue onde o fluido preto havia vazado. Rastejei através.
A temperatura caiu instantaneamente. Não apenas frio. Abissal. Sugava o calor dos meus ossos. O espaço além não fazia sentido. Ângulos tortos. Distâncias mudavam quando eu desviava o olhar. Virei, esperando ver o quarto atrás de mim. Havia apenas mais túnel. A porta havia sumido. Ou estava escondida.
À frente, uma luz âmbar fraca vazava pelas dobras do túnel. Sombras se inclinavam pelo chão irregular. As paredes pulsavam e respiravam superficialmente, como tecido vivo. Avancei rastejando.
As batidas ficaram mais altas. E percebi que não eram mais batidas. Era arranhar. Unhas arrastando por carne macia. Perto. Logo após a curva.
Avancei com cuidado, cada passo uma oração. O túnel se alargou, o suficiente para me agachar. Uma luz âmbar doentia vinha de algum lugar mais fundo, pintando as paredes em tons de sangue velho.
Então os vi. Formas fundidas nas paredes.
Protuberâncias orgânicas. Algumas se contorcendo. Outras imóveis. Sacos de carne, respirando suavemente como pulmões adormecidos. O ar estava úmido e pesado com o fedor de podridão e algo pior.
E então ouvi sua voz. Fraca. Úmida.
"…ajuda…"
Vinha de mais fundo.
Virei a esquina.
E a vi.
Ela estava esticada impossivelmente contra a parede oposta, os braços abertos, os tornozelos torcidos de forma antinatural. Seu torso havia sido aberto e espalhado para fora, fundido à estrutura viva do túnel como um papel de parede macabro. Sua cabeça pendia para um lado, os lábios rachados e partidos, mas seus olhos, aqueles olhos vidrados e familiares, fixaram-se nos meus.
Os sacos que eu tinha passado antes estavam conectados a ela. Dezenas deles. Alguns pulsando. Alguns rompidos, vazando aquele fluido preto viscoso. Um dos maiores desses pseudo-órgãos pendia logo abaixo de suas costelas, aberto como mãos em concha, algo escuro e úmido pulsando dentro.
Ela não estava morta. Também não estava inconsciente. Estava consciente. Presa naquele momento interminável, esticada e vazando para as paredes.
Seus dedos se contorceram fracamente contra a parede. *Tic, tic, tic.* Não para escapar. Para me avisar.
Ela estava tentando me alcançar. Me puxar para dentro. Ou talvez empurrar algo para fora.
Algo se moveu atrás dela, nas sombras profundas. Um gemido baixo e úmido rastejou de algum lugar dentro do túnel. O som vibrou pelo chão e pelos meus dentes.
Congelei. Ela não estava sozinha ali.
E eu também não.
Das dobras nas paredes carnudas, uma forma emergiu. Fina, rente ao chão, seu corpo deslizando em vez de andar. Sua cabeça se movia de um lado para o outro com precisão insetóide, farejando o ar com um focinho úmido e pulsante onde deveria estar um nariz.
Outra forma seguiu. Depois outra.
Brilhos captaram o feixe da minha lanterna de cabeça. Olhos. Fendas de luz. Dezenas deles. Rastejando de cada fenda e dobra do túnel. Alguns se moviam como aranhas com pernas demais. Outros se esticavam, como esqueletos enfiados em sacos de água vazando.
Eles se moviam para ela. Eles se moviam para mim.
Corri.
Tateei o rifle nas costas. Quase tropecei nos próprios pés enquanto corria para o lado dela. Seus olhos me seguiram. Sua boca se abriu, rachada e sangrando, e um sussurro escapou.
"Acabe com isso… pelo amor de Deus."
Deixei o galão de gasolina cair enquanto tentava puxar o pano do bolso. Minhas mãos tremiam tanto que quase deixei os fósforos caírem também. Enfiei o pano fundo na boca do galão e risquei um fósforo contra a caixa.
A chama pegou imediatamente.
As criaturas notaram. O ritmo delas mudou. Não mais uma perseguição lenta. Elas avançaram.
Recuei, lágrimas cortando linhas limpas pela sujeira no meu rosto. O olhar dela permaneceu fixo no meu. Não havia raiva ali. Apenas súplica.
"Desculpe-me," sussurrei.
Ela piscou lentamente. Uma última vez.
Joguei o galão.
Ele atingiu a parede sob ela com um respingo abafado, encharcando a área com gasolina. O pano em chamas sibilou contra a superfície úmida por meio segundo antes que tudo se incendiasse com uma *batida* baixo e pesado.
O calor tirou o ar dos meus pulmões. O fogo subiu pelas paredes carnudas, pegou nos sacos pulsantes, rasgou-os como frutas maduras demais. O fluido preto sibilava e estalava, alimentando o fogo mais alto.
O túnel ganhou vida com gritos. A própria estrutura gritou, um uivo úmido e profundo que sacudiu as paredes e os meus ossos. Os sacos ao longo do corredor romperam um após o outro, jorrando icor preto no fogo, alimentando o inferno. A luz ficou mais dura, piscando loucamente pelas superfícies irregulares.
Formas convulsionaram à distância, formas retorcidas presas nas chamas crescentes. Seus corpos se contorciam e dobravam, silhuetas derretendo contra as paredes em chamas. Algumas das criaturas menores gritaram e colapsaram instantaneamente, outras tentaram fugir, deslizando e rastejando desesperadamente pelo chão carnudo em minha direção.
Virei e corri.
O túnel estava se contraindo. Como uma garganta. As paredes pulsavam e se apertavam para dentro.
O ar ficou mais pesado, mais quente, sufocante. A estática nos meus ouvidos aumentou até parecer que meu crânio ia rachar.
Minha lanterna de cabeça piscou, mas resistiu. Eu podia ver a corda, pendurada na escuridão mutante à frente, minha última linha de vida.
As criaturas estavam atrás de mim agora. Eu podia ouvir o tapa dos membros contra o chão ardente e contorcido. Rápidas. Mais rápidas que eu.
O rugido do fogo abafava tudo o mais. Alcancei a corda, as mãos escorregando contra o nylon liso pelo calor. Agarrei-a, enrolando-a no pulso, e comecei a me puxar para cima.
Abaixo de mim, o mundo queimava. Não ousei olhar para trás.
Minhas botas escorregavam contra a superfície ensanguentada. Minha palma ferida gritava de dor a cada vez que agarrava a corda. Subi mesmo assim, forçando meu corpo para cima, arrastando-me para longe da boca de fogo e escuridão que se abria abaixo.
O portal estava encolhendo. As bordas se curvavam para dentro, queimando-se.
Senti a corda balançar uma vez, bruscamente, quando algo pesado colidiu com a parte de baixo. Não parei. Subi mais rápido, mão sobre mão, o coração batendo tão forte que parecia que ia explodir.
No último segundo, joguei-me pelo limiar.
Aterrissei com força no chão do quarto, raspando cotovelos e joelhos. Fumaça saía do portal em colapso, espessa e sufocante. As runas nas paredes piscaram, enfraqueceram, apagaram-se como brasas moribundas.
A boca preta na parede encolheu cada vez mais até desaparecer completamente, deixando para trás um pedaço de placa de gesso carbonizado e rachado.
Os restos da criatura presa na armadilha de lobo começaram a se dissolver, derretendo num líquido preto viscoso que sibilava enquanto se espalhava pelo chão. Cheirava a óleo queimando e frutas podres.
Os únicos sons agora eram o ranger da casa velha e o crepitar distante do fogo moribundo.
Não me mexi.
Fiquei deitada no chão, coberta de suor, fuligem e sangue, encarando o teto manchado.
Estava viva.
Mas havia falhado com ela.
Eu a deixei para trás. Mesmo que ela tivesse pedido. Mesmo que fosse a única misericórdia que restava.
Sentei-me lentamente, cada músculo tremendo. O ar estava pesado com fumaça e o fedor metálico amargo de sangue. Tirei a gaze da palma e estremeci com o corte vermelho inflamado por baixo, já vazando pelas bandagens. Pressionei a bandagem de volta e me forcei a ficar de pé.
O quarto parecia destruído. Marcas pretas queimadas manchavam as paredes. O edredom floral estava coberto de fuligem. A madeira sob o portal queimado crepitava levemente enquanto esfriava.
Desci cambaleando. A sala de estar era uma bagunça de traste meio limpo e caixas viradas. A porta da frente estava entreaberta, deixando a névoa matinal pesada entrar em longos tentáculos preguiçosos. O céu lá fora era um cinza plano e vazio, a cor de ossos velhos.
Encostei-me na parede, o peito arfando.
Estava acabado.
Eu destruí o portal. Queimei o pesadelo que havia criado raízes nesta casa. Libertei-a, da única forma que restava.
Então por que parecia que eu só havia descascado a primeira camada de algo mais profundo?
Fechei a porta e a tranquei, mas o ato parecia vazio. Não havia fechaduras fortes o suficiente para o que eu tinha visto. Nenhuma porta grossa o suficiente. Nenhuma oração alta o suficiente.
Vaguei pela casa em transe. Cada canto, cada móvel parecia errado agora, corrompido pela proximidade. Passei minha infância aqui. Passando as mãos por essas mesmas paredes. Assistindo desenhos naquele mesmo sofá surrado. Ouvindo minha mãe cantarolar desafinada na cozinha enquanto lavava a louça.
Agora tudo parecia manchado. Como se algo lamacento tivesse deixado suas impressões digitais por toda a memória da minha vida.
E naquele silêncio arruinado, naquela casa quebrada, um pensamento se insinuou no cerne da minha mente.
E se o fogo não foi suficiente para matá-la?